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Title: A triste canção do sul : subsidios para a historia do fado
Author: Pimentel, Alberto
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "A triste canção do sul : subsidios para a historia do fado" ***
SUL ***



                            ALBERTO PIMENTEL

                            A TRISTE CANÇÃO

                                   DO

                                  SUL

                   Subsidios para a Historia do Fado

                            LIVRARIA CENTRAL

                          DE Gomes de Carvalho
                                 EDITOR

                         158, RUA DA PRATA, 160
                                 LISBOA



                            ALBERTO PIMENTEL

                                A triste

                             canção do sul

                  (SUBSIDIOS PARA A HISTORIA DO FADO)

                             [Illustration]

                                 LISBOA
            _LIVRARIA CENTRAL de Gomes de Carvalho, editor_
                         158--Rua da Prata--160

                                  1904



                                 LISBOA
                    Typ. de Francisco Luiz Gonçalves
                         80, Rua do Alecrim, 82

                                  1904



                                   I


Os romanos incluiam _Fatum_ na sua mythologia como sendo a vontade
expressa não só por Jupiter, mas tambem pelos outros deuzes, em relação
ao destino dos homens, das cidades e das nações.

Os nossos diccionaristas mencionam esta etymologia, mas interpretam-n’a
sob o ponto de vista do monotheismo.

Assim, o Padre Raphael Bluteau, no _Vocabulario_, diz que, segundo
a doutrina de Santo Agostinho e S. Thomaz, Fado é a disposição e
providencia divina, que antevê os acontecimentos humanos.

Moraes, encostando-se tambem aos theologos, define Fado dizendo: «é a
ordenança que se vê em as coisas por divina providencia.»

De modo que a differença consiste em admittir a vontade de muitos
deuzes ou de um só Deus, mas o facto subsiste o mesmo tanto nas
religiões polytheistas como nas monotheistas: acredita-se que o destino
humano é regulado por uma auctoridade sobre-natural e tem de ser
cumprido com indeclinavel sujeição.

Os nossos poetas d’outr’ora (e ainda os modernos) deixaram-se dominar
pela crença na fatalidade do destino, cuja infelicidade lamentam como
«escravos da sorte.»

Bastará citar o exemplo de Bocage:

    Que eu fosse em fim desgraçado
    Escreveu do Fado a mão;
    Lei do Fado não se muda;
    Triste do meu coração!

O nosso povo, á semelhança dos poetas, tem sido sempre fatalista:
explica suas faltas e desgraças, e tambem sua boa fortuna, por uma
imposição da lei do Fado; no primeiro caso diz: «Estava escripto no
livro dos destinos ou «Era Fado; tinha de ser assim»; no segundo caso:
«Tive sorte; estou em sorte, etc.»

Mas o nosso povo, com ser fatalista, no que alguns querem ver
principalmente um vestigio da influencia arabe, como se o homem não
tivesse acreditado sempre, mais ou menos, em todos os tempos e em
todos os paizes, n’uma predestinação que lhe é imposta por um Arbitro
supremo; o nosso povo, crente na fatalidade da sorte a que tem de
obedecer, apenas n’um passado relativamente proximo começou a dar o
nome de _Fados_ ás canções que celebram as agruras do destino e a
crença na lei irrevogavel do Fado.

A accepção da palavra _Fado_ no sentido de «canção» é relativamente
moderna, ou só modernamente passou do calão para o vocabulario geral da
lingua e para a technologia musical.

Não apparece era os nossos mais antigos diccionarios: não vem em
Bluteau (1712-1721); nem em Santa Rosa de Viterbo (1798).

Nem apparece tambem nas primeiras edições do _Diccionario_ de Moraes
(seculo XIX) tanto nas duas que foram revistas pelo auctor como em
algumas das que se fizeram depois da sua morte.

O _Diccionario_ de Faria, cuja 1.ª edição é de 1849, não traz, no
vocabulo _Fado_, aquella accepção.

É só depois de passada a primeira metade do seculo XIX que a palavra
_Fado_ apparece nos diccionarios da lingua com o significado de canção
popular, já sanccionado pelo uso commum.

Lacerda, na 4.ª edição, que é de 1874, diz: «Fado, cantiga e dança
popular, muito caracteristica e pouco decente: o de Lisboa, o de
Coimbra».

Na 5.ª edição, 1879, não altera a definição, mas substitue a palavra
Coimbra pela palavra Cascaes.

Na 5.ª edição de Moraes ainda não apparece o vocabulo _Fado_ com a
significação de canção ou cantiga. Não pudemos consultar a 6.ª edição.
Mas examinamos a 7.ª (1878) e foi n’esta que se nos deparou a accepção
que procuravamos: «_Fado_, poema do vulgo, de caracter narrativo, em
que se narra uma historia real ou imaginaria de desenlace triste, ou
se descrevem os males, a vida de uma certa classe, como no _fado do
marujo_, _da freira_, etc. Musica popular, com um rythmo e movimento
particular, que se toca ordinariamente na guitarra e que tem por lettra
os poemas chamados _fados_.»

Isto pelo que respeita aos diccionarios portuguezes.

Quanto aos estrangeiros, tambem não se encontra no _Glossarium_ de
Ducange aquella accepção.

Apenas Freund, no seu diccionario latino, cita os vocabulos _Fatum_
e _Fatus_ como derivações de uma raiz commum, attribuindo a _Fatus_
tanto a significação de _destino_ como de _discurso_, o que justifica a
propriedade com que se chama _Fado_ á cantiga, ao _discurso_ em verso
que trata do _destino_, conservando-se ainda no Alemtejo a redundancia
de dizer _cantigas do Fado_, para designar todas aquellas a que o
_destino_ serve de thema.

Nas collecções da Bibliotheca Nacional de Lisboa ha bastantes canções
populares, desde 1820 até hoje, mas em nenhuma das mais antigas se
encontra a designação de _Fado_.

Intitulam-se «cantigas, romances, modas ou modinhas, etc.»

O _Diccionario erudito_ de Padre João Pacheco (1734-38) traz todas as
designações de musicas, canções e danças do seu tempo, mas não menciona
os _Fados_.

Nas _Infermidades da lingua, e arte que a ensina a emmudecer para
melhorar_, composta pelo dr. Manuel Joseph de Paiva e publicada em
1760, vem arrolado grande numero de palavras e phrases, que o auctor,
com excessivo e ás vezes injustificavel escrupulo, pretendia repellir
da lingua portugueza, por as julgar indignas e improprias de um
vocabulario grave.

Não apparece ahi a palavra _Fadista_; nem a palavra _Fado_ no sentido
de canção ou de vida dissoluta.

Mas vem mencionada a palavra _banza_ que nós recebemos das nossas
colonias africanas,[1] e que entrou na linguagem de calão d’onde passou
para a litteratura humoristica, como se vê nas _Poesias_ de Costa e
Silva (1844):

    Encostado ás meias portas
    Na Banza sarrafaçava.

No fim do seculo XVIII a _Gazeta de Lisboa_ annunciava, frequentes
vezes, _modinhas_ e _minuetes_, á venda nas lojas dos livreiros.
Tambem annunciava _sonatas de guitarra_. Havia em 1792 um _Jornal de
modinhas_, que se vendia na Real Fabrica e Impressão de Musica no Largo
de Jesus, em Lisboa. O maestro Mr. Marchal, que então teve certa voga
n’esta cidade, deu á estampa uma collecção de _minuetes_ e _rondós_.
Este mesmo maestro explorava a musica das ruas, glosava os pregões
das vendedeiras (por exemplo, _Azeitonas novas_, com variações, peça
composta sobre o pregão de uma vendedeira de Lisboa: _Gazeta_ de 26
de fevereiro de 1793). Mas a designação _Fado_ não apparece ainda em
nenhum dos annuncios que recommendavam as musicas populares.

Beckford, nas suas cartas sobre Portugal, apenas se refere ás
«modinhas», acompanhadas a guitarra.

É que no seculo XVIII a _modinha_ estava em voga no nosso paiz;
dominava por toda a parte, até no theatro, onde Antonio José da Silva,
o _Judeu_, a aproveitou como elemento essencial das suas composições
dramaticas.

Theophilo Braga diz que a modinha, comquanto «seja uma creação musical
do genio portuguez» se chamava _brazileira_, porque no Brazil se
conservou «levada para ali pelos negociantes e colonos, e do Brazil a
trouxe na sua inteireza primitiva Antonio José da Silva, que abandonára
a patria aos oito annos de idade e achava n’essas cançonetas uma
recordação da infancia.»[2].

Stafford, na _Historia da musica_, diz que as arias nacionaes dos
portuguezes eram os _lunduns_ e as _modinhas_; Fétis falla de Hespanha,
mas não de Portugal.

Em toda a graciosa collecção da _Macarronea_, que tão pittorescamente
retrata a vida academica de Coimbra no seculo XVIII, não ha noticia do
_Fado_, mas sim de outras canções que os estudantes cantavam: _mille
trovas_, com diz o _Sabonete Delphico_.

Na _Feição á moderna ou logração desmascarada_ vem especificadas
algumas d’essas canções, portuguezas e hespanholas: «E logo dareis
duas gaitadas, fazendo o compasso com o pé, e seguindo o sonoro com
a cabeça. Victor quem canta; lá vae _Bella arma misera_, ou outra da
moda; depois entregar a algum curioso o instrumento, sair para o meio
com o chapeu na mão a desafiar algum circumstante; dar quatro voltas
de pé cambeo, ou bem ou mal, que sempre no fim se-ha de applaudir com
catarro. Acabada esta primeira jornada, gritareis dizendo: «Venha doce,
que estou esfalfado»; e depois de consolar a barriga comendo doce
_usque ad satietatem_, saireis outra vez com o segundo papel lançando
uma nesga de relação antiga v. g. do _Mariscal de Viron_, ou _D. Carlos
Ozorio_, intimando no furor das acções a valentia, e nos requebros da
voz a ternura, cortando o hespanhol como queijo do Alemtejo com faca
flamenga, e no fim correspondendo aos vivas com perna trocada.»

Nicolau Tolentino, que morreu em 1811, falla no _doce londum chorado_,
nas modinhas brazileiras, cita algumas canções populares, taes como _De
saudades morrerei_ e a _Comporta_; diz referindo-se á primeira,

    Cantada a vulgar modinha,
    Que é a dominante agora;

e alludindo á segunda,

    Que de noite á sua porta
    Com famosos tangedores,
    Que o Talaveiras conforta,
    Lhe manda ternos amores
    Sobre as azas da _Comporta_;

mas nem uma unica vez faz menção do _Fado_.

       *       *       *       *       *

Nenhum dos poetas portuguezes que no seculo XVIII e na primeira metade
do seculo XIX se tornaram mais populares emprega a palavra _Fado_ na
accepção de canção ou cantiga.

É certo que alguns estrangeiros que n’aquelles seculos, e ainda no
anterior, visitaram Portugal, se mostraram impressionados, como lord
Beckford, com o tom plangente da musica do nosso povo.

O barão de Lahontan, que esteve em Lisboa no seculo XVII, diz que alta
noite vagueavam guitarristas pelas ruas tocando umas _arias funebres
como o «De Profundis.»_

Não lhes chama _Fado_, nem podia chamar, porque essa designação não era
usada ainda.[3]

O erudito escriptor portuense sr. Rocha Peixoto escreveu no periodico
_Nova Alvorada_ um artigo a que deu o titulo de _O cruel e triste fado_
e em que synthetisou a relação psychica existente entre o _Fado_,
canção, e a orientação historica do povo portuguez.

«... o fado--pondera esse escriptor--e o que n’elle se diz de sonho, de
sombra, de amor, de ciume, de ausencia, de saudade e principalmente
de conformação com o cru e negro imperio do destino, eis o que exprime
dramaticamente a feição da alma nacional. O fado é portuguez, é toda
uma mentalidade, é toda uma Historia».

Apenas o sr. Rocha Peixoto se deixou arrastar por um flagrante
anachronismo quando diz que o infante D. Miguel de Bragança _batia o
fado_.

Oliveira Martins, que muitas vezes se enredou em salientes
anachronismos, foi mais cauteloso quando poz a canção _Negro melro_ na
bocca da plebe miguelista.

Certamente que o povo, poeta das ruas, improvisador espontaneo e
inconsciente, costumaria cantar em publico as suas desgraças e as da
patria, como faziam, em mais alta graduação de merito litterario, os
poetas cultos; ou repetiria as trovas d’estes poetas quando ellas
exprimiam as dores da existencia individual ou o luto pelas desgraças e
dissabores nacionaes.

Sabemos que no seculo XVI se generalisaram na voz do povo as canções
que lastimavam a ingente derrota do rei e do exercito em Alcacerquibir.
Miguel Leitão de Andrade, na _Miscellanea_, traz uma d’essas canções,
lettra e musica, mas dá-lhe o nome de _romance_; e tudo faz crêr na sua
origem popular.[4].

A estas «toadas tristissimas» não se chamava _Fados_; nem chamou a
nenhuma outra do mesmo genero até depois de 1840.

Hoje ainda os viajantes estrangeiros se impressionam profundamente com
a melancolia e dolorida doçura das nossas canções populares, mas já
todos as designam pelo nome de _Fados_.

Madame Adam, no seu livro _La patrie portugaise_ (1896), escreve:
«Jovens guitarristas, agrupados em bandos, cantam e acompanham o
_Fado_, a canção que se traduz pela palavra «Destino» e que é puramente
lusitana. Todos os motivos do _Fado_ são portuguezes. Ha _Fados_ para
todos os acontecimentos da vida, para o amor, especialmente; e para a
politica tambem.»

Tal é o testemunho de uma intelligente e instruida mulher franceza, que
reconheceu em os nossos _Fados_ um caracter privativo, uma expressão
nacional, a alma de um povo, emfim.

Igual impressão recebeu um viajante hespanhol, que em novembro de 1896
escreveu, no jornal _A Voz do Commercio_, a seguinte apreciação:

 «Nada mejor como la música refleja el caracter y la manera de ser
 especial de los pueblos. Un filósofo aleman decia: daz-me los adagios
 de un pais cualquiera y la dictaré leyes. Pues bien, yo dispensaria
 los adagios y me sobraria con la música. España con sus jotas y sus
 peteneras y Portugal con su rico _fado_ son y serán siempre dos
 naciones antitéticas. La jota pide luz, castañuelas y vino en jarro.
 La petenera pide algomas: abrazos de muger que ahoguen, besos que
 quemen neurosis debilitantes y por encima de todo esto cañnitas de
 manzanilla bajo el toldo de una parra. En cambio, «_o fado_» pide
 silencio absoluto, penumbra misteriosa y una cierta dósis de tristeza
 en el corazon. Con diferencias tan marcadas antojáseme tarea fácil
 legislar para los dos paises sin mas que consultar cuadernos de música
 popular.»

Só os escriptores da actualidade, tanto estrangeiros como nacionaes,
fazem menção do _Fado_ no sentido de canção popular.

Em um livro de memorias, aliás muito interessante,[5] e relativo á
primeira metade do seculo XIX, diz o seu auctor fallando do enthusiasmo
com que em Lisboa foi recebida a _Polka_:

«Não só desthronou o _Solo inglez_, e fez prescrever a _Gavota_,
como contribuiu tambem para a emigração do _Pirolito_--da _Maria
Cachucha_--do _Beijo á Saloia_--do _Rei Chegou_ e do _Passarinho
Trigueiro_. Creio mesmo que só então deixou de cantar-se a antiga e
popular romança--_A Nau Cathrineta_, uma especie de--papão vai-te
embora--com que os avós, desde o principio do seculo, vinham entretendo
os serões e... acalentando os netos.»

Nem uma unica palavra de referencia aos _Fados_.

Mencionando a litteratura de cordel n’essa epoca, diz o mesmo auctor:

«Ali (obras do Arco da rua Augusta) entretinham-me as toscas gravuras,
quasi em papel pardo, do _João de Calais_--da _Imperatriz Porcina_--da
_Cornelia Bororchia_--e da _Formosa Magalona_, que, á guiza de estendal
de roupa, se baloiçavam bifurcadas no cordel que, de lado a lado, se
prendia ao tapume com que estava vedada a passagem do Terreiro do Paço
para a rua Augusta.»

Tambem nenhuma referencia aos _Fados_, que hoje se vendem em folhetos,
muitos d’elles com gravuras toscas (especialmente os que se referem
a grandes crimes ou outros acontecimentos de sensação) e que são
apregoados nas ruas.

No romance do Padre João Candido de Carvalho (vulgarmente Padre
Rabecão) _Eduardo ou os mysterios do Limoeiro_, publicado em 1849, não
obstante ser uma chronica muito interessante dos costumes populares
de Lisboa n’aquelle tempo, e começar por uma scena de taberna na
Madragôa (hoje rua de Vicente Borga) não apparece a palavra _Fado_,
comquanto haja uma referencia a _fadista_. É a seguinte:

«Ao canto opposto existia uma outra banca, como para guardar symetria
áquella, de que fallei; e sentado a ella estava um mancebo de 19 a
20 annos, de jaqueta, chapeu á christina, cinta de seda enrolada á
_fadista_, calça de cotim enlameada, fumando no seu charuto de cinco
réis, que accendia repetidas vezes, emquanto acompanhava as fumaças com
outros tantos gollos de uma bebida quente que tinha mandado preparar
por mais de uma vez, e em cada vez, que a pedia por ter esgotado o
copo, repetia--_Oh patrão! dê-me outra Francisquinha._»

É o typo do _Fadista_, descripto em 1849, a beber vinho na taberna,
usando do calão e do traje da sua classe. Mas o Padre Rabecão, que viu
o _Fadista_, não ouviu o _Fado_, nem a elle se refere nunca em nenhum
dos quatro tomos do seu romance.

Este facto leva-nos a formular uma hypothese, que opportunamente
desenvolveremos.

Tem-se dito muitas vezes que a origem dos nossos _Fados_ é arabe.

Theophilo Braga inclina-se a esta opinião quando diz «que os cantos
conhecidos pelo nome de _Huda_, pelo Arcipreste de Hita, são ainda os
nossos _Fados_, que usados pelos tropeiros do Brazil coincidem com a
descripção feita pelo arabista Caussin de Perceval.»[6]

O Arcipreste de Hita, de que Theophilo Braga deu varias composições no
jornal litterario _Era Nova_ e de que Amador de los Rios faz menção
na _Historia critica da litteratura hespanhola_, compoz cantigas para
cegos andantes e para tunas escolares; parecendo que tambem escrevera
canções populares em arabe, o que aliás é contestado por alguns
escriptores.

Mas, como quer que seja, obedeceu manifestamente á influencia arabe,
ainda quando se dè por assente que não chegou a escrever n’esta lingua
alguns dos seus cantares.

Theophilo Braga, filiando nos _Hudas_ os nossos _Fados_, acceita-os,
pelo menos, como um vestigio d’aquella mesma influencia.

E é ainda mais explicito quando diz: «As danças portuguezas participam
dos caracteres provenientes da nossa situação: sensuaes, como os
_Fados_, os _Batuques_ recebidos dos arabes e das possessões africanas,
e as _Modinhas_ recebidas das colonias do Brazil.»[7]

É verdade que nas _Epopeas da raça mosarabe_[8] fallando da xácara,
usada pelos _xaques_ ou ciganos (d’onde veio a denominação _xácara_ ou
_xacarandina_) diz que o nosso _Fado_ é «uma degeneração da _xácara_,
que pelas transformações sociaes veio a substituir a canção de _gesta_
da idade media.»

Ora nós seguiremos outro caminho; não nos demoraremos a apalpar
hypotheses.

Apenas mencionaremos os factos, e o que parece certo é que o _Fado_,
tal como hoje o conhecemos, nasceu em Lisboa, depois da primeira metade
do seculo XIX, e que d’aqui irradiou para as provincias, apenas com o
caracter de «moda» de invenção moderna, o que exclue a hypothese de uma
antiga filiação arabe.

O erudito professor Ernesto Vieira, no seu _Diccionario musical_,
chegou ás seguintes conclusões, que nos parecem exactas:

1.ᵃ O _Fado_ só é popular em Lisboa: para Coimbra foi levado pelos
estudantes, e nem nos arredores d’estas duas cidades elle é usado pelos
camponezes, que teem as suas cantigas especiaes e muito differentes.

2.ᵃ Nas provincias do sul, onde os arabes se conservaram por mais tempo
e os seus costumes e tradições são ainda hoje mais vivos, o _Fado_ é
quasi desconhecido principalmente entre a gente do campo.

3.ᵃ Nenhum livro ou escripto anterior ao actual seculo (XIX) faz a
menor referencia a esta musica popular.

4.ᵃ A poesia com que, invariavelmente quasi, se canta o _Fado_ é uma
quadra glosada em decimas, forma poetica d’uma antiguidade pouco
remota, de uma origem nada popular e sem relação alguma com a poesia
arabe.

Effectivamente, o grande fóco de irradiação do _Fado_ é Lisboa; mas
a provincia, tanto ao sul como ao norte, apenas o acceitou como um
dictame da moda, que não logrou absorver e substituir os cancioneiros
provinciaes.

Dá-se com o _Fado_ e com outras canções, que em Lisboa cairam no gosto
publico, o mesmo facto que se dá com os figurinos, as _toilettes_,
cujo modelo a capital exporta para o interior do paiz: apparecem na
provincia alguns exemplares, mas a maneira de vestir propria de cada
região continúa subsistindo tradicionalmente.

Os _Fados_ chegaram a Coimbra levados pelos estudantes, como diz
Ernesto Vieira; e ao Minho, levados, como diz Camillo, pelos jovens
fidalgos que mais ou menos frequentavam a capital e queriam ir dar-se
ares extravagantes de marialvas e fadistas nas suas terras.

Tambem foi Lisboa que exportou o _Fado_ para as provincias ultramarinas.

Ha o _Fado de Loanda_, composto sobre motivos de cantos indigenas por
um _maestro_ angolense, já fallecido, que veio á Europa estudar musica
por conta da sua provincia.

Não deve passar sem reparo o facto de Lacerda, na 4.ᵃ edição
do seu _Diccionario_, feita em 1874, ter citado o _Fado_
de Lisboa e o de Coimbra; e de na 5.ᵃ edição, de 1879, ter
substituido--Coimbra--por--Cascaes.

Esta alteração corresponde certamente a um facto chronologico: é que a
praia de Cascaes, mais proxima de Lisboa que a cidade de Coimbra, deve
ter recebido o _Fado_ por contacto directo com os marialvas e fadistas
da capital.

Coimbra recebeu-o mais lentamente, levado por um ou outro estudante do
sul em gerações successivas.

A guitarra e o _Fado_ tiveram que luctar, nas serenatas da academia,
com a tradição do «machinho», de que tanto se falla na _Macarronea_,
e da viola; e com as canções amorosas ou populares, que estavam
arraigadas nos costumes coimbrãos.[9]

José Doria ficou celebre como tocador de viola.

João de Deus, que era algarvio, e tinha, por isso, que passar algumas
vezes em Lisboa, dava lindas serenatas de viola no Penedo da Saudade,
cantando improvisos seus ou canções do povo, mas não tinha sympathias
pelo _Fado_. Elle mesmo o confessa: «nunca pensei em _Fado_, nunca
o apreciei, nem o toquei: liguei-o desde o principio ás mulheres
de má vida, e de ahi a minha especie de aversão a tal musica; mas,
aqui, ouvindo-o a estudantes, não me repugnou fazer-lhe umas tantas
quadrinhas, e continuar-se-ha...»[10]

Depois, na vida de Lisboa, familiarisou-se com a guitarra e, portanto,
com o _Fado_, a tal ponto que estudou um systema de melhorar a
pontuação das guitarras.[11]

João de Deus diz, como vimos, ter composto «umas tantas quadrinhas»
para serem cantadas com o acompanhamento de algum _Fado_.

É certo que os _Fados_ á morte da Severa, e alguns mais, eram em
quadras, mas depois o povo adoptou outra forma estrophica. A quadra, no
_Fado_, veio modernamente de Coimbra e foi o estudante Hilario que lhe
deu grande voga cantando quadras compostas por elle ou outros poetas.

A lettra do _Fado_, na tradição popular, como nota Ernesto Vieira, é
talhada nos moldes arcadicos do mote em quadras e da glosa em decimas.

Esta tradição mantem-se ainda entre o povo de Lisboa nos _Fados_ que
se vendem nos kiosques (que substituiram o muro, o cordel e o cego
andante) e em alguma livraria, como, por exemplo, a de Verol Junior na
rua Augusta.

Apenas o _Fado_ litterario admitte a quadra em vez da decima.

Mas o _Fado_, apesar da dupla aristocratisação que tem recebido dos
poetas e das salas, denuncia a sua origem popular, a alma do povo que o
canta.

É nas ruas, nas tabernas e nos bordeis que o _Fado_ parece nascer,
espontaneamente, como nascem certas flôres nos charcos: a _Pontederia
crassula_, por exemplo, que é uma linda flor azul.

Em geral a lettra dos _Fados_ justifica a etymologia, porque celebra
as desgraças de um individuo ou de uma classe, mas ha casos em que a
lettra, por glosar um assumpto alegre ou malicioso, briga com a toada
dolente da guitarra.

A musica, o acompanhamento, é sempre triste, como um ecco da alma do
povo, ingenua e soffredora, que, pela sua rudeza, não sabe procurar
difficuldades nos effeitos musicaes, contentando-se com uma toada
simples e facil, e que, pela amargura do seu destino, está sempre
disposta a carpir-se, a lastimar-se.

A lettra do _Fado_ revela a facilidade espontanea da metrificação
popular, da redondilha, que é o porta-voz da raça latina da peninsula,
e na vivacidade por vezes maliciosa dos conceitos accentua-se a heroica
resignação com que nós, os meridionaes, graças á inconstancia do nosso
humor, á benignidade do clima e ao azul radioso do ceu, podemos afogar
as nossas lagrimas no desabafo redemptor de um sorriso amargo...

Assim é que nas cantigas do _Fado_ os assumptos mais tristes são
temperados por um sabor picante de ironia, que lhes adelgaça o azedume,
como, por exemplo, quando o _marinheiro_ conta a sua vida, ao som da
guitarra, sorrindo e zombando do seu proprio destino:

    Para o almoço feijão,
    Ao jantar bolacha dura;
    Nem uma só vez sequer
    Pode beber agua pura.

Comprehende-se que o povo, no meio dos seus prazeres, não esqueça
inteiramente a pesada fatalidade com que a sorte o subjuga; mas
comprehende-se tambem que ache gosto em saborear o desabafo que a
guitarra lhe proporciona, fazendo-o cantar, e dando-lhe pretexto para
molhar a palavra com o vinho.

D’envolta pois com o sentido esmagador da palavra _Fado_, que
representa uma condemnação invencivel, vem associada a ideia da folga
na taberna, da merenda nas hortas, do passeio ao luar, emquanto a
guitarra vai dizendo da sua justiça.

N’esses momentos, o povo, sem esquecer a dureza do destino, porque a
sente como o condemnado ás galés sente o peso da corrente de ferro,
experimenta os unicos prazeres que lhe são permittidos, e que todos
parecem volitar, como um enxame de abelhas, em torno da guitarra: o
canto, a dança, o vinho, e o amor.

    Tudo quanto o _Fado_ inspira
    É o que só me entretem:
    Pois quem do _Fado_ se tira
    Não sabe o que é viver bem.

O povo julga-se relativamente feliz na fruição d’esses prazeres
que o _Fado_ arrasta comsigo. Assim elle pudesse prolongal-os! E,
saboreando-os, encarece-lhes a voluptuosidade tentadora, que seria
capaz, julga elle, porque é o melhor que pode gosar, de abalar a
santidade do Papa:

    Se o Padre Santo soubesse
    O gosto que o _Fado_ tem,
    Viria de Roma aqui
    Bater o _Fado_ tambem.

O povo de Lisboa, limitado ás ruas e ás tabernas da cidade, e, uma
vez por outra, quando muito, ás hortas dos arrabaldes, encontra na
guitarra, nas cantigas do _Fado_, a sua melhor distracção.

O vinho da taberna pode leval-o até á embriaguez, até ao crime, como
não raro acontece; mas quando não vai tão longe, suggere-lhe a vaga
melancolia de uma vida contrariada de privações, produz no povo aquillo
a que Camillo Castello Branco chamou com feliz propriedade a _sensação
nervosa, o soluçado requebro das saudades do Vimioso_.

Nas aldeias, especialmente no norte do paiz, a vida dos campos, muito
laboriosa e sadia, inspira as canções vivazes, movimentadas, que a
viola chuleira acompanha n’um andante batido, repenicado. Só o espirito
de imitação, conduzido pelos fidalgos, pelos estudantes e pelos
bohemios, principalmente os cegos andantes, tem introduzido o _Fado_
alfacinha nas provincias do norte, que o cantam sem o comprehender,
porque as condições de vida são ahi muito differentes.

É tambem por espirito de imitação que o _Fado_ se aristocratisou na
guitarra dos marialvas e no piano das salas, como um producto exotico
violentamente aclimado, uma planta d’estufa, que parece chorar pelo seu
clima nativo--o clima dos bairros infamados e das ruas suspeitas.

É preciso que o marialva viva fóra da sociedade em que nasceu,
identificando-se com o povo, como o conde de Vimioso, para comprehender
e sentir o _Fado_; a não ser isto, só o comprehende e sente um bohemio
de talento, um poeta torturado como D. José de Almada, de quem Julio
Cesar Machado escreveu: «Coisa curiosa: ninguem, a exceptuarmos o conde
de Vimioso, cantava o _Fado_ como elle. O _Fado_ é a melancolia. Por
baixo dos seus sorrisos, gracejos e gargalhadas d’elle, havia lagrimas
sempre...»

Só um ou outro homem bem nascido, o Vimioso, o Almada, tem conseguido
celebrisar-se de guitarra na mão, por condições especiaes da sua
existencia; mas todo o homem do povo é capaz de pôr lagrimas na voz
para cantar o _Fado_, porque cada classe, como cada raça, possue uma
gamma especial para interpretar as suas paixões, os golpes crueis do
seu destino.

              [Illustration: D. JOSÉ D’ALMADA E LENCASTRE

                   Escriptor e guitarrista primoroso

                     (FALLECIDO EM JUNHO DE 1861)]

Já vimos como ainda antes de estabelecida a denominação de _Fados_, os
viajantes estrangeiros se impressionaram com as canções dolentes, na
lettra e na musica, do povo portuguez.

É que sempre temos sido um povo melancolico por effeito das condições
da nossa propria existencia e de uma educação tradicional.

Vivemos n’um paiz confrangido entre as montanhas e o mar: as montanhas
criam as povoações alpestres e os pastores solitarios; o mar educa os
marinheiros pensativos e concentrados, que serenamente jogam a vida
contra a furia das tempestades na vastidão immensa das aguas.

Nascemos de um grupo de lusitanos, que tiveram de soffrer o choque de
povos poderosos, de immigrações torrenciaes e, por ultimo, de fazer a
guerra contra os mouros, uma guerra de fanatismo, estimulada pelo odio
de raça e pelo sentimento religioso, que é a mais cruel e intransigente
de todas as guerras.

Depois fomos navegadores em mares desconhecidos e conquistadores em
plagas remotas, onde a nostalgia cortava o coração saudoso.

Ouvimos o canto monotono e languido do preto em Africa. De lá parece
havermos trazido o _lundum_, que se coadunou com o nosso genio
melancolico, e que tem sido certamente a canção popular mais aproximada
do _Fado_ actual. A expressão de Tolentino «o doce londum chorado» dá
bem a impressão do _Fado choradinho_ de nossos dias.

O excesso de religião pesou sobre nós com todos os seus terrores
inquisitoriaes: o carcere, a tortura, o auto de fé.

Vivemos mais de meio seculo opprimidos pelo jugo castelhano, a que só
alguns fidalgos se mostravam affeiçoados por vil cortezanismo.

Soffremos, no principio do seculo XIX, invasões armadas que exigiram um
esforço duro para reconquistarmos a liberdade ameaçada.

Tivemos violentas luctas partidarias, que accendiam odios figadaes
entre os individuos de uma mesma familia.

Depois da Regeneração, a vida publica tornou-se mais calma, mas os maus
processos de administração trouxeram os desiquilibrios orçamentaes,
as difficuldades financeiras, a falta de credito, os embaraços
economicos, que dão um mal-estar geral.

Como ultima desgraça, empobrecemos.

E n’isso estamos.

A nossa lingua é triste, exprime melhor a dolencia, o soffrimento
moral, do que os pensamentos alegres e vivos.

Falta-lhe o colorido e o gorgeio de outros idiomas neo-latinos: do
francez, que é uma lingua de passaros; do italiano, que é uma lingua
de musicos. Falta-lhe o vigor varonil do hespanhol, lingua aliás
menos harmoniosa do que as outras duas, mas que tem a bravura como
compensação.

Orgulhamo-nos de possuir a palavra «saudade», que exprime melhor do que
qualquer outro vocabulo das linguas estranhas o doer da ausencia, isto
é, um pensamento triste, consolação unica das almas inconsolaveis por
effeito de uma separação dolorosa.

Escreveram alguns estrangeiros que somos um povo de namorados.

Este conceito sôa como diagnostico de uma psychose nacional; exprime
a nossa sensibilidade doentia excessivamente vibratil. Mas o amor dos
portuguezes é sempre uma tortura, nos poetas e nos outros.

D’ahi vem que toda a nossa poesia lyrica é soluçante e dolorida, desde
Bernardim Ribeiro e Camões até Soares de Passos e Antonio Nobre; facto
que tambem se reconhece nos poetas bohemios como Bocage, que perde o
seu tom alegre e esturdio logo que roça pelo lyrismo subjectivo.

O povo pertence á mesma raça dos poetas, vive e respira no mesmo meio
geographico e social e, á parte a educação litteraria, soffre como
elles.

Portanto tambem canta como elles, ferindo a nota da tristeza,
queixando-se do seu destino.

É ainda mais desgraçado, e por isso é mais triste.

Não é preciso, para explicar o estado permanente da alma nacional,
exagerar a influencia arabe, nem filiar n’ella, exclusivamente, a
melodia plangente do _Fado_.

É certo que no Alemtejo o rythmo das canções populares é lento e
arrastado, no que pode admittir-se até certo ponto o effeito de uma
occupação arabe mais longa do que nas provincias do norte.

Mas esse rythmo não chega a ser choroso e cortante como o dos
_Fadinhos_, nem tem a mesma expressão de melancolia acabrunhada,
esmagadora, que distingue o _Fado_.

Em todo o paiz ha vestigios «dos mouros», como diz o nosso povo. São
communs a todas as provincias as lendas das mouras encantadas. No
norte, ainda apparecem as janellas de rótulas; no Alemtejo e Algarve os
biôcos das mulheres.

Sem embargo, o _Fado_ não está em todas as provincias de Portugal na
alma do povo, nem por intuição, nem por tradição. Vai aonde o levam;
e algumas povoações menos progressivas, acreditando aliás nas lendas
mouriscas, repellem o _Fado_, preferem-lhe as suas canções locaes,[12]
com que foram embaladas desde a infancia, e que traduzem melhor a
tranquilla resignação, a paz saudavel da sua lide agricola.

O baluarte do _Fado_ continua a ser, além de Lisboa, as tabernas dos
seus arredores e as do Ribatejo, frequentadas por maltezes, toureiros,
cocheiros e almocreves que estão em constante communicação com a
capital.

Mas nem ahi mesmo tem entrado na vida dos campos.

A guitarra, o instrumento de melhor apropriação ao _Fado_, é que
nos veio dos arabes; essa sim. É filha do alaude musulmano, e foi
naturalmente conservada pelos jograes mouriscos. Alguns estrangeiros
chamam-lhe ainda «guitarra mourisca» para a distinguir do instrumento a
que dão o nome de--guitarra--e que não é outra cousa senão o violão ou
a viola franceza.[13]

Mas não se diga que a guitarra, por via da sua origem, trouxe comsigo a
musica arabe, e que a melodia do _Fado_ proveio d’esta dupla origem.

Parece ter sido no seculo XVIII que reviveu entre nós a tradição
arabe da guitarra: pelo menos foi em 1796 que Antonio da Silva Leite
publicou um methodo, considerado hoje como o primeiro que se imprimiu
em Portugal, certamente na espectativa de encontrar mercado favoravel.

Não padece duvida que n’esse seculo a guitarra serviu entre nós para
executar «sonatas» e acompanhar «modinhas», muitas das quaes não
glosavam assumptos tristes, nem cantavam a fatalidade amarga do Destino.

Instrumento suave e relativamente perfeito, a guitarra adapta-se com
facilidade aos requebros e á ternura das canções galantes e sentidas.

Fez a sua epoca de «sonatas» e «modinhas» e identificou-se depois com
o _Fado_ por um conjunto de disposições favoraveis para os soluços do
amor, para os gemidos de desventura.

Mas os proprios fadistas, na sua ancia de encontrar um instrumento que
exprimisse ainda melhor toda a doçura gemente do _Fado_, abandonaram
algum tempo a guitarra quando appareceu o bandolim.

Tanto elles não tinham a intuição de que o _Fado_ e a guitarra fossem
irmãos gemeos.

A guitarra luctou então pela existencia e procurou combater o seu rival
bandolim. Alindou-se; tratou de melhorar-se. Mudou a sua afinação,
que era de cravelhas e chave, para a elegante chapa-leque; os seus
pontos que eram, em algumas, 12 e, em outras, 14, passaram a 17. As
cordas tambem de 10 passaram a 12. E foi assim, que vendo em litigio
o monopolio do _Fado_, a guitarra se habilitou a executar trechos de
operas, como acontecia nas mãos de João Maria dos Anjos.

A toada do _Fado_ obedece a um padrão, a um typo musical, descripto
segundo a technica pelo erudito professor Ernesto Vieira:

«Existe uma grande quantidade de melodias sobre o fado, e a cada
momento os cantores populares inventam outras; mas todas vasadas no
molde primitivo que é o seguinte: um periodo de oito compassos em ²⁄₄,
dividido em dois membros iguaes e symetricos, de dois desenhos cada um;
preferencia do modo menor, embora muitas vezes passe para o maior com a
mesma melodia ou com outra; acompanhamento de arpejo em semicolcheias
feito unicamente com os accordes da tonica e da dominante, alternados
de dois em dois compassos.»

O fadista chama ao simples acompanhamento do canto: _Fado corrido_.

Mas fora d’este caso, quando não ha cantor, o guitarrista «phantasia
muitas variações sobre a mesma melodia», abandona-se á inspiração de
momento, borda floreios e ornatos.

Referindo-se em geral ás nossas canções, diz Theophilo Braga: «A
pobreza ou simplicidade da Melodia portugueza provém-lhe da falta de
melismos, ornatos, floreios estranhos, como acontece com as melodias
hespanholas, muito pittorescas, mas cheias de ornatos dos arabes.»[14]

Ora, esta theoria applicada ao _Fado_, na sua mais pura e inicial
expressão, que é o canto (porque as variações são artificios que
resultam de motivos primarios) exclue por sua vez a cooperação
ornamental dos arabes na melodia do _Fado_, que é simples, ingenua,
_corrida_.

E tanto assim é que o sr. Theophilo Braga, descrevendo em outros
logares o typo do _Fado_, mostra-o como sendo «uma longa narrativa,
entremeiada de conceitos grosseiros e preceitos de moralidade, com uma
forma dolorosa, observação profunda, graça despretenciosa, _monotonia
de metro e de canto_, que infundem pesar quando os sons saem confusos
do fundo das espeluncas. O rythmo d’este canto é notado com o bater do
pé e com desenvoltos requebros.»[15]

                   [Illustration: FADO DO MARINHEIRO

  (Este Fado é o mais antigo de que diz ter tido conhecimento o velho
                 guitarrista Ambrosio Fernandes Maia)]

A monotonia de metro e de canto no _Fado_, como o douto professor
observou, contém-se justamente nos limites de simplicidade de todas as
melodias populares portuguezas; vê-se, portanto, que os arabes, que
deixaram vestigios de ornato na musica hespanhola, apenas deixariam
no rythmo de algumas das nossas canções um tenue vestigio da sua
dominação, e que o _Fado_ nasceu independentemente d’essa remota
influencia.

Quer-nos parecer que os _Fados_ da actualidade estão mais proximos,
na indole como no tempo, dos _lunduns_ africanos do que dos _hudas_
arabes.

Impressionado pela singela estructura musical do _Fado_ corrido, notou
o professor Rœder, director do Conservatorio de Boston, que nos _Fados_
portuguezes a poesia era mais bella do que a melodia.

Este auctorisado depoimento testemunha ainda em favor da exclusão do
elemento arabe no _Fado_.

Theophilo Braga quiz achar uma explicação do facto apontado pelo
professor Rœder, e sustentou que acontecia em Portugal o que se dá
entre todos aquelles povos, cuja civilisação assenta no municipalismo:
uma efflorescencia de lyrismo pessoal, emotivo, que trasborda da alma
para o verso.

Pela nossa parte não remontaremos tão longe, nem tão alto.

O municipalismo trouxe, é certo, uma vida tranquilla, um bem-estar
social ás povoações que o acceitaram como regimen administrativo. A
organisação municipal no nosso paiz teve o caracter de uma intima
aggremiação familial, em que os dirigentes defendiam zelosamente os
interesses da communidade, não vacillando, quando era preciso, em bater
o pé deante da auctoridade real, ameaçando-a.

Os governados, confiando na vigilancia dos governantes, não tinham que
pensar na autonomia e defeza do municipio: podiam entregar-se a si
mesmos, dar largas aos seus pensamentos de goso pessoal, expansão ás
suas emoções e ideaes mais intimos.

Era, não ha duvida, uma condição favoravel ao desenvolvimento do
lyrismo emotivo.

Mas o municipalismo está hoje decadente em Portugal pela absorpção
tutelar dos governos e pela indifferença do povo. As franquias
municipaes teem sido profundamente cerceadas. E comtudo não corresponde
a esse facto uma sensivel depressão do instincto poetico do nosso povo,
cuja faculdade de improviso se transmitte de geração em geração.

Esta faculdade póde ter explicação na exagerada sensibilidade dos
portuguezes, no seu immenso sentimentalismo, que encontra um meio
propicio á inspiração nas circumstancias precarias e por vezes
dolorosas do paiz.

    Quem canta seus males espanta,
    Quem chora seus males augmenta,

diz o nosso povo como um axioma de therapeutica prática para curar as
doenças da alma.

O _Fado_ abre uma valvula de segurança ao desafogo da escória social,
tão abundante em todas as capitaes, especialmente em Lisboa, que é uma
cidade indolente e pobre.

Todo o portuguez é poeta. São numerosos os improvisadores em Portugal,
até nas classes menos cultas, e especialmente entre ellas.

A lingua parece auxiliar esta predisposição hereditaria, tradicional,
não só por ser triste e convidar á cadencia dolente, mas tambem por se
adaptar facilmente á metrificação, especialmente á redondilha, que se
encontra feita e perfeita em todos os prosadores.

Castilho deu-se, com uma paciencia de cégo, ao trabalho de «medir»
a prosa de alguns classicos, e achou dentro d’ella a contextura
espontanea de varios metros.

Os musicos em Portugal não são tão abundantes como os poetas, o que
mostra que se repete uma banalidade, com resaibos mythologicos, quando
se diz que a musica é irmã da poesia.

Aprendemos sem esforço as melodias simples e singellas, como as do
_Fado corrido_, porque são como que uma resonancia natural do proprio
genio da lingua, uma especie de metrificação musical, parallela á
versificação instinctiva do povo.

Mas os bons compositores de musica, tanto nas classes illustradas como
nas populares, não avultam pelo numero.

O _Fado_ das ruas, cujo rythmo é facil, muito adaptavel á memoria e
ouvido do povo, póde ter escasso merito litterario e artistico, mas tem
sempre um alto valor ethnographico: é a historia cantada das classes e
dos individuos inferiores.

Não padece duvida que muitos dos nossos _Fados_ populares provéem de
pessoas mais instruidas do que o povo; mas são escriptos para elle, que
não os assimilará se os não entender.

Por isso grande numero dos nossos _Fados_ mira á observação de
phenomenos sociaes quotidianos, de interesses e particularidades
de classe, ao retrato e biographia de typos da rua, quanto mais
despresiveis mais apreciados pelo povo, que os conhece de perto.

Outros _Fados_, especialmente os politicos, e os que celebram algum
acontecimento grave, são uma exploração de momento, um recurso de
occasião, que pretende aproveitar a sensação causada no povo tanto
pelas tranquibernias dos governos e dos collegios eleitoraes, como
pelos factos de importancia occorridos nas classes superiores.

De modo que, póde bem dizer-se, o _Fado_ é em nossos dias um poderoso
instrumento de divulgação, que se transmitte facilmente, por meio da
imprensa, com uma rapidez electrica.

Sob o ponto de vista da satyra e do epigramma, os _Fados_ substituem os
mordentes _Pater noster_ de outr’ora, que não encontravam tão faceis
meios de circulação como aquelles que a publicidade moderna proporciona.

Camillo, referindo-se a um _Pater noster_ castelhano, que satyrisava
Clemente VII, diz com razão: «É o que hoje chamaríamos o _Fado do
Papa_.»

[Illustração: Caricatura do typo fadista no cortejo com que os
estudantes da Escola Polytechnica de Lisboa celebraram a publicação do
«Decreto do cuspo».]


NOTAS DE RODAPÉ:

[1] _A lingua portuguesa, noções de glottologia geral e especial
portugueza_, por F. Adolpho Coelho.

[2] _Historia do theatro portuguez no seculo XVIII_, pag. 153.

[3] O sr. visconde de Castilho (Julio) quando, ao descrever uma noite
de S. João na quinta da Boa Vista em Carnide, põe Vieira Luzitano, que
nasceu em 1699, a arranhar na banza, como outros rapazes, «os accordes
lacrimosos e dulcissimos de um fado», dá a esses accordes um nome que
se não podia referir á epoca do serão, mas emprega uma designação
generica em o nosso tempo, por dar a impressão da indole melancolica
que sempre tiveram entre nós as canções populares.

Tomada ao pé da lettra, com relação áquella época, a palavra _Fado_
seria um anachronismo.

[4] «É um canto plangente, estremamente singelo em estylo de fabordão.
Pode-se por isso acreditar na sua origem popular; tem pelo menos esse
caracter.» Ernesto Vieira, _A arte musical_, n.ᵒ 79, IV anno.

[5] _A ultima nau portugueza_, reminiscencias por Theodoro José da
Silva, Lisboa, 1891.

[6] _O Povo Portuguez nos seus costumes, crenças e tradições_, vol. I,
pag. 62.

[7] _O Povo Portuguez nos seus costumes, crenças e tradições_, vol. I,
pag. 385.

[8] Pag. 321.

[9] Ainda em 1886 o sr. Borges de Figueiredo escrevia no seu livro
_Coimbra antiga e moderna_: «A viola foi sempre um dos instrumentos
mais favoritos dos conimbricenses. Nas serenatas do Mondego e n’outras
pelas ruas e suburbios da cidade, reina ella a par da flauta e do
violão (viola franceza), já enchendo os ares de suas harmonias, já
formando o acompanhamento de graciosos cantares.»

[10] _Revista Portugueza_, n.ᵒ 6, 1894-95.

[11] No mesmo periodico, n.ᵒ 1.

[12] Os nomes d’estas canções variam, segundo o seu genero, de terra
para terra: são _cantigas_, _modas_, _lôas_, _reisadas_, _chulas_,
_trobos_, _remances_ (nos Açores, _aravias_) _jacras_ (xácaras) etc.

[13] Ernesto Vieira, _Dicc. Mus._

[14] _A Tradição_, revista de ethnographia portugueza, IV anno, n.ᵒ 1.

[15] _Historia da poesia popular portugueza_, pag. 89, e _Epopeas da
raça mosarabe_, pag. 321.



                                  II

                               Fadistas


O facto de termos encontrado nos _Mysterios do Limoeiro_ a palavra
_fadista_ (como termo de calão e por isso graphada em italico) sem que
até essa epoca (1849) appareça qualquer vestigio do vocabulo _Fado_ ou
_Fadinho_ na accepção de cantiga popular, leva-nos á conjectura de que
foi da moderna nomenclatura da classe que derivou o nome da canção, em
vez de ser da canção que proviesse o nome á classe.

Entende-se por fadista a pessoa que cumpre um mau destino; seja homem
ou mulher, prostituta ou rufião. E aqui ha a notar que o vocabulo fado
tomou em calão um sentido exclusivamente pejorativo: Vida do fado, a
má vida; moça do fado, a rameira. Umas palavras geram outras: de fado
(destino) veio fadista; fadistar, levar vida de fadista; afadistar-se,
adquirir ares e modos de fadista; fadistagem, a conectividade da gente
de mau fado, a pratica de suas tunantadas e proezas; fadistice, a
chibança ou prosápia de fadista; _Fado_ ou _Fadinho_ (e _Faduncho_,
aliás menos vulgar) canção em que os faditas lastimam o seu destino.

«O _Fado_, escreve Palmeirim, é de ordinario a historia veridica e
romanesca do homem que de guitarra em punho extasia os ouvintes,
narrando-lhes as tribulações da sua vida ou os incidentes e peripécias
dos seus amores. O mote, a divisa do fadista é:

    Eu hei de morrer cantando
    Pois que chorando nasci.»[16]

De cantar _o seu fado_ veio a dizer-se, por generalisação, «cantar o
Fado». E esta palavra tomou a accepção de cantiga de fadistas: como
em italiano _barcarola_ é a canção dos _barcaiurolos_ (gondoleiros)
e no portuguez--_serrana_--é a canção dos habitantes das montanhas
(serranos).

É claro que em todos os tempos existiram na sociedade portugueza, e nas
outras, como escumalha vil da civilisação, os representantes da classe
a que hoje se dá o nome collectivo de _fadistas_.

Os autos de Gil Vicente e do Chiado deixam uma nitida impressão do que
era essa despresivel classe no seculo XVI em Portugal.

N’elles apparece a par da boneja (prostituta) o rufião, que a explora;
o rascão bebado e desordeiro, ocioso e libertino, trovista e tangedor
de taberna; o vaganau, etc.

No seculo XVIII encontramos, segundo a lição de Bluteau, «marotos»,
ganisaros ou janisaros, etc.

                    [Illustração: TYPOS DE FADISTA

                     (Copias de bonecos de barro)]

Só desde o fim da primeira metade do seculo XIX nos apparece, porém, a
designação _fadistas_, com a de faias,[17] faiantes,[18] bailhões,[19]
etc; e a de _Fados_ como nome generico das suas canções.

O _Fado_, n’esta accepção, é uma palavra adoptada ha meio seculo ou
pouco mais.

O _Fadista_, no seu aspecto moderno, tem surgido aos nossos olhos como
um typo social que os escriptores contemporaneos observam e descrevem.

«Chama-se _Fadista_--diz Theophilo Braga--ao vagabundo nocturno que
no meio das suas aventuras modula essas cantigas (_Fados_); no velho
francez, _Fatiste_ significa poeta, e Edelestand Du Meril pretende que
esta designação vem do scandinavo _fata_, vestir, compor.»[20]

Apoiado na chronologia, crêmos, como já exposémos, que não foram as
canções que deram o nome aos fadistas; mas que, pelo contrario, d’elles
o receberam as canções.

Tanto mais que, entre nós, a palavra fadista não tem a significação
restricta de tangedor e cantor ou poeta de _Fados_, mas é commum
a todos os individuos que vivem no mesmo meio de depravação e
libertinagem, sejam de um ou de outro sexo.

E n’esta accepção generica parece tel-a já empregado o padre Rabecão em
1849, porque o seu fadista da taberna da Madragôa bebe e não canta.

A evidencia do typo--fadista,--de que Lisboa é alfòbre copioso, tem-se
imposto, repetimos, á observação dos bellos-espiritos da litteratura
moderna, alguns dos quaes, e dos mais brilhantes, o retrataram com uma
fidelidade flagrante, como vamos vêr.

Ramalho Ortigão, nas _Farpas_, lança uma affirmação demasiado absoluta
quando diz: «Em cidade alguma da Europa existe uma palavra de
significação analoga a esta--_o fadista_.»

É claro que o typo humano não apresenta o mesmo aspecto em todas as
raças e nações. O clima e a civilisação modificam-n’o, alteram-n’o.
Mas ha um fundo cosmopolita, de equivalencia social, que supprime as
distancias e as fronteiras.

Assim, pelo que respeita á escoria da sociedade, existe em Hespanha o
_chulo_, e em França o _souteneur_, que correspondem ao nosso rufião.

Todos elles vivem á custa de mulheres perdidas, cantando e bebendo nas
tabernas e nos bordeis, como os fadistas portuguezes.

Em Roma ha os _camorristi_, gente de «mala vita», que dão uma facada
por gosto, e vivem na devassidão, como os bailhões e faias da
fadistagem de Lisboa.

Em Napoles o _lazarone_, representando a ultima classe do povo, é um
inutil perigoso como o nosso fadista.

Fóra da Europa, no Brazil, existe o _capoeira_.

Em toda a parte a sociedade tem a sua bôrra immunda, e uma palavra, ou
mais de uma palavra, para definil-a.

Precisamos, pois, investigar qual seria o pensamento de Ramalho
Ortigão, que não desconhece todos estes factos, ao escrever aquella
phrase, em que parece conter-se uma affirmação gratuita por
demasiadamente extensiva.

Quereria, provavelmente, dizer que, apesar do povo ser em toda a parte
fatalista, em nenhuma outra lingua ha uma palavra que lance unicamente
á fatalidade do destino a responsabilidade dos actos praticados pela
ultima classe social.

O illustre escriptor lembra que o fadista moderno continua os
espadachins populares que, no seculo XVIII, suciavam com os fidalgos em
arruaças e espancamentos nocturnos.

Depois fixa o perfil do fadista, a seguros traços, dizendo:

«O fadista não trabalha nem possue capitaes que representem uma
accumulação de trabalho anterior. Vive dos expedientes da exploração
do seu proximo. Faz-se sustentar de ordinario por uma mulher publica,
que elle espanca systematicamente. Não tem domicilio certo. Habita
successivamente na taberna, na batota, no chinquilho, no bordel ou na
esquadra da policia. Está inteiramente atrophiado pela ociosidade,
pelas noitadas, pelo abuso do tabaco e do alcool. É um anemico, um
cobarde e um estupido. Tem tosse e tem febre; o seu peito é concavo,
os braços são frageis, as pernas cambadas; as mãos, finas e pallidas
como as das mulheres, suadas, com as unhas crescidas, de vadio; os
dedos queimados e ennegrecidos pelo cigarro; a cabelleira fétida,
enfarinhada de poeira e de caspa, reluzente de banha. A ferramenta
do seu officio consta de uma guitarra e de um _Santo Christo_, que
assim chamam technicamente a grande navalha de ponta e triplice calço
na mola. É habitado por uma molestia secreta e por varios parasitas
da epiderme. Um homem de constituição normal desconjuntar-lhe-hia o
esqueleto, arrombal-o-hia com um sôco. Elle sente isso e é traiçoeiro
pelo instincto de inferioridade. Não ataca de frente como o espadachim
ou o pugilista, investe obliquamente, tergiversando, fugindo com o
corpo, fazendo fintas com uma agilidade proveniente do seu unico
exercicio muscular--as _escovinhas_. Não ha senão uma defeza para o
modo como elle aggride: o tiro ou a bengala, quando esta seja manejada
por um jogador estremamente destro. A guitarra debaixo do braço
substitue n’elle a espada á cinta, por meio da qual se acamaradavam com
a nobreza os pimpões seus ascendentes do seculo XVII. É pela prenda de
guitarrista que elle entra de gôrra com os fidalgos, acompanhando-os
ainda hoje nas feiras, nas touradas da Alhandra e da Aldea Gallega, e
uma ou outra vez nas ceias da Mouraria, onde depois da meia noite se
vai comer o prato de _desfeita_, acepipe composto de bacalhau e grão de
bico polvilhado de vermelho por uma camada de colorau picante.»

Em seguida pormenorisa o traje tradicional do fadista: «a bota fina
de tacão apiorrado ou o salto de prateleira, a calça estrangulada no
joelho e apolainada até o bico do pé, a cinta, a jaleca de astrakan e o
chapeu arremessado para a nuca pelo dedo pollegar, com o gesto classico
do grande estylo canalha.»

Apenas lhe esqueceu um complemento da _toilette_: o penteado, as
melenas cuidadosamente lisas e repuxadas sobre as orelhas.

Descreve-o, finalmente, cantando o _Fado_:

«A guitarra, seu instrumento de industria e de amor, dedilha-a elle
com um desfastio impávido, deixando pender o cigarro do canto do
beiço pegajoso, gretado e descahido; com um olho fechado ao fumo do
tabaco e o outro aberto mas apagado, dormente, perdido no vago em uma
contemplação imbecil; o tronco do corpo cahido mollemente para cima do
quadril; a perna encurvada com o bico do pé para fóra; o _cachucho_ da
amante reluzindo na mão pallida e suja. Tambem canta algumas vezes,
apoiando a mão na ilharga, suspendendo o cigarro nos dedos, de cabeça
alta, esticando as cordoveias do pescoço e entoando a melopéa dos
fados, em que se descrevem crimes, toiradas, amores obscenos e devoções
religiosas á Virgem Maria, com uma voz soluçada, quebrada na larynge,
acompanhada da expressão physionomica de uma sentimentalidade de
enxovia, pelintra e miseravel.»

Uma exuberante tatuagem é um dos caracteristicos do corpo do fadista;
ás vezes, não só exuberante, mas tambem muito complicada de figurações
caprichosas, algumas das quaes, como o signosamão, cuja interpretação
ethnographica está por fazer, livram, segundo a superstição
tradicional, de maus olhados e de espiritos ruins.

Na vida do fado este facto é commum tanto ao homem como á mulher.

O rufião tatúa a amante, pacientemente, como se estivesse produzindo,
com ternura e enthusiasmo, uma obra de arte; ou se tatúa a si mesmo ou
se deixa tatuar pelos seus pares.

Luiz Augusto Palmeirim tambem descreveu o fadista.

Nota que não tem familia, é engeitado da Santa Casa, para assim ir ao
encontro da predestinação, do mau fado, que vem do berço, e com que o
fadista pretende desculpar toda a sua existencia de vicio e torpeza.

Mas ha muitos que teem familia, paes conhecidos, e que são levados á
fadistagem por uma espontanea tendencia de baixos instinctos, pela
companhia e convivencia de _faias_, pela desmoralisação do Limoeiro
onde foram uma primeira vez expiar qualquer rapaziada leve; ou ainda
pela suggestão nociva do bairro em que nasceram e moram.

A _Bisnaga escolastica_, «colhida do Campo da Cotovia pelo lavrador do
Palito Metrico», conta as brigas e contendas travadas entre os rapazes
do Bairro Alto e os de Alfama, a murro e calhau.

Estes dois bairros, antigas escolas de fadistagem, habilitavam, assim,
praticamente, desde a infancia, os continuadores das suas tradicionaes
escarapelas e zaragatas, ainda hoje não extinctas completamente.

Alfama e o Bairro Alto vem, pois, educando por suggestão local os
fadistas do futuro.

Pato Moniz, na _Agostinheida_, querendo mostrar que o padre José
Agostinho de Macedo arranchava com faias e bailhões, recebendo d’elles
apoio, tambem se refere a essas pugnas, ás vezes cruentas, que
preparavam cidadãos para a vida do fado:

    «Andava n’este tempo accêsa a guerra
    Entre a malta de Alfama e Bairro Alto,
    Gingantes campeões afragatados,
    Miqueletes[21] revéis, cujas façanhas
    Em macarróneo metro celebradas[22]
    Tem dado assumpto a um par de gargalhadas.
    E no sitio da Penha[23] aos dias santos
    Com poitas,[24] e com fundos de garrafa,
    A dente, á unha, á bordoada, a ferro,
    Latindo tão raivosos como um pêrro,
    Travavam cruentissimos combates;
    Não que morresse algum, mas abundavam,
    Entre o furor de punhos e pedradas,
    Bolas partidas, ventas esmurradas!
    De uma das taes guerrilhas tinha o mando
    O _General Luneta_, homem provindo
    De linhagem illustre, e por seus séstros
    Entre a mais bréjeiral, çáfia[25] cambada,
    Entre a relé mais pifia confundido;
    E por seus capitães eram com elle
    Claros pimpões, a flor da pangayada.[26]»

Pato Moniz illustra o texto com a seguinte nota: «Bem sabida, e bem
fallada foi em Lisboa a guerra da rapazia no sitio da Penha de França;
e muito mais depois que n’ella entraram o _General Luneta_ (Dom Th.
d’A., cujo rival no generalato era um façanhoso Pretalhão)[27] e alguns
outros, que, posto serem geralmente havidos em ruim conta, nunca se
esperou que chegassem a tanto.»

Vê-se mais uma vez que no principio do seculo XIX ainda não eram
correntes as palavras fadista e fadistagem. A 1.ª edição da
_Agostinheida_ é de 1817. Pato Moniz usa todas as expressões que
podem pintar a escumalha social: çáfia cambada, gingantes campeões
afragatados, relé mais pifia, flor da pangayada, etc. só lhe
faltava ainda a palavra fadistagem. Se já então pudesse dispôr do
vocabulo--fadistão, com certeza o haveria atrambolhado ao padre José
Agostinho, que alguma coisa teve de isso, em verdade.

Casos ha em que os fadistas provéem de pais honestos, de familias
decentes e remediadas, e até, facto que já foi mais vulgar do que
hoje,--porque as raças nobres tendem a extinguir-se,--tem havido
fadistas descendentes de familias illustres.

Estes, eram jovens fidalgos que viviam com picadores e cocheiros,
toureiros, arruaceiros e espadachins.

D. Affonso VI, quando infante, e D. Francisco, irmão de D. João V,
viveram com a ralé que hoje se chama fadistagem.

D. Miguel de Bragança foi creado no mesmo teor de vida; mas depois, no
exilio, regenerou-se completamente.

Outros fidalgos houve, porém, que menos felizes chegaram até á facada,
ao homicidio, e tiveram de ir cumprir no ultramar uma pena infamante.

Para ser fadista é necessario um longo tirocinio: aprender a tocar
guitarra e cantar o _Fado_, a fazer «escovinhas», _riscar_, a esconder
a navalha na manga da jaleca, a puxar as melenas, a enfiar as calças
esticadas, e a fallar o calão.

Vemos ás vezes rapazes do povo trabalhando em qualquer officio, mas já
vestidos de fadistas: andam na aprendizagem, por vocação e por gosto.

Não esperam senão a monção favoravel que os ha de levar definitivamente
para a vida do fado.

Essa monção é qualquer acontecimento de familia--a morte do pai, da mãe
ou de algum outro parente que ainda lhes impunha certo respeito.

Partido esse laço, adeus trabalho, adeus honra, adeus dignidade e
consciencia.

Até o seu appellido perderão: hão de passar a ser conhecidos por um
alcunha.

Ha só um caso em que o noviço do fado ainda pode salvar-se: é se
não conseguiu livrar-se, por debilidade physica, de sentar praça no
exercito.

Palmeirim nota com razão: «O fadista, feito soldado, deixa de ser
homem, é um automato! Os artigos da guerra arrefecem-lhe a inspiração,
entibiam-lhe o enthusiasmo pela poesia, sua irmã de infortunio.»

Mas isso não acontece sempre, não é regra geral, porque muitas vezes
o iniciado na fadistagem, depois de ter sentado praça no exercito ou
na armada, conserva os seus amores nos bordeis, frequenta os bairros e
botequins suspeitos, arma desordens com a policia e com os soldados da
guarda municipal, e chega o ser um heroe... da Mouraria.

O marinheiro é muito mais fadista do que o soldado: talvez por que
a guitarra de bordo seja o traço de união que o põe em constante
communicação espiritual com os outros fadistas.

Nos mares da India ou da China o _Fado_, tangido por elle ao luar, no
convés do navio, lembra-lhe Lisboa, a Mouraria e Alfama; lembra-lhe a
sua terra, se é saloio ou se é natural do Ribatejo.

O fadista saloio, diga-se de passagem, tambem tem tanto «caracter
de classe», que se conhece pela apparencia: a carapuça ou o chapeu
desabado, a melena repuxada, a calça de bocca de sino, o ar gingão e
canalha.

Traz na carroça a guitarra e toca o _Fado_ nas tabernas da estrada:
ás vezes combina, com os maltezes, fazer um crime, assaltar um casal
solitario e matar os donos.

Ainda outro escriptor portuguez descreveu o fadista: é Julio de
Castilho no 1.º volume da sua _Lisboa antiga_.

«Deixal-o lá (o _Fadista_) sentado na borda do mocho da taberna,
arranhar na banza truanesca os amores do conde de Vimioso, mais os
seus; deixal-o ir saracotear-se na espera dos toiros, todo chibante com
a sua calça de bocca de sino, e a sua jaleca de alamares; deixal-o ir
para as hortas ao domingo, deleitar, com os chistes ambiguos do ultimo
fadinho corrido, os bulhentos freguezes da Perna de Pau e do Alto do
Pina.

«Estou-o a ver encostado a uma ombreira, de chapeu para traz e mãos
cruzadas nas costas, com os olhos piscos do fumo azul de um cigarrito
engelhado, que de quando em quando lhe pende ao canto da bocca,
exprimir no rosto encorreado, na fronte baixa e estreita, na nuca de
cão de agua, e na melena recurva, que elle enxota com as costas da
mão, todos os segredos ignobeis dos antros que lhe são theatro. A
sua voz avinhada e rouquenha come umas palavras, e estropia outras,
ao prantear a morte da Severa, n’um tom silvestre de acre melancolia
indescriptivel.

       *       *       *       *       *

«O fadista do Bairro Alto é o _marialva_ do rés do chão da sociedade,
escória das tendencias elegantes de uma cidade grande, producto
bastardo da ociosidade e do vicio. É o triste frequentador da galeria
das causas crimes; e muita vez o pobre Othello obscuro da parte de
policia. O fadista é um aleijão nos costumes; tarde lhe chegará a sua
vez de regeneração, lôbrego vadio inconsciente, a quem o Limoeiro
fascina, com o magnetismo escancarado de um sapo collossal.»

O fadista tem, nos seus bairros, botequins e tabernas especiaes,
que frequenta todos os dias ou todas as noites: ahi se discutem os
assumptos da classe, rixas, amores, ciumes, crimes da vespera ou do dia
seguinte...

Fialho d’Almeida, nos _Gatos_,[28] coloriu com duas pinceladas
intensamente descriptivas um botequim da Carreirinha do Soccorro:

«Ás oito horas, no corredor estreito e comprido que é a sala do
botequim de fadistas que lhes disse, todo occupado com duas filas
de mesas onde os freguezes abancam, sentados em mochos de pau, para
saborear a pequenos goles, uma cerveja que parece feita d’ourina
albuminurica, ou qualquer chavena d’esse café negro e pegajoso que
a Mouraria designa pelo pittoresco nome de _carócha_; ás oito horas
não ha no botequim um unico logar, devoluto. Por um rótula de dois
porticos, ao fundo, intercalada de prateleiras de garrafas, d’onde se
franjam, por transparencia, fogos de rubis de creme rosa d’aguardente
de ginjas, esmeraldas de Kermann, grandes topasios de licor de canella
e tangerina, pousa o busto do cafézeiro, em camisola, um gordanchudo,
barbaceno e alvar, que trata a freguezia por _gajos_, e coça as piugas
nos entreactos da confecção dos capilés. De roda, outros gallegos
ajudam, indo do fogão para o balde das lavagens, da gaveta das colhéres
para os _trés-fonds_ da baiuca, d’onde nos intervalhos de silencio
vem um guinchar d’enormes ratazanas. Nas paredes, quadrinhos de
mulheres offerecendo os seios á sucção de quem nas observa--bicos de
gaz flambando sob tulipas de loiça pendentes do taboado; e por entre
as filas de bancos onde mal cabe a perna do moço que faz o serviço,
atravessa de quando em quando uma especie de _rodeuse_ da rua Suja,
chuchada, vestida de branco, com tamancos nos pés e lesmas de cabello
ruivo sob a testa.»

A pintura é fiel, palpitante de realidade, e o scenario dos botequins
fadistas não muda essencialmente de bairro para bairro.

O publico dá-lhes o nome de botequins de _lepes_; em calão, _lepes_
quer dizer dez réis. Esta designação exprime a miseria dos _habitués_,
e está um pouco antiquada, porque hoje a despesa a fazer n’aquelles
botequins excede a de outros tempos. Todos elles ou quasi todos elles
teem piano e pianista, que exige uma diaria certa; e as _camareras_,
que servem as bebidas, vão arteiramente induzindo os freguezes a
maiores gastos.

De todos os botequins fadistas da actualidade o mais amplo é o do Veiga
no largo Silva e Albuquerque, onde aliás ha outro, o do Peres, afamado
pela _ginjinha_; na rua d’aquelle mesmo nome o botequim do Ramalho tem
uma roda abundante de _habitués_ da Mouraria.

No Bairro Alto o botequim da rua da Atalaya, n.ᵒ 100; em Alcantara,
o da Praça d’Armas, n.ᵒ 5; em Alfama o da Rosa Maria são os de maior
nomeada na fadistagem hodierna de Lisboa.

Nas tabernas, onde as iscas vieram desthronar a chanfana, tão decantada
no seculo XVIII por Tolentino e pelo Lobo da Madragôa, tambem o fadista
tem preferencias especiaes, segundo os bairros.

Em Alcantara, na rua do Livramento, a taberna do Otero é conhecida pelo
«armazém da meia noite», designação popular que por si mesma dá ideia
de um coio de fadistas noctivagos.

Na rua da Guia a taberna do _Manuel do Jogo_, na rua da Amendoeira a
taberna do _Cego_, no largo do Limoeiro a taberna do Pateo do Carrasco,
e na rua de S. Miguel a taberna do Batalha são fócos vulcanicos da vida
airada, onde o cheiro das frituras, do tabaco e do vinho condensam uma
atmosphera crassa, capaz de congestionar um Hercules.

Tanto aos botequins como ás tabernas se liga a tradição do _Fado_ no
piano, na guitarra ou na voz soluçante dos «filhos da Desgraça», elles
a ellas.

O fadista do Bairro Alto dir-vos-ha, se fôr consultado, que a guitarra
de Alda Gracinda, rameira da rua do _Diario de Noticias_, vale um
thesouro quando ella lhe põe as mãos.

Um dos primeiros cantadores do _Fado_, segundo a chronologia e a fama,
foi José Norberto, o saloio de Campolide. Em 1848 teria uns 50 annos de
idade. Era sympathico: boa cara, physionomia desanuveada.

Bulhão Pato conserva de memoria algumas glosas que lhe ouviu, e que
são muito caracteristicas da vida tradicional dos _Fadistas_ n’aquella
epoca e... ainda hoje.

    Lembras-te tu, meu bemsinho,
    De quando eu cantava o _Fado_
    Na taberna do Córado?
    Choviam copos de vinho:
    Foi dia de S. Martinho.

       *       *       *       *       *

    Estavas tu a assar castanhas
    Quando os meus olhos te viram.

    Quando nós fomos ás hortas,
    Passeiamos todo o dia.
    Á noite, ao passar as Portas,
    Me perguntaram p’la guia.
    Eu com a piella com que ia,
    Como ia trocando os passos,
    Fiz a «banzara» em pedaços
    E no fim da brincadeira
    Fui coser a bebedeira
    Na cadeia dos teus braços.

    Quando dei co’um matacão
    N’aquelle gajo á Esperança,
    Para arranjar a fiança
    Andaste em passo de cão.
    Vendestes o teu cordão,
    Teu capote se empenhou.
    Se hoje solto e livre estou,
    A ti o devo em verdade.
    E por tanta caridade
    Minha alma presa ficou.

Banzara é uma paragoge do calão--banza--synonymo de guitarra.

O bom cantador do _Fado_ requebra a voz com «sentimentalidade canalha»
e com a «intermissão de uns _oras_ e de uns _ais_ mui langorosos, o
_zing_ fadista de cervejarias e botequins de lacaios.»[29]

Curvado sobre a guitarra, como para ouvir melhor a voz d’esse
instrumento querido e suave, que parece dizer-lhe confidencias, ergue
de quando em quando a cabeça e põe os olhos no alto, acompanhando assim
as notas agudas que parece fugirem da terra para as regiões do sonho...

É um enlevo, um extasi, como podem sentil-o as almas que vegetam no
lôdo da crápula; é a «sentimentalidade canalha», de que falla Camillo;
a poesia da devassidão; é a mariposa que roçou no monturo e adeja para
seccar as azas no ar e na luz do espaço infinito.

Outro eximio cantador do _Fado_ foi o Pitalcante, filho do famoso
jogador de pau que se chamou José Maria Saloio.[30].

Presava-se de saber musica, pois estudára no Conservatorio. Chegou a
ser um Orpheu popular. Encantava as patrulhas com os seus descantes, a
ponto de algumas vezes o não prenderem ou de o soltarem depois de preso.

Foi verdadeiramente uma celebridade no seu genero, fazendo _pendant_ no
sexo masculino á Severa, que foi a mais insigne cantadora do _Fado_ e
que, por este e outros motivos, terá capitulo especial.

Bulhão Pato esteve para levar o Pitalcante a Alexandre Herculano,
quando o grande historiador já residia em Val-de-Lobos.

A tysica, fim vulgar nos fadistas e nos bohemios, cujos excessos os
consomem rapidamente, foi a doença que victimou o Pitalcante.

Devemos agora fallar do Salles _Patuscão_.

Era, como quasi todos os fadistas de um e outro sexo, enthusiasta pela
tauromachia, grande _aficionado_.

Tomou parte n’uma tourada de fidalgos, que se realisou na praça do
Campo de Sant’Anna, a 28 de agosto de 1859.

N’esta corrida foi cavalleiro o conde de Vimioso, então maior de
quarenta annos.

Salles era «moço de forcado»; e muito da intimidade do Vimioso.

Alto, moreno, bexigoso; pulso rijo: um valentão.

Diga-se desde já que foi elle o auctor do _Fado_ da Severa, quando ella
falleceu:

    Chorae fadistas, chorae, etc.

Não obstante a sua corpulencia e robustez, o Salles _Patuscão_ morreu
tysico, como Pitalcante.

O Sousa Casacão (ainda hoje muito lembrado na tradição popular) teve
notoriedade como cantador do _Fado_, e conservou essa evidencia até
depois de 1870.

Um dos seus _Fados_ predilectos fôra-o tambem da Severa; é o que
principia dizendo:

    É pena que o meu José,
    Sendo um esperto rapaz,
    Não saiba dizer Thomaz,
    Não possa dizer Thomé.
    Dizer nunca pôde o T
    Quando vem junto com O;
    O outro dia disse só
    Todo o _b a ba_ por si,
    Mas chegou ao _ta, te, ti_,
    E não pôde dizer _tó_.[31]

De 1860 a 1880 figuraram como cantadores do _Fado_: José Borrègo, José
Petiz, José Maria Enguia, José Carlos, Saldanha da Porcalhota, José
Maior, José Montaurino, Caetano, o _Calcinhas_, João Campanudo, José
Bento d’Oliveira, _Patusquinho_, etc.

Tambem, continuando as tradições fadistas da Severa, se tornaram
notaveis: Maria Cezaria (a quem foi dedicado um _Fado_ pelo guitarrista
Ambrosio Fernandes Maia), Luiza Cigana e Maria Paus.

Como guitarristas adquiriram renome, além de Ambrosio Fernandes Maia,
Antonio Candido, o _Visinho_; Thomaz dos Santos, o _Thomaz do Bairro
Alto_; Antonio Casaca, Manuel Casaca e José Casaca; José Gualdino, João
da Preta, Augusto Trajano o _Palhetas_ e João Maria dos Anjos.

Tanto o Anjos como Ambrosio Fernandes Maia publicaram methodos de
guitarra: o do 1.º foi editado pela livraria Pereira; e o do 2.º pelo
proprio auctor.

O Maia ainda vive e d’elle, por interposta pessoa, colhi interessantes
informações, sendo uma d’ellas que o _Fado_ mais antigo que conhece é o
do _Marinheiro_.[32]

Por isso o reproduzimos n’este livro.

Conheci, e ouvi muitas vezes, o João Maria dos Anjos.

Era eximio no _Fado_; sem embargo, gostava de tocar, em concertos
publicos, peças de maior responsabilidade artistica, como trechos de
opera, etc.

Uma d’essas composições era a _Marcha funebre de Luiz XVI_; de difficil
execução.

Sempre lhe manifestei opinião contraria a esta aristocratisação
artistica da guitarra; elle respondia-me:

--É para mostrar que a guitarra pode dar tudo.

Mas na praia da Ericeira (aonde elle ia todos os annos dar um concerto)
era encantador ouvil-o, por noites de luar, nas Ribas e nas Furnas,
variar prodigiosamente o _Fado_.

Diz a seu respeito o professor Vieira no _Dicc. biog. dos musicos
portuguezes_: «Entre varias pessoas distinctas que o apreciavam como
excellente tocador do instrumento nacional, conta-se a sr.ᵃ duqueza de
Palmella, que algumas vezes o mandou chamar para abrilhantar as suas
reuniões mais intimas.»

Tambem uma vez foi ao Paço no reinado de el-rei D. Luiz.

João Maria dos Anjos deixou um filho, que sentou praça no exercito
ultramarino.

Ainda ha pouco, vindo á metropole, me procurou.

O Anjos foi um guitarrista da epoca em que o _Fado_ entrou nas salas; e
em que a guitarra passou da mão do povo para a das damas illustres.

Diz-se que concorreu muito para esta ascensão nobilitante sua magestade
a rainha D. Maria Pia, encantada com a melodia simples e doce, que
constitue o fundo nacional dos nossos _Fados_.

Manuel Roussado (hoje barão do seu appellido) explorou no theatro
a corrente aristocratica do _Fado_, escrevendo a comedia _Ditoso
Fado_, que fez carreira na Trindade, representada por Taborda e Rosa
Damasceno.[33]

O assumpto da comedia é simples: _Violante_ e o _Doutor Saraiva_,
pessoas de boa sociedade, descobrem, momentos antes do seu casamento,
que são ambos doidos pelo _Fado_, e essa harmonia de pensamentos
completa a felicidade das suas almas.

Julio Cesar Machado refere-se á epoca da aristocratisação do _Fado_
lamentando-a como adaptação violenta e desnaturada.

«O fado é talvez filho bastardo do landum,[34] mas é mais bonito que
elle: os filhos bastardos, não se sabe por que, são quasi sempre mais
bonitos que os legitimos: este foi mais adiante, e logrou ser mais
formoso que o pai. O vagabundo nocturno assenhoreou-se d’elle durante
muito tempo; chegou a pensar que era preciso ter desenhos emblematicos
na mão, gravados com tinta e polvora, caracoes sobre a orelha e uma
morte ás costas para se poder entender bem a poesia d’essa musica, que
significa a tristeza das desgraças, amores que hajam tido por capella o
Aljube e o Limoeiro, o ciume da faca de ponta, o amargar ventura entre
grades, as saudades da patria, o suspirar do degradado...

«Isso não impediu que em todo o tempo um ou outro fidalgo tenha
querido dar-se a estudar os segredos d’aquella musica tão vaga, que
pede a maior parte do seu encanto ao sentimento do tocador e á doçura
plangente dos descantes: citam-se o marquez de F.[35], o conde de
V.[36]; ultimamente, uns poucos de mancebos, grandemente amadores
d’essa musica, e prendados com os dotes mais requeridos para tirarem
d’ella effeitos admiraveis, reunem-se ás noites n’alguma quinta dos
suburbios da cidade, e não seria facil dizer-se com que inspiração
ardente, n’aquelle campo, á luz das estrellas, suspiram as vozes
dos cantadores e as cordas maviosas das suas guitarras, poetica,
melancolicamente, como raios da lua por entre uma chuva de lagrimas.

       *       *       *       *       *

«Mas, desde que os fidalgos e os janotas gostam de ser fadistas, estão
os fadistas a querer parecer janotas e fidalgos, e não se pode contar
com elles; saiem-se já de casaca, em grande seriedade de _virtuoses_, a
dar concertos no Casino e no Circo, e o mais que se alcança d’elles é
contarem-nos a vida de Salomão e de David...

«Uma massada!»[37]

Effectivamente, no Casino do largo da Abegoaria, chegou a haver
concertos publicos em que se ouvia o _Fado_, com grande aprazimento do
auditorio fidalgo, cantado por algumas coristas dos theatros da capital.

O empresario d’estes concertos está ainda vivo e são: era Ernesto
Desforges.

Quando elle tratou de arrendar o Casino, perguntou-lhe o velho Figueira:

--Para que é?

Desforges respondeu com lealdade:

--Para dar concertos de guitarra.

Figueira replicou-lhe:

--Isso é um instrumento que se ouve de graça em todas as ruas. Ninguem
vai pagar para o ouvir.

Enganou-se. Os concertos, sob a direcção de João Maria dos Anjos,
tiveram um grande exito. No primeiro tocaram apenas 12 guitarristas; no
ultimo eram já 50.

Depois um allemão de appellido Gruder, que mais tarde figurou como
lithographo n’um processo de notas falsas, tambem foi explorar o _Fado_
e a guitarra para o Gymnasio.

A generalisação do _Fado_ explica a apparição de publicações, que lhe
diziam respeito, e tinham grande voga.

Publicaram-se:

_A guitarra_, de Souto Maior Judice.

A _Lyra do Fado_, de Manuel Antonio da Luz, que foi morrer a
Rilhafolles.

_O Piano e a Guitarra_, de Ernesto Cesar dos Santos, que a tuberculose
victimou aos 20 annos de idade.

_O Fado Liró_ e o _Fado do Marinheiro_, collaborados por Luiz F. da
Costa Soromenho (já fallecido), Patricio José de Mattos, a quem uma
paralysia atormentou os ultimos annos de existencia, e F. Napoleão da
Victoria, que tem hoje uma loja de livros (principalmente theatro) na
travessa de S. Domingos.

_O Fado Universal_, _A Lyra do Fadinho_, a _Lyra do Cantador_ (todos
de 1878) collaborados por Domingos Fernandes (Salazar Guerreiro),
fallecido; Patricio José de Mattos, A. Feliciano Corrêa, tambem
fallecidos; J. Rodrigues Chaves (actor, ainda vivo), Ernesto Cesar dos
Santos, J. Cordeiro (fallecido) e F. Napoleão da Victoria.

O _Pianinho_,[38] principalmente redigido pelo sr. José Ignacio de
Araujo, que ainda floresce com distincção em todos os generos de poesia
popular, apesar da sua idade avançada.

_O Cantador Popular_ e o _Fado Novo_, collaborados por P. J. Mattos, A.
F. Corrêa, Xavier de Paiva; o Vianna que foi collaborador do _Pimpão_
(_Antonio Vigas_), já fallecidos; e F. Napoleão da Victoria.

_Fado Chic_, _Fado Maritimo_, _Fado dos Jesuitas_, glosas de diversos,
limadas por F. Corrêa.

_O Fado Politico_, em que se apreciava a marcha dos partidos.

Ignoro quem fossem os collaboradores.

_O Fado exdruxulo_, para piano e guitarra, de Salazar Guerreiro.

_Cantigas do Fado_, de Luiz de Araujo.

Apenas vi a 3.ª edição, que é de 1881.

Outra collecção editada por Casimiro Baptista.

Appareceram alguns _Fados_ licenciosos, que a policia apprehendeu.

N’este genero tem-se publicado a _Guitarrinha innocente_ (innocente
por antiphrase, é claro) e o _Almanach do Fado brejeiro_, _Fado da
Padralhada_, etc.

Dá perfeita ideia do gosto com que o _Fado_ se ia generalisando, o
seguinte mote publicado em um dos folhetos que deixamos mencionados:

    Se isto assim continuar,
    Onde irá parar não sei!
    Veremos andar pela rua
    De guitarra o proprio rei.

Começaram a apparecer almanachs de cantigas do _Fado_, para acompanhar
e satisfazer o gosto publico:

_Almanach do Cantador_ (1871). Editor, Verol Junior.

_Almanach do bom fadista_ (1875), de Joaquim José de Mattos, já
fallecido.

_Almanach dos bons Fadinhos._ Editor, Verol Junior, Está publicado o de
1902.

_Almanach dos cantadores._ Editor, F. Silva, rua de Santo Antão. No 6.º
anno.

_Almanach dos fados das salas._ Editor, o mesmo F. Silva.

Quasi todos os almanachs populares, para obter maior acceitação, não
deixam de conter alguns _Fados_.

O da _Terra e mar_, para o anno de 1902, insere, por exemplo, o
_Fadinho da cerração do mar_ e o das _Duas fragatas_.

Tambem o sr. Verol Junior iniciou o _Almanach da Severa_, a que mais de
espaço nos referiremos.

Os fadistas classificam os _Fados_ segundo os assumptos que n’elles são
tratados.

Assim dizem:

_Fados á terra_ (assumptos terrestres).

_Fados ao mar_ (assumptos maritimos).

_Fados á campa_[39] (assumptos funebres).

_Fados á Escriptura_ (assumptos biblicos).

Tambem pertencem ao genero _Fados_ as «Cantigas a atirar», ou de
provocação e despique.

Conheço uma publicação exclusivamente dedicada a esta especie
de _Fados_. Intitula-se _Cantigas a atirar, Fadinhos para quem
fôr pimpão_. Por um _fadista de pé leve_. Lisboa, Typographia
Luso-Britannica, 1873.

E conheço muitas outras cantigas da mesma especie espalhadas pelos
diversos almanachs de _Fados_.

Exemplo de «cantiga a atirar»:

    _Venha o diabo á escolha,
    Não sei qual mais approvar;
    Que tu a cantar fadinhos
    És mesmo um gato a miar_.

    Amigo, por compaixão,
    Não estafes esta gente,
    Que sabe perfeitamente
    Qual a tua presumpção:
    P’ra nossa satisfação
    Mette na bôcca uma rolha;
    Assim escondes a _bolha_
    E passas por mais sensato:
    Entre a tua e a voz do gato
    _Venha o diabo á escolha_.

    Quem nos ouvidos soffrer
    Do teu canto o som bravio,
    Sentirá um arrepio
    E febre julgará ter.
    D’um caldeireiro o bater
    É custoso de aturar;
    Inda assim se o comparar
    Á tua voz desabrida,
    Não sei por qual me decida,
    _Não sei qual mais approvar_.

    Os cães á lua ladrando,
    Os burros a darem zurros,
    Os leões soltando urros,
    Corvos aos mil crocitando;
    Todos vão atordoando
    Os ouvidos, coitadinhos!
    Mas não sei se estes brutinhos
    (Sem pretenções a encantar)
    São menos de apoquentar
    _Que tu a cantar fadinhos_

    Deixa essa balda ruim,
    Não te mettas a finorio,
    Se não queres que o auditorio
    Te rogue pragas sem fim.
    Vae-te já com tal _chinfrim_
    De cantigas p’ra enfadar;
    Não tens voz para cantar,
    Jamais serás cantador,
    Porque, sem tirar nem pôr,
    _És mesmo um gato a miar_

Outro:

    _Quando ás vezes a mostarda
    Chegar sinto ao meu nariz,
    Tenho cá um vinagrinho
    P’ra os piar no almofariz._

    Suas basofias insanas
    Pôem-lhe os queixos em perigo;
    Se me conhecesse, amigo,
    Deixaria essas _lampanas_;
    Metto-o no rol dos parranas,
    Apesar de vestir farda...
    Tambem traz o burro albarda
    E eu não tenho medo d’ella.
    É bom fazer-se de vella
    _Quando ás vezes a mostarda_...

    Se você, seu borra-botas,
    De ser valente tem fama,
    Eu já fiz lá para Alfama,
    Fugir duzias de janotas;
    Não sou de soffrer chacotas,
    Repare bem no que diz:
    Nem dez policias civis
    Me põem na casa da guarda
    Quando cá certa mostarda
    _Chegar sinto ao meu nariz_!

    Seu palerma atrevidete,
    Pergunte aqui e acolá,
    Depois logo saberá
    A firma com quem se mette!...
    Se p’ra traz lanço o barrete
    E torço um pouco o focinho,
    Vae tudo por mau caminho,
    Porque nunca fui dos mansos;
    E p’ra dar ensino a _tanços_
    _Tenho cá um vinagrinho_...

    Saiba você, seu marau,
    Meu senhor, rei dos pandilhas,
    Que vae parar a Cacilhas
    Se lhe atiro um chimbalau.
    Vou fazer-lhe o catatau,
    Se o que disse não desdiz.
    Se tem dó do seu nariz
    Perca as basofias insanas,
    Porque me não faltam ganas
    _P’ra o pisar no almofariz_.

Nas provincias do norte tambem ha certamens poeticos entre a gente do
povo, especialmente no Minho. É o que lá chamam «cantar ao desafio.»
E nas provincias do sul, fóra da classe dos fadistas, diz-se--cantar
á desgarrada. Mas em Lisboa e seus arredores resalta uma profunda
differença entre as «cantigas a atirar» e os duellos a verso das outras
classes, tanto do norte como do sul.

Começa a avultar a differença na propria designação: _a atirar_.

Esta expressão dá logo ideia de uma classe bulhenta e desordeira, que
deseja «ferir» o adversario, em vez de o vencer apenas.

Nos «desafios» e nas «desgarradas» usa-se geralmente a quadra; nas
«cantigas a atirar», a décima.

É a influencia da fórma estrophica do _Fado_ com seu mote e suas glosas.

A disputa assenta sobre a competencia ou incompetencia para cantar
_Fadinhos_; póde o adversario ser um rouxinol, mas se não entrar bem
no rythmo do _Fado_, é peior do que um cão a ladrar, na opinião dos
fadistas seus pares.

Toda a pimponice do fadista se arreganha nas «cantigas a atirar.»

A si mesmo se exalta, elle, na recordação das suas grandes «zaragatas»
em Alfama e Mouraria:

    Eu já fiz lá para Alfama
    Fugir duzias de janotas.

Desvanece-se de afugentar os janotas e de «resistir á policia»:

    Nem dez policias civis
    Me põem na casa da guarda.

É a prosapia do «bailhão,» o mais desordeiro e implicante dos fadistas;
como quem diz a «quinta essencia» da classe.

Tem seus _Fados_ especiaes, o «bailhão». Celebra-se a si mesmo; canta a
sua _Odyssea_.

Ha familias, dynastias de bailhões, que se fazem temer: dizem-no estas
glosas, que são paginas de auto-biographia:

    Quando as costellas n’um feixe
    O amigo ao outro fazia,
    E allumiava a Mouraria
    A luz do azeite de peixe;
    (Não é mau que isto se deixe
    Escripto como passou)
    Alto nome conquistou
    Meu avô, pae do barulho;
    E, eu o digo com orgulho,
    _Bailhão foi o meu avó_!

    Pimpões em cantar mil fados
    Nos sujos becos d’Alfama,
    Meus manos tiveram fama,
    Dando baixa de soldados.
    Mesmo p’la pinga azoinados
    Ninguem lhes dava _bananos_.
    Um d’elles fazia abanos,
    Outro fazia gaiolas,
    E ambos de finas escolas
    _Foram bailhões os meus manos_...

    Com familia tão _honrada_,
    Seria grande desgraça
    Que eu desdissesse da raça
    Que sahiu tão apurada!
    Mas, sem basofia e sem nada,
    Direi que mais se apurou.
    Sabei, de pêtas não sou,
    E presto culto á verdade,
    Quando digo á sociedade:
    _O rei dos bailhões eu sou_.

E, quanto ás proprias proezas, continuando as tradições de familia:

    Tenho armazem de cantigas,
    O que se chama o _beijinho_,
    E por mim dão o beicinho
    As mais bellas raparigas;
    Não me tem faltado as brigas
    Em que sempre fui pimpão;
    Tenho dado ao escrivão
    Boa quantia em metal...
    Já disse a um juiz criminal:
    _Eu sou fadista bailhão_.

Quando o _bailhão_, nas «cantigas a atirar», arremessa para a nuca o
barrete preto, que no trajo da classe toma a alternativa do chapéu de
aba direita, é tremer d’elle: está disposto a ir passar uma temporada
ao Limoeiro:

    Se p’ra traz lanço o barrete
    E torço um pouco o focinho,
    Vai tudo por mau caminho.

É o caminho da cadeia ou do degredo.

As «cantigas a atirar» não se confundem, pois, nem pelo texto, nem pela
forma, com os «desafios» do norte e com as «desgarradas» do sul.

São o proprio _Fado_ n’uma intenção provocante, de «zaragata» e de
facada.


NOTAS DE RODAPÉ:

[16] _Galeria de figuras portuguezas_, pag. 112.

[17] Uma vaga tradição alfacinha diz que o fadista se deu por orgulho
de classe a designação de faia, medindo-se, vaidosamente, com o aprumo
e elegancia da arvore d’este nome.

[18] De faia.

[19] Bailarim, por comparação. O que pula jogando a navalha, _risca_,
_faz escovinhas_, _bate o Fado_, etc.

[20] _Epopeas da raça mosarabe_, pag. 321.

[21] Antigos bandidos dos Pyrenéos.

[22] Allusão á _Bisnaga escolastica_.

[23] A Penha de França, segundo a _Agostinheida_; a Cotovia, segundo a
_Bisnaga_. Em ambas estas eminencias, tanto ao oriente como ao poente
da cidade, se feriam as batalhas garotaes. A Penha era reducto para os
garotos de Alfama; e a Cotovia para os do Bairro Alto.

[24] Corpos pesados, ordinariamente pedra ou ferro, que os pescadores
empregam para fundear os seus barcos.

[25] Sáfea, segundo a graphia de Gil Vicente. Reles, despresivel.

[26] Rancho de rapazes inuteis; vadios.

[27] N’outra publicação contra o padre José Agostinho, diz Pato Moniz,
mais claramente, que o _General Luneta_ era D. Thomaz de Almeida, e que
o general do _exercito_ opposto era «um preto caiandeiro.»

[28] N.º 2. 1889.

[29] Camillo, no _Eusebio Macario_.

[30] L. A. Palmeirim, _Os excentricos do meu tempo_, pag. 263.

[31] Esta decima, tendo por assignatura trez XXX, appareceu publicada
no _Almanach de lembranças_ para 1861.

[32] São fornecidas pelo Maia as seguintes relações, aliás um pouco
baralhadas chronologicamente, de cultores do _Fado_.

Tocadores mais celebres:

Palmella, Maggyoli, José Vinagre, Thomaz do Bairro Alto, Francisco
d’Alcochete, Antonio dos Fosforos, Constantino Marceneiro, Antonio,
Manuel e José Casaca, João Maria dos Anjos, Paulo Pereira, Luiz
Petrolino, Thomaz Ribeiro, Robles, Reynaldo Varella, Alberto Lima,
Julio Silva Carvalhinho, Chico Padeiro, Carmo Dias, Julio Silva
(Ourives), João da Preta, Palhetas. (Não deve esquecer o proprio Maia.)

_Cantadores mais celebres_: José Maior, Saldanha, José Carlos, José
Borrêgo, José Petiz, Calcinhas, Pae Antonio, Patusquinho, Campanudo,
Damas, José Maria Artilheiro, Sapateirinho, Batata d’Adiça, João da
Matta, Isidoro Pataquinho, Serrano da Graça, Manuel Serpa, Russo do
Chafariz, Manuel da Motta, Jorge Caldeireiro, Eduardo, Brazileiro,
Manuel Serpa, Rosa Sapateiro, Carlos Arintho, Sepulveda, José Carlos,
Zé Um, Luiz Palhinhas, José Cecilio, Chico Plainudo, Chico Torneiro,
Ginguinha.

Antigos fabricantes de guitarras: mestre Jeronymo, largo da Annunciada;
José Pedro o Mudo, Paço do Bemformoso; Manuel Guitarreiro, largo da
Esperança; João Ramella, calçada dos Caldas.

[33] «Quando Taborda cantava na comediasita _Ditoso fado_ algumas
quadras á viola (aliás guitarra) o publico em altos gritos pedia mais,
e mais, e mais, e o grande, o incomparavel Taborda entoava centenas
de quadras entre applausos.» Julio de Castilho, _Amores de Vieira
Lusitano_, pag. 127.

[34] Esta palavra tem-se graphado em portuguez dos seguintes modos:
_lundu_, _lundum_, _landum_, _londum_.

[35] Marquez de Ficalho.

[36] Conde de Vimioso.

[37] _Lisboa na rua_, pag. 167 e seg.

[38] _Pianinho_ é outro synonymo da guitarra, em calão fadista.

[39] Ultimamente publicou-se uma collecção de _Fados infernaes_, em que
se encontram «Fados á campa».



                                  III

                         Os assumptos do Fado


O fadista, como já vimos a respeito do «bailhão», não deixa o seu
credito por mãos alheias.

Pouco lhe importa que os litteratos o descrevam; descreve-se elle a si
mesmo, propagando uma litteratura, que é d’elle ou feita para elle, e
que lhe dá celebridade.

Essa litteratura é o _Fado_.

O fadista canta as outras classes; tão tolo seria elle que não cantasse
a classe a que pertence.

Ha _Fados_ que o descrevem na vida e na morte, no prazer e no azar, em
liberdade e no Limoeiro.

A conjugação de todos esses _Fados_, dá, completa e integra, a vida do
fadista.


Na vida

    _O fadista na taverna
    Passa a vida socegada;
    A um gesto da prostituta
    Vae dar n’outro uma facada._

    Chame-se embora immoral
    Á vidinha do fadista,
    Das _boas vidas_ na lista
    Não se conhece outra igual.
    Trabalho não lhe faz mal,
    O andar não lhe cança a perna,
    Tem ao lado a amante terna
    Cheia de doce carinho,
    E tem sempre muito vinho
    _O fadista na taverna_.

    Quando diz o fadistinha
    Que não tem dinheiro, um dia,
    O tasqueiro logo lhe fia
    Porque... o medo guarda a vinha.
    Porque elle usa a navalhinha
    Sempre de ponta afiada,
    E a barriguinha adorada
    Não póde estar no seguro...
    O fadista, pois, o puro,
    _Passa a vida socegada_.

    Do lupanar para a tasca
    Anda sempre a passeiar,
    Com a _esbelta_ amante a par,
    A quem forte e feio _casca_.
    Ás vezes arma borrasca
    Por ciumes com que lucta,
    E arruma pancada bruta,
    Ou leva p’ra seu tabaco,
    Só dando parte de fraco
    _A um gesto da prostituta_.

    Se a amante não tem dinheiro
    E deve á contrabandista,
    Então o heroe, o fadista,
    Trabalha... de ratoneiro.
    E se vae p’r’o Limoeiro,
    Lá vae soccorrel-o a amada;
    E ao voltar á vida airada,
    Os bolsos trazendo fracos,
    Até por quatro patacos
    _Vae dar n’outro uma facada_.


Na morte

    _Vou despedir-me da vida,
    Ao som da banza sonora;
    P’r’a derradeira cantiga
    Dá-me, ó musa, um quarto d’hora_

    Parte alegre o cantador,
    Ouvindo o estylo do Fado,
    Para o logar onde é dado,
    Aos bons o justo valor.
    Mas antes que o teu rancor,
    Ó parca vil, destemida,
    No coração cave a f’rida
    E d’agonia os tormentos:
    Ao som de tristes lamentos
    _Vou despedir-me da vida_.

    A fragil voz não levanto,
    P’ra cantar minhas proezas:
    Não vou relatar emprezas,
    Que a todos causem espanto.
    O que ora incita o meu canto
    Para essa turba que chora,
    N’esta pequena demora
    Que peço ao Deus das verdades,
    É dictar minhas vontades
    _Ao som da banza sonora_.

    Não quero sinos plangentes,
    Nem pompa mal empregada;
    Só quero em cova apartada
    Dormir o somno dos crentes.
    Que um d’esses faias valentes
    Que Portugal hoje abriga,
    Empunhando a banza amiga
    Me faça a necrologia.
    Bem vêdes. Não ha folia
    _P’r’a derradeira cantiga_.

    Na minha campa, gravado.
    Seja visto este lettreiro:
    «_--Dorme aqui faia brégeiro_
    «_Que soube cumprir o fado._»
    Sinto-me, ó faias, cançado,
    Vou partir sem mais demora.
    Deixem-me só; vão-se embora
    Sem pranto nem algazarra,
    Mas p’ra que eu beije a guitarra
    _Dá-me, ó musa, um quarto d’hora_.


Testamento do fadista

    _Deixo a guitarra á Joanna,
    Quatro beijos á Francisca,
    Deixo á Thomazia uma praga
    E o baralho para a bisca._

    ’Stou no ultimo momento,
    Dentro em pouco... era uma vez.
    E, portanto, oiçam vocês
    Qual é o meu testamento
    --O Constancio, toma assento
    Á banca que já abana;
    Não faças lettra parrana
    Como o teu irmão Calixto,
    E começa por pôr isto:
    _Deixo a guitarra á Joanna_.

    Á Marianna d’Aliça
    Deixo as de panno mui fino
    Calças de bocca de sino
    E o collete de ir á missa.
    Deixo á Josepha Carriça
    Um vintem para uma isca;
    Á Bonifacia Lambisca
    Deixo-lhe um chapeu de côco;
    Á Felicia deixo um sôcco,
    _Quatro beijos á Francisca_.

    Deixo o gato que anda côxo
    Á brejeirota Maria,
    Que sempre quando eu pedia,
    Não faltava a dar-me um chôcho;
    Um canapé e um mocho
    Deixo á Joaquina gaga;
    Deixo á Brites Bestiaga
    O meu luzente _cachucho_;
    Deixo á Anna um ai machucho.
    _Deixo á Thomazia uma praga._

    Á Adelaide do olho torto,
    Fadista de boa pinta,
    Deixo a minha linda cinta
    Que mandei comprar ao Porto;
    Deixo, para seu conforto,
    Um litro á Lucia Petisca;
    Á Cunegundes Arisca,
    Que canta ás mil maravilhas,
    Dois tachos, quatro rodilhas
    _E o baralho para a bisca_.

A guitarra é o porta-voz do fadista. O calão é a sua linguagem. O
_Fado_ é a sua eloquencia, a sua poesia.

Por isso elle se mostra reconhecido ao inventor da guitarra, cuja
estatua desejaria erigir na praça publica, como se se tratasse d’um
heroe.

Mas, não o podendo conseguir, quer ao menos levantar-lhe um monumento
com as melhores canções de todos os cantadores do _Fado_, o que faz
lembrar a lenda da cortezã Rhodopis, que levantou uma das pyramides do
Egypto convidando cada um dos seus amantes a acarretar uma pedra.

    _Da suavissima guitarra
    Quem seria o inventor?
    Qu’ria erguer-lhe um monumento,
    Uma estatua de primor._

    Inventaram-se os pianos,
    As cornetas e os flautins,
    As flautas, os cornetins
    E os orgãos ha muitos annos.
    Mas o saber dos humanos,
    Do qual tanto ahi se narra,
    Deu a prova mais bizarra
    Do seu poder e magia,
    Inventando a melodia
    _Da suavissima guitarra_.

    Quem se lembrou de fazer
    As marimbas e as cornetas,
    Quem inventou as trombetas
    Não me importa a mim saber:
    Mas o que me faz arder
    É não achar um _doutor_,
    Antiquario sabedor,
    Em alfarrabios um barra,
    Que me diga da guitarra
    _Quem seria o inventor_.

    Qu’ria metter nas cantigas
    O nome d’aquelle heroe,
    Que no peito me destroe
    As tristezas inimigas.
    Qu’ria empregar mil fadigas
    Cantando-o com todo o alento,
    E nos mil versos que invento
    E conservo na memoria,
    Para sua eterna gloria
    _Qu’ria erguer-lhe um monumento_:

    Um monumento fundado
    Em cantigas escolhidas,
    Que seriam muito qu’ridas
    Pelos amantes do _Fado_.
    Pediria em alto brado
    A todo o bom cantador
    Que me fizesse o favor
    De poupar parte do cobre,
    Para erguer a homem tão nobre
    _Uma estatua de primor_.

Depois da invenção da guitarra, nada parece ao fadista tão admiravel
e sublime como o _Fado_ em que elle póde traduzir tudo quanto pensa e
sente, toda a expressão da sua alma, toda a synthese da sua existencia.

    _Quando ouço qualquer pequena
    Largar uma piadinha,
    Sinto logo sensações...
    De fazer uma escovinha._

    Eu gosto da castanhola,
    E deleita-me a _habanéra_,
    Idolátro a _penetéra_
    Cantada por uma hespanhola;
    Acho pilheria á _manóla_,
    Se tem graça e é morena,
    Que na sua _cantilena_
    Nos mostra verbosidade:
    De a imitar tenho vontade,
    _Quando ouço qualquer pequena_.

    Mas gosto mais do Fadinho
    Tocado mui mavioso,
    Por um typo conscencioso,
    Que trine no _corridinho_;
    Não posso estar quietinho,
    Se ouço uma guitarrinha;
    Dá-me logo vontadinha
    De entoar uma canção,
    Se ouço qualquer ratão
    _Largar uma piadinha_.

    Se uma serva de Cupido,
    Com meiga voz o cantar,
    Fico-me logo a babar...
    Mui _peixóla_ e derretido;
    Sinto-me então decidido,
    Cá para certas funcções...
    E n’estas occasiões,
    Em que o meu ser todo gosa,
    Cá para coisas ó Rosa...
    _Sinto logo sensações..._

    Decerto, não fica mal
    Gostar do mavioso Fado,
    Pois só elle é acclamado,
    Como o hymno nacional.
    Gosto do Fado em geral,
    Tocado por brégeirinha,
    Que com a nivea mãosinha,
    O dedilha com primor.
    Dá-me _ganas_ e furor
    _De fazer uma escovinha_.

Para o fadista, cidadão dos bairros infamados, _habitué_ das espeluncas
e dos bordeis, todo o paiz se resume n’esse mundo, que é o seu, a «sua
patria», o seu _habitat_.

Por isso considera o _Fado_ um «hymno nacional».

                      [Illustração: FADO CORRIDO]

                             [Illustração]

    Quando a _prima_ e a _toeira_[40]
    Dão do Fado os sons divinos,
    Esqueço todos os hymnos
    Da _Carta_, mais da _Terceira_.
    Eu despréso a petisqueira
    De mais fino e bom sabor;
    Despréso o vinho e o amor;
    Das magoas fico esquecido:
    Que ao som do Fado corrido
    _Não ha tristeza nem dôr_.

E lisonjeia-se de que as classes superiores da sociedade executem o
_Fado_ no piano, em sumptuosas salas; como um estrangeiro se póde
lisonjear de ouvir o hymno da sua nação, apreciado n’uma terra que não
é a d’elle.

    E não me venham dizer
    Santarrões de idéas tortas
    Que o Fado é bom para as hortas
    Entre as furias do beber:
    Já tive o gosto de o vêr
    Nos salões muito acatado;
    Vi-o por vezes cantado,
    Em beneficio dos pobres,
    Por senhoras muito nobres,
    _No piano acompanhado_.

    Se o Fado ajuda os folgares
    Da pobre gente do povo,
    Não deve ser caso novo
    Louvar-lhe os dons singulares:
    Triumphem, pois, os cantares
    Em que a voz d’alma nos falla;
    Sôe a guitarra que abala
    O albergue dos desgraçados,
    E sob tectos doirados
    _Por’hí se ouve em muita sala_.

O _Fado_ é, para o fadista, a melhor de todas as musicas, a mais dôce,
a mais terna, a mais estonteadora: o que vale ao Padre Santo, para
não ultrajar a dignidade da tiara, é «não saber o gosto que o _Fado_
tem»; o Diabo, nas profundezas do inferno, arde menos no fogo das suas
paixões quando se põe a cantar o _Fado_ como um faia da Mouraria:

    O diabo lá no inferno,
    Onde nos leva ao chamusco,
    Tambem o Fadinho canta
    Como o mais bello patusco.

Um _Fado infernal_ descreve a macabra alegria do Averno quando lá sôam
os accordes de algum _Fado_ mephistophélico:

    Satanaz com voz possante,
    Com sua voz d’estentor,
    Canta o diabolico amor
    Da sua infernal amante.
    Recitam versos do Dante
    Todas as furias do Averno,
    E por entre o fogo eterno
    Que mil almas tem queimado,
    Os demos tocam o Fado
    Nos grandes tan-tans do inferno.

       *       *       *       *       *

    Á gargalhada estridente
    Succede o tristonho pranto,
    E os diabos folgam tanto,
    Que não ha um descontente.
    Entra o Fado finalmente
    Na região bacchanal,
    Faz-se um enorme arraial
    Que em brilho vae progredindo
    E o Demo canta, sorrindo,
    O seu Fadinho infernal.

O calão é a linguagem habitual do fadista. Parece um dialecto, sem o
ser rigorosamente. Muito pittoresco, não se limita apenas a alterar
phoneticamente as palavras como a giria infantil; além de lhes alterar
o som, altera-lhes tambem a forma, e muitas vezes lhes desloca a
significação, levando-a para outros objectos, n’um sentido tropologico,
fundado na relação de semelhança.

Assim, a garrafa preta da taberna é _viuva_; os copos são _filhos da
viuva_: uma _viuva_ e dois _filhos_ quer dizer--uma garrafa e dois
copos.

Mas se o copo é maior que o da decilitração habitual, chama-se _sino
grande_.

O cigarro é _soldado de calça branca_; a navalha, _sardinha_; a faca,
_sarda_; o apito, _rouxinol_; a quantia que o rufião recebe da amante,
_queijada_; o dinheiro, _painço_; o café com leite, _mulato_; a agua
com café, _meio-caiado_; Deus, _juiz do Bairro Alto_; as pernas,
_juntas_; a barriga, _folle das migas_; as notas de banco, _filhozes_;
enfiar uma guitarra pela cabeça d’outra pessoa é _fazer uma gravata_; a
bofetada é _estampa_; a meia-porta dos bordeis do Bairro Alto, _avental
de madeira_, etc.[41]

Nas outras linguas encontra-se um vocabulario correspondente ao calão
dos nossos fadistas: os hespanhoes chamam-lhe _germania_ e chamavam-lhe
antigamente _gerigonza_; os francezes _jargon_ e _argot_; os italianos
_gergo_ e _lingua furbesca_; os inglezes _cant_, etc.[42]

Calão vem de _caló_, nome que os ciganos dão a si mesmos.

Portanto significa propriamente «cigano», «lingua de cigano.»

A giria portugueza, isto é, a linguagem especial usada pelas classes
vis a fim de que as outras classes sociaes a não entendam, é muito
antiga: já no seculo XVI Jorge Ferreira de Vasconcellos se refere aos
que fallavam _germanía_.

No seculo XVII D. Francisco Manuel de Mello empregou alguns termos
de giria na _Feira dos anexins_, que é, como se sabe, uma galante
collecção de equivocos e jogos de palavra.

No seculo XVIII, o padre Bluteau organizou uma lista d’aquelles termos,
que incluiu no seu _Vocabulario_, e que foi copiada em parte no
_Compendio de orthographia_ de Frei Luiz de Monte Carmelo.

No mesmo seculo, os _Rasgos metricos_, de Alexandre Antonio de Lima, e
as _Infermidades da lingua_, a que já tivemos occasião de referir-nos,
fornecem elementos subsidiarios para o estudo do calão.

No seculo XIX, a _Historia do captiveiro dos presos d’estado na Torre
de S. Julião da Barra_, por João Baptista Lopes; a traducção dos
_Mysterios de Pariz_, feita no Porto pelo dr. Pereira Reis; o romance
_Fr. Paulo ou os doze mysterios_; o romance _Eduardo ou os mysterios do
Limoeiro_ pelo padre Rabecão; os artigos de Candido Landolt na _Revista
do Minho_ (1875) e os de Queiroz Vellozo na _Revista de Portugal_,
1890; os _Ciganos de Portugal_, por Adolpho Coelho, abrangendo um
importante estudo sobre o calão, e o diccionario de giria ultimamente
publicado pelo sr. Alberto Bessa constituem copiosas fontes para o
vocabulario do calão portuguez.

Adolpho Coelho traz o seguinte _Fado_ composto em calão, reproduzido
por Alberto Bessa:

    _Ao fadista chamam faia,
    Ao agiota intrujão;
    Ao corcovado golfinho,
    Ao valente bogalhão._

    Entre o povo portuguez
    Ha calões tão revesados,
    Que deixam muitos pintados
    Por mais de cento e uma vez.
    Lá vão alguns--trinta e trez
    (Não sei se n’elles dou raia):
    Á prata chamam-lhe _laia_,
    Ás nossas cabeças _pinhas_;
    Aos porcos chamam _sardinhas_,
    _Ao fadista chamam faia_.

    Ás nossas mãos chamam _batas_,
    Ao genio chamam _ralé_;
    Á esperança chamam _filé_,
    Ás bruxarias _bagatas_;
    Ás velhas chamam _cascatas_,
    Ao poupado _sovelão_;
    Um _gabinardo_ ao gabão;
    Ao caldo chamam-lhe _rola_;
    A um relogio _cebola_,
    _Ao agiota intrujão_.

    Ao fugir chamam _raspar_;
    Chamam á casa _mosqueiro_;
    Ao ébrio chamam-lhe _archeiro_,
    Ao comprehender _toscar_.
    Ao roubo chamam _cortar_,
    Á guitarra _pianinho_,
    Ao chapeu _escovadinho_;
    Ao jogo chamam _batota_,
    A uma sardinha _aranhota_,
    _Ao corcovado golfinho_.

    Á fome chamam _peneira_;
    Tambem lhe chamam _larica_.
    Chamam á cara _botica_,
    Á aguardente _piteira_.
    Chamam _bico_ á bebedeira,
    A uma mentira _palão_;
    E tambem é de _calão_
    Chamar-se ao vinho _briol_;
    Ao nosso bucho _paiol_,
    _Ao valente bogalhão_.

Ha, porém, outros _Fados_ compostos em calão. Conhecemos quatro que
não devemos deixar de transcrever, tanto mais que elles contéem
alguns termos, como por exemplo _antrames_ e _gamotes_, que não foram
incluidos no diccionario do sr. Bessa.

    _Quem se metter c’um fadista
    E o ouvir fallar calão,
    Fica logo a ver navios,
    ’Té perde a mastreação._

    Chamam ao bater _suquir_,
    Á gazúa uma _retanha_,
    Á bofetada uma _sanha_;
    _Roncar_ é estar a dormir;
    _Esgueirar_ é ter de fugir,
    Um _arranjo_ é uma conquista,
    A taverna é uma _modista_,
    Cemiterio _se-m’entende_;
    Decerto o não comprehende,
    _Quem se metter c’um fadista_.

    Homem honesto e honrado,
    É um _gajo direitinho_;
    Bater é _fazer joginho_,
    Mattar é _deixar espalhado_.
    Ser pobre _estar desarmado_,
    _Gamote_ é reunião:
    Pois quem se chegue a um _bailhão_
    Passe-lhe logo as _palhetas_,
    Quando o vir fazer caretas,
    _E o ouvir fallar calão_.

    Elles chamam _laia_ á prata,
    A um casebre um _cortiço_,
    Namorar é _um serviço_,
    A pancada é _zaragata_,
    Um sôcco é uma _batata_;
    Chapeus altos são _cepios_,
    Aos ladrões chamam _larpios_,
    Ás algibeiras _antrames_:
    Quem ouvir dizer _arames_,
    _Fica logo a ver navios_.

    _Arames_ é o dinheiro;
    Ao vinho chamam _briol_;
    Ao apito um _rouxinol_;
    _Jogador de pau_, cocheiro;
    Um bebado é um _archeiro_,
    Um _gabinardo_ um gabão,
    Dois vintens um _buzilhão_,
    _Avésa_ quer dizer tem:
    Quem os não percebe bem,
    _’Té perde a mastreação_.

    _Passei os butes[43] á Annica,
    Pois tinha naifa na liga:
    Boas noites, meus senhores.
    Vou cantar uma cantiga._

    De _briol_ tinha atirado
    Duas _viuvas e meia_:
    Sentou-se uma _centopeia_
    Junto onde eu estava sentado.
    Fiquei mais _envinagrado_,
    Quiz _dar cabo da futrica_.
    Já por ser feia e não rica
    E me negar um _paivante_,
    Em tempo que é já distante
    _Passei os butes á Annica_.

    Puz-me a mirar a _gajona_
    E fez-me tanta _arrelia_,
    Que por pouco a não enfia
    A minha _naifa_, _intrujona_.
    Tinha um ar de _marafona_,
    De mulher que vende em _giga_.
    Mas não quiz _armar a briga_,
    Apesar já da _piélla_,
    Não me quiz _medir_ com ella,
    _Pois tinha naifa na liga_.

    A final engole a _isca_
    Que tinha mandado vir,
    E diz-me assim ao sair:
    «Chamo-me _Nuna Francisca_.
    Se você se não arrisca
    A mostrar-me os seus valores,
    Vá ler co’a Julia Dolores,
    P’ra nos soccarmos com ella».
    Vejam lá que _bresundella_!
    _Boas noites, meus senhores._

    Se alguem d’aqui foi capaz
    De saber o que eu cantei,
    Uma prenda lhe darei,
    Seja velhote ou rapaz.
    Sabem o que aqui me traz,
    O que a servil-os me obriga?
    É essa amizade antiga
    Que por mim lhes é bem dada.
    Visto que fiz esta entrada,
    _Vou cantar uma cantiga_.

       *       *       *       *       *

    _Quando tenho uma carinha,
    E um charuto a fumegar,
    Já sou mais que o faroleiro,
    É dar-lhe, toca a gimbrar._

    O meu corpo não foi feito
    P’ra se ralar...--_isso pára_!
    P’ra _gozança_ é que esta _cara_
    Sempre leve todo o geito.
    Se _avélo por o direito_,
    Seja só uma _rodinha_,
    Já dou mil voltas á _pinha_
    A pensar como _estafal-a_,
    E então isso não se falla
    _Quando eu tenho uma carinha_!

    Elle é a bella _murraça_,
    É a bella _rapioca_,
    Elle é a gostosa _móca_,
    Elle é tudo que tem graça.
    Lá p’ra fazer de _panaça_
    Co’as _mondongas a versar_,
    Nunca me esteve _a calhar_;
    Prefiro _bater a bisca_,
    Ou _dar-lhe_ então d’uma isca
    _E um charuto a fumegar_.

    Se a cousa _gruda_ ao domingo,
    Dou _girança_ até ás hortas,
    E de lá por horas mortas
    E já _torto_ que me _tingo_:
    Que eu tambem nunca me _pingo_
    Até _perder o carreiro_;
    Fico só um pouco _archeiro_,
    A _trez furos de pingado_,
    E assim _mystico_, _orchatado_,
    _Já sou mais que o faroleiro_.

    Todo o _gajo_ que na _orchata_
    Nunca _entortou o pescoço_,
    _Avezando bago grosso_,
    Tem a _pitorra_ bem _chata_.
    Devia logo uma data
    De _camolete_ apanhar,
    Que era então p’ra se lembrar
    Que o mundo é uma _fumaça_,
    E emquanto n’elle se passa
    _É dar-lhe, toca a gimbrar_.


Em calão a atirar

    _Dê-me a naifa, não se ponha
    Comigo ás duas por trez.
    Não passe os butes agora...
    Que está na mão de má rez._

    --Eu _estafo-o_, seu mariola.
    --E eu cá chego-lhe _amas todas_.
    --Não se me ponha com modas,
    «Que o mando já _p’r’o esfolla_.
    --Olhe que é de _ponta e móla_.
    «Olhe que esta tem _peçonha_.
    --Você perdeu a vergonha?
    --Perdi a vergonha? Hom’essa!
    --Vamos lá, que tenho pressa;
    «_Dê-me o naifa, não se ponha..._

    --Não me ponho a fazer vistas
    «De _fadista ou galopim_;
    «Lá está aberto o _eslarim_
    «P’ra quem _rentar_ com fadistas.
    --Você porque faz conquistas...
    «Que eu não sei já quantas fez,
    «Vem cá _fazer-se francez_?
    «Porque pertence á _gentalha_,
    «Vem pôr-se aqui, seu canalha,
    «_Comigo ás duas por trez_!...

    «--Está _nadando_, meu amigo;
    «Passe p’ra cá essa _espinha_.
    --Isso, não; que é muito minha:
    «Você, chamava-lhe um figo!
    --Eu se lhe _afinfo_ no _embigo_
    «Um sôcco sem mais demora...
    «Veremos, se você chora
    «O seu empenho tão cego!...
    «Eh! onde vai, seu gallego?
    «_Não passe os butes agora!_

    «--Arrede-se já d’aqui...
    «Já o não vejo, percebe?
    «--Pois já a _comadre bebe_?
    «Seu pateta!... _seu cri-cri_!...
    «--Eu cá logo quando o vi;
    «Puxei da naifa outra vez:
    «Vá, marche, seu _montanhez_,
    «Ou dou-lhe _quatro naifadas_;
    «Conte co’as guellas cortadas,
    «_Que está na mão de má rez_.

Assim, pois, o fadista creou para si um mundo á parte, onde a
linguagem, os usos, os costumes constituem uma vida exótica, de
aberração, que se escôa por entre a sociedade portugueza como um
enxurro negro e torvo.

N’essa vida destragada todos os mais nobres sentimentos da humanidade
se abatem e enlameiam, attingindo ás vezes as proporções de um paradoxo.

Uma das coisas que mais custam a comprehender na vida do fadista é o
ciume que elle tem da mulher perdida, que todos os dias se vende ao
primeiro homem que passa.

Interesse? affeição? tudo isto talvez, porque o fadista vive á custa
da depravação da amante, mas quando o ciume o domina dir-se-ha haver
n’esse sentimento o que quer que seja superior ao interesse material.

Reconhecendo-se _atraiçoado_, o fadista procura matar a mulher que lhe
foi desleal, e desprésa todas as conveniencias pessoaes que d’essa
convivencia amorosa lhe resultavam.

É então que parece comprehender o amor e sentir o ciume como todos os
outros homens.

Fóra d’esses lances, encara a prostituição da mulher como um commercio
que exclue toda a idéa de sentimentalidade, e que o ajuda a viver.

Do que elle tem ciumes não é das caricias que a sua amante vende; é
d’aquellas que ella pode dar por um impulso espontaneo do coração.

O mobil das grandes desordens entre os fadistas tem quasi sempre origem
no ciume--este ciume de contrabando, paradoxal, que tanto custa a
comprehender.

Nos _Fados_, a mulher perdida é cantada pelo fadista como sendo tambem
uma victima da fatalidade do destino:

    Não me prendeu sempre o vicio,
    Tambem donzella nasci;
    Mas meu candor deprimi,
    N’um criminal desperdicio.
    Na beira do precipicio,
    Onde o meu fado me tem,
    Não vê meus prantos ninguem,
    Nem minha dor avalia,
    Privada de quanto havia
    No collo de minha mãe!

       *       *       *       *       *

    Tudo p’ra mim se acabou,
    Beijos de mãe, meus folguedos;
    Meus innocentes brinquedos,
    Um sonho foi que passou.
    O fado meu me votou
    A toda a triste agonia,
    Até que p’r’a valla fria
    Meu corpo seja deitado,
    Pois que dos bens do passado
    Nada me resta hoje em dia.

Camillo, no _Eusebio Macario_, reproduz dois versos de um _Fado_
da Escarnichia (Escarniche, na pronuncia popular), os quaes dão
a impressão rapida da «má sorte» que, segundo a lenda fadista, a
arremessou para a desgraça:

    Nascêra n’um berço de ouro
    E não teve uma mortalha.

Todas as rameiras mais populares, desde a Severa, a Escarnichia, a
Joaquina dos Cordões,[44] etc., até á _Borboleta_[45], teem sido
choradas pela guitarra e encontrado uma necrologia nas glosas
sentimentaes do _Fado_.

Além da vida do fadista e da morte das mal-fadadas que viveram entre o
povo, o _Fado_ canta ainda outros assumptos, a saber:

_a_) O amor, como o fadista é capaz de o sentir; sem delicadeza e sem
recato: o amor sensual, que principia por onde nas outras classes acaba.

    Porém, se é o teu desejo
    Saber isto mais a fundo,
    Deixa lá fallar o mundo
    E passa p’ra cá um beijo:
    Só então, segundo vejo,
    Serei grande explicador.
    Só então, anjo d’amor,
    Saberás p’la vez primeira,
    Que te fallo de cadeira,
    _Que sou n’arte professor_.

E muitas vezes o amor é declarado em calão, para ser melhor entendido:

    Quando eu apenas _tosquei_
    Essa _facha_ tão formosa,
    Senti _coisinhas ó Rosa_,
    E apaixonado fiquei.
    Sou feliz que nem eu sei...
    Minh’alma se desatina
    Só pôr ver que é papa fina
    Sua elegante pessoa;
    Palavra, que é _toda boa_,
    Minha adorada menina!

_b_) Os trabalhos e soffrimentos das classes sociaes que estão em
contacto com o fadista ou proximas a elle.

_c_) Os aspectos da vida popular e a chronica das ruas, como as
_hortas_, os _pregões_, a _noite de Santo Antonio_.

_d_) Os grandes crimes e os grandes desastres terrestres ou maritimos,
que impressionam a opinião publica.

_e_) A morte de personagens celebres.

_f_) Os conflictos politicos ou religiosos que provocam discussões na
imprensa e no parlamento.

_g_) A nomenclatura popular de utensilios de trabalho nas artes e
officios ou de animaes, arvores, plantas, flores, etc.

_h_) As cidades, seus bairros e ruas, as villas e aldeias do paiz, n’um
jogo de metaphora ou de antithese; n’um sentido de orgulho local e
patriotico ou de funda nostalgia.

_i_) Passagens da Biblia, assumptos religiosos, especialmente relativos
á vida eterna, e episodios da historia de Portugal.

_j_) Descripção das esperas de touros, peripecias das touradas,
triumphos e desastres dos toureiros mais evidentes.

_k_) Expressão de malicias e gaiatices, que ou é formulada brutalmente
n’uma linguagem obscena ou recorre ao equivoco e ao trocadilho.

_l_) Floreios de palavras exdruxulas e arrevezadas que muitas vezes não
fazem sentido.

Entre as classes sociaes que são cantadas no _Fado_, avulta a dos
marinheiros, talvez pela razão, de que o marujo é meio fadista.

Já dissemos que, segundo a opinião do velho guitarrista Maia, o _Fado
do marinheiro_ é um dos mais antigos.

Tornou-se muito popular uma cantiga, que não seguia a metrica
tradicional do Fado, mas que entrou logo no genero, a que realmente
tinha direito não só pelo assumpto, como tambem pelo seu rythmo
plangente:

    Triste vida a do marujo,
    Qual d’ellas a mais cansada.
    Por’môr da triste soldada,
        Passa tormentos,
        Passa tormentos,
          Don, don.

    Anda á chuva e aos ventos,
    Quer de verão, quer de inverno;
    Parecem o proprio inferno
        As tempestades,
        As tempestades,
          Don, don.

           *       *       *       *       *

    Foi um velho marinheiro
    Que inventou esta cantiga;
    Embarcado toda a vida,
        Sem ter dinheiro,
        Sem ter dinheiro,
          Don, don.[46]

D’este _Fado_ correm pelo menos duas versões, como se pode reconhecer
confrontando a de Coimbra--que vem no _Cancioneiro popular_ de
Theophilo Braga--com a (de Lisboa) que vem appensa á _Confissão geral
do_ _marujo Vicente_, edição de Verol Junior.

No _Almanach da terra e mar_, tambem edição d’este livreiro, vem um
novo _Fado do marujo_, decalcado sobre o antigo; além de outros _Fados_
maritimos.

É muito original, pelo emprego da technologia nautica n’uma intenção
amorosa, o seguinte _Fado_:

    _Do mar nas aguas salgadas,
    Mais de trez annos andei
    A navegar de bolina.
    ’Té que a final encalhei._

    Como chaveco pirata
    Andei correndo na alheta
    D’uma velleira corveta,
    Que me fugia, a ingrata!
    Toda a manobra m’empata,
    Virando sempre em bordadas;
    Ora co’as vellas caçadas,
    Ora com gávea, e latina;
    Nunca vi barca mais fina,
    _Do mar nas aguas salgadas_!

    Quando largava os estaes,
    E carregava o traquete,
    Corria como um foguete,
    Ou talvez mesmo inda mais!
    Até os mastros reaes
    Que tinha d’aço julguei;
    Nunca por vante a pilhei,
    Com brisa fresca ou escassa.
    A dar-lhe sempre assim caça
    _Mais de trez annos andei_!

    Nos seus cachorros de proa
    O meu sentido só tinha;
    Porém p’ra fóra da linha
    Da minha esteira ella vôa,
    Como um safio s’escôa,
    Que tem a quilha mui fina;
    Já p’lo redondo a mofina
    Zomba de toda a coragem,
    Nem se lhe dá abordagem,
    _A navegar de bolina_!

    Senti-me desarvorado,
    Nas ondas andando aos tombos,
    O casco tendo com rombos,
    E todo, emfim, adornado.
    No tope, o signal içado
    Pôr de soccorro mandei.
    Ella então cedendo á lei,
    Seja quem for que a invoque,
    Trouxe-me tanto a reboque,
    _’Té que a final encalhei_.

De outros _Fados_ de classe daremos ainda alguns exemplos.


Fado dos calceteiros

    _Nossa arte chega ao apuro,
    Posso-o dizer com verdade:
    Vêde os mosaicos de cores
    Nos passeios da cidade._

    Para que os trens de estadão
    Rodem por modo ligeiro,
    Passamos o dia inteiro
    Em difficil posição.
    Sempre ao rigor da estação,
    O nosso trabalho é duro;
    Mas podemos, asseguro,
    Dizer mesmo aos de Pariz:
    No lusitano paiz
    _Nossa arte chega ao apuro_.

    Com um passadio escasso,
    Entre o frio e o calor,
    Trabalham com todo o ardor
    Os nossos homens de masso:
    Dando no progresso um passo,
    Formámos sociedade;
    Reina entre nós amizade,
    Detestamos os vis pulhas;
    Não somos homens de bulhas,
    _Posso-o dizer com verdade_.

    Ordens, que do mestre vem,
    Cumprimos, como é dever,
    Mas não sabemos soffrer
    Um insulto de ninguem.
    Se qu’reis saber onde tem
    Chegado os nossos primores,
    Tornae-vos passeiadores
    Das ruas que são mais vistas,
    E com olhos, mas de artistas,
    _Vêde o mosaico de côres_.

    O estrangeiro em Portugal,
    De certo fica encantado,
    Quando vê lá no Chiado
    Obra boa nacional:
    Se elle quizer ser leal
    E não faltar á verdade,
    Dirá, com ou sem vontade,
    Que por lá não se apresenta
    O que em Portugal se ostenta
    _Nos passeios da cidade_.


Fado dos galuchos

    _Deixei minha cara terra,
    Minha mãe, o meu amor;
    Como agora uns vis feijões,
    E marcho ao som d’um tambor._

    Como eu não tinha dinheiro,
    Nem um empenho por mim,
    Lavrador, coitado, vim,
    Servir a patria guerreiro.
    Não perguntaram primeiro
    Se eu tinha geito p’r á guerra,
    «Marcharás por valle e serra,
    Nunca fugirás á briga»
    Ai! p’ra tão dura fadiga
    _Deixei minha cara terra_!

    Se era duro o meu lidar
    Em que suei pingo a pingo,
    Eu tinha sempre ao domingo
    As festas no meu logar.
    Ai! já não oiço o cantar
    Do ceifeiro lidador!
    Já do bando voador
    Eu não escuto o gorgeio!
    Já não aperto a meu seio
    _Minha mãe, o meu amor_!

    Obedeço ao capitão,
    Mesmo ao cabo muito bruto;
    Ao tenente, que é matuto,
    E ao sargento aldrabão.
    Attendidas jámais são
    As minhas justas razões.
    D’antes nas minhas funcções
    Comi coelho guisado.
    Da patria bravo soldado,
    _Como agora uns vis feijões_.

    Não se fartam de dizer:
    «Defender-se a patria deve.»
    Mas o diabo me leve
    Se eu sei quem vou defender!
    Devo sempre combater,
    E matar, seja a quem fôr,
    Sem nunca sentir amor.
    Isto farei, vil galucho,
    Que ora triste aperto o bucho
    _E marcho ao som d’um tambor_.

Sobre os aspectos da vida popular e a chronica das ruas:


As hortas

    _Aos domingos, á tardinha,
    Quem não sae fóra de Portas,
    Não conhece a felicidade
    De comer peixe nas hortas._

    A gente cá de Lisboa
    Gosta sempre, aos dias santos,
    De se metter pelos cantos,
    Comendo e bebendo á tôa;
    Petisqueira toda boa
    Procura a nossa gentinha:
    Come pescada ou sardinha,
    Com a maior alegria:
    P’r’as hortas ha romaria
    _Aos domingos, á tardinha_.

    Por debaixo da folhagem
    Enxuga do branco e tinto;
    E creiam, que não lhes minto,
    Bebe com toda a coragem:
    No fim d’aquella viagem
    Tudo tem as pernas tortas;
    Parecem uns moscas-mortas,
    Mesmo os que tocam a _banza_;
    Pois só não fica _zaranza_
    _Quem não sae fóra de Portas_.

    Uns ficam inteiriçados
    Debaixo ali d’umas bancas,
    Outros vão movendo as _trancas_,
    Mas bastante atrapalhados.
    Tantos copos enxugados,
    Com tal força de vontade,
    Tiram logo a faculdade
    De a gente mover as pernas.
    Mas quem não vê taes tabernas,
    _Não conhece a felicidade_.

    Ir ás hortas de passeio,
    É melhor que ser sultão:
    Quem precisa distracção,
    Procure logo este meio.
    Podem ir lá sem receio
    De virem co’as pernas tortas;
    Pois lá por fora de _Portas_
    Pouco bebe quem bem pensa;
    Mas todos teem licença
    _De comer peixe nas hortas_.


Pregões de Lisboa

    _Merca o tremoço saloio,
    Merca laranja da China,
    Saiu agora a dez réis:
    Quem quer vêr a sua sina?_

    Merca a ginja garrafal,
    Merca a cereja do sacco,
    Marmello assado, a pataco,
    Vá la da viva sem sal.
    Quem merca a uva ferral
    Que é mesmo trigo sem joio?
    Quem compra a este maloio
    Dois casaes de patos novos?
    Quem me acaba a duzia d’ovos?
    _Merca o tremoço saloio._

    Vá o par de bons melões,
    Um quarteirão de tomates,
    Vá peras quasi de _gratis_,
    Rabanetes e limões.
    Merca o mólho d’agriões,
    Tinta fina, tinta fina,
    Ricas postas de curvina,
    Quarteirão de pêra parda,
    Quem merca a couve lombarda?
    _Merca a laranja da China._

    Vá o par de melancias;
    Quem quer partidas á faca?
    Merca o figado de vacca,
    Pevides e alcomonias.
    Bonitos, bijuterias
    Dedaes, fitas e anneis,
    Pentes, broches e paineis,
    Canivetes com bons cabos
    _O Pimpão_, _Trinta Diabos_
    _Saiu agora a dez réis_.

    Amola facas, tesouras;
    Vá capachos e sapatos,
    Vá lá carapau p’ra gatos;
    Vá esteiras e vassouras.
    Merca o mólho de cenouras,
    Merca a boa tangerina;
    Vá lá abob’ra-menina,
    Figos quem quer almoçar?
    Tam’ra doce p’ra jogar?
    _Quem quer ver a sua sina?_


Noite de Santo Antonio

    _Em dia de Santo Antonio,
    Toda a gente faz banzé;
    Lá na praça da Figueira
    Sempre ha socco e ponta-pé._

    No Rocio ha bons bailados,
    Na Praça muito empurrão;
    Os que andam na multidão
    Vem para casa estafados
    Uns guinchos disparatados
    Da flauta tira o laponio,
    Sempre me lembra o demonio
    Quando vejo mil fogueiras
    E na rua as vendedeiras
    _Em dia de Santo Antonio_.

    Muita gente vae sornar
    Lá p’ras bandas da Trindade;
    E depois a liberdade
    Lhe custa reconquistar.
    Tem as custas de pagar
    Por ter andado zaré.
    N’estas noites de filé
    Da nossa população
    É jogar o cachação,
    _Toda a gente faz banzé_.

    Segue depois outro santo
    S. João, santo adorado.
    Novo motim é travado,
    Ha riso, amor, odio, pranto
    Á sombra do rico manto
    Da policia sempre ordeira
    Lá vae muita bebedeira
    Parar á casa da guarda,
    Pois quasi sempre ha bernarda
    _Lá na Praça da Figueira_.

    Segue S. Pedro, e o povinho
    Da lucta não está cansado;
    Toca a andar muito exaltado
    Pelo fumo e pelo vinho.
    Louvam mais a S. Martinho
    Que a S. Pedro, o rei da fé!
    Fazem grande fincapé
    Nos palmitos e assucenas,
    E por causa das pequenas,
    _Sempre ha socco e ponta-pé_.

Os _Fados_ sobre crimes notaveis são vulgarissimos; como já dissemos,
apparecem frequentes vezes, em folhas volantes. Damos, por isso, apenas
um _specimen_:


O crime do Bemformoso

    _Em pleno sec’lo das luzes...
    Chega a par’cer impossivel!
    N’uma cidade brilhante
    Commetteu-se um crime horrivel!_

    Na rua do Bemformoso
    (Por mostrar sua alforria)
    Pôz loja de mercearia
    Mais um caixeiro brioso;
    Porém o Fado maldoso,
    Peior do que os abestruzes,
    Só por nos lembrar as cruzes
    Do tempo do feudalismo,
    Lhe cavou medonho abysmo
    _Em pleno sec’lo das luzes_.

    Quando todo mundo préga
    Contra a pena derradeira,
    É quando a mão traiçoeira
    Mais sobre os homens carrega!
    A vil ambição é cega,
    Dos vicios, o mais terrivel!
    Porque faz descer ao nivel
    Do ladrão e matador;
    Mas fazel-o ao bemfeitor,
    _Chega a par’cer impossivel_!

    Domingues foi tão malvado,
    Que, além de fazer-lhe o roubo,
    Por ter entranhas de lobo,
    Quiz deixal-o estrangulado.
    Dormindo mui socegado
    Estava o pobre commerciante,
    Quando um ferro perfurante
    Lhe trespassou as guellas!
    E dão-se scenas d’aquellas
    _N’uma cidade brilhante_!

    O desditoso Duarte
    (Por dar aos homens abrigo)
    Creou feroz inimigo,
    Sem culpa da sua parte!
    Não foi morto a bacamarte,
    Nem por arma compativel;
    Que, por tornar despresivel
    Tanto a dita como o porte,
    Não só se fez uma morte...
    _Commetteu-se um crime horrivel!_

Sobre um desastre que impressionou Lisboa--a morte do conde de Camaride:

    _O conde de Camaride
    (Por dispensar o cocheiro)
    Morreu desastrosamente...
    Sem ser pintor, nem pedreiro!_

    Na rua Nova do Almada
    (Mesmo junto á Boa Hora)
    Deu-se a scena aterradora,
    Que jaz na mente gravada.
    Não só á pobreza honrada
    Destroe a mundana lide;
    Como a sorte é quem decide
    De tudo quanto é mortal,
    Quiz destruir a final,
    _O conde de Camaride_.

    Que importa que fosse nobre,
    Que tivesse ouro a valer?
    Não pôde deixar de ter
    A mesma sorte que o pobre.
    Se, de finados o dobre,
    Lhe coube por ter dinheiro,
    Não teve a gloria do obreiro,
    Que morre ao som do martello:
    Nem por isso foi mais bello,
    _Por dispensar o cocheiro_.

    Se guiava o tal cavallo
    Que lhe concorreu p’r’a morte,
    Não partilhava da sorte
    Dos que tinham de tratal-o;
    Sómente por seu regalo
    Governava o tal vivente,
    Sem sentir o que se sente
    Quando o trabalho é forçado:
    Todavia o desgraçado
    _Morreu desastrosamente_.

    O seu famoso corsel
    (Apesar de fina raça)
    Foi o motor da desgraça
    Que lhe deu cabo da pel’.
    Se gosava o doce mel
    De, no carrinho ligeiro,
    Ter o logar sobranceiro
    Que tanto dava nas vistas,
    Teve a sorte dos artistas,
    _Sem ser pintor, nem pedreiro_.

Na morte de personagens celebres apparecem sempre _Fados_, que
encontram um grande exito na rua entre as classes populares.

O que se segue, escripto por occasião da morte de Antonio Feliciano de
Castilho, cantou-se na Mouraria, posto accuse uma origem culta:

    _Chorae, Musas Lusitanas,
    O nosso dilecto filho;
    Desceu á estancia da morte
    O grão poeta Castilho._

    Á luz do mesmo astro santo
    Que lhe sorriu na innocencia,
    Desfez-se da humana essencia
    O rei do moderno canto.
    Destillae amargo pranto,
    Ó Graças ovidianas,
    Que as Parcas sempre tyrannas
    Ceifaram mais um talento.
    Com profundo sentimento
    _Chorae, Musas Lusitanas_.

    Como Milton na Inglaterra
    Cantou sem ver a natura.
    Como elle, na sepultura
    Para sempre Deus o encerra.
    Extinguiu-se em nossa terra
    Um esforçado caudilho,
    Dos trez astros de mais brilho
    Que nos deram mais auxilio.
    Chorae, manes de Virgilio,
    _O vosso dilecto filho_.

    Com o mau destino humano
    Nenhum poder se intromette.
    Perdemos o bom Garrett
    Ha quasi vinte e um anno.
    Já só nos resta Herculano
    D’essa trindade tão forte.
    Dos grandes genios a sorte
    Choremos com dor sincera,
    Que o cantor da Primavera
    _Desceu á estancia da morte_.

    Privado na curta edade
    De ver o grande Universo,
    Cantava em sonoro verso
    D’este mundo a magestade.
    Ensinou á mocidade
    Da instrucção o bom trilho,
    Cantou a flôr e o tomilho
    Como cantar ninguem ousa;
    E emfim descansa na lousa
    _O grão poeta Castilho_.

Apontemos outro facto mais recente: o suicidio de Mousinho de
Albuquerque.

Vendeu-se logo um folheto de 8 paginas contendo a noticia da sua vida e
morte, glosada em decimas.

A catastrophe final é assim descripta:

    _O destemido guerreiro,
    Que sempre a morte affrontou,
    Quando a vida lhe sorria
    A negra morte chamou._

    Contra si erguendo o braço,
    Que a tantos a morte deu,
    Encarando a luz do céu,
    Teve da vida o fracasso.
    Seu corpo de puro aço
    Teve o golpe derradeiro,
    Mas tão fatal, tão certeiro,
    Que a vida, n’elle, apagou-se;
    Pois sem fraqueza matou-se
    _O destemido guerreiro_.

    A tão notoria coragem
    Que de louros o cobriu,
    Não fraquejou nem fugiu
    N’esta ultima passagem.
    Decerto alguma visagem
    Falso p’rigo lhe mostrou,
    E o bravo não hesitou
    Em morrer bem dignamente,
    F’rindo de morte o valente
    _Que sempre a morte affrontou_.

    Quem conheceu o soldado
    Que lembra os passados feitos,
    Tributa honrosos respeitos
    Ao luctador denodado:
    Nenhum mais galardoado
    Pela sua valentia,
    Pois nenhum mais merecia
    O logar que se lhe deu,
    Mas a vida aborreceu,
    _Quando a vida lhe sorria_.

    Quando gosava o descanso,
    Da morte e do p’rigo ausente,
    Pensou de modo diff’rente,
    Buscou o eterno remanso.
    De bemdizel-o não canso
    Porque a sua patria honrou;
    Briosamente luctou
    Contra os revézes da sorte;
    E sem ter temido a morte,
    _A negra morte chamou_.

Os acontecimentos politicos e os conflictos religiosos, quando agitam
fortemente a opinião publica, tambem encontram écco na poesia popular.

A questão do caminho de ferro de Salamanca (vulgarmente, _Salamancada_)
inspirou em 1883 este _Fado_:

    _Casou Dona Salamanca
    Com Dom José Portugal;
    Foi padrinho o Dom Antonio
    De tal... e coisas... e tal._

    Zé povinho parvonez!
    Salta... dança... canta... brinca...
    Pois, como tu, ninguem chinca
    Tantos coices d’uma vez:
    Se o grande cantor de Ignez
    Te visse, ó _chanca-lha-chanca_,
    Na sua lyra tão franca
    Gabaria o teu socego...
    Que p’ra te fazer gallego,
    _Casou Dona Salamanca_.

    Casou a _velha das covas_
    D’onde sae a estudantina;
    Zombando da tua sina,
    Das tuas ideias novas!
    Depois de tantas mil provas
    D’essa verdade fatal...
    P’ra complemento do mal
    D’alguns corações sinceros,
    Casou a tal dos _boleros_,
    _Com Dom José Portugal_!

    Casou-se!?... não digo bem;
    Fizeram-lhe o casamento
    Com quem já foi o tormento
    Do Portugal que Deus tem;
    Assiste lá p’ra Belem
    Quem o fez andar erroneo:
    Se tu fizeste o demonio
    Por causa do syndicato...
    De tão nojento contrato
    _Foi padrinho o Dom Antonio_.

    Se não passas d’uma aranha...
    P’ra que gritas, Zé-povinho?!
    Deixa viver o ranchinho,
    Como melhor lhe convenha;
    Se querem os ares d’Hespanha...
    Deixa-os ir, porque, a final,
    Salamanca e Portugal
    Hão de ser do homem raro,
    Que se chama--Antonio Caro...[47]
    _De tal... e coisas... e tal_.

A questão religiosa, ultimamente levantada a proposito do incidente
Calmon no Porto, provocou _Fados_ de occasião contra os jesuitas, os
conventos e recolhimentos, etc.

Trecho de um _Fado_ ironico contra os jesuitas:

    É injusta a crua guerra,
    Que contra os _santos_ fazemos,
    Pois mil _feitos_ lhe devemos.
    Do palacio até á serra
    A sua doutrina encerra
    O que o povo _necessita_:
    _Instrucção_ que a crença agita,
    _Conselho_ que o faz feliz;
    Por isso é que o mundo diz:
    _Que mal faz o jesuita?_

    O _virtuoso_ varão,
    Tão _respeitado_ e _bemquisto_,
    Que só prega a lei de _Christo_,
    Plantando a religião,
    P’ra que chamar-lhe villão,
    Se ao contrario é mui _cordato_?
    _Educador_ e _pacato_,
    E _devoto_ d’alto lote;
    Se é um _bello_ sacerdote,
    _Severo, grave e sensato_!

No Porto havia um musico ambulante, de nome Marcolino, que improvisava
_Fados_ com caracter satyrico, entrando frequentes vezes pelo dominio
da politica.

Aos _Fados_ de nomenclatura (como os nauticos) que do caracter popular
passaram ao caracter scientifico pela intervenção do famoso bohemio
Luiz de Almeida, reservamos menção especial.

Exemplo de _Fados_ toponymicos, a começar por Lisboa:

    _N’este semestre passado,
    Houve grande confusão:
    Foi uma familia séria,
    P’r á rua do Capellão._

    Um _dandy_ todo liró
    Poz escriptos no _Chiado_,
    E mudou-o sôr _Calado_
    P’r’ó _becco do Falla Só_.
    Um excellente _sol e dô_,
    Foi p’r’ó _Pateo socegado_
    Mudou-se um _trapeiro_ honrado
    Para o _Collegio dos Nobres_.
    Viram-se em pancas os pobres,
    _N’este semestre passado_.

    P’r á _rua dos Sapateiros_
    Mudou-se um _amolador_,
    E até um _entalhador_,
    Foi p’r’ó _Largo dos Torneiros_.
    Foram dois _atheus_ brejeiros,
    P’ra _rua da Conceição_;
    Té se mudou o _Paixão_,
    Para a _Praça d’Alegria_.
    Foi immensa a berraria,
    _Houve grande confusão_.

    P’ra um bello primeiro andar,
    Sito no _Largo do Rato_,
    Foi o senhor _João Gato_
    Com a familia morar.
    Foi um de _livre pensar_,
    Para a _de Santa Quiteria_
    E a familia do _Miseria_
    P’r’ á _Calçada do Pombeiro_;
    P’r’ o Arco do Limoeiro
    _Foi uma familia séria_.

    Um _céguinho_ se mudou
    P’r á _rua da Bella Vista_,
    E uma senhora _modista_
    P’r’ós _Ferreiros_ se passou.
    _N’ Alegria_ casa achou
    O senhor _Pena Tristão_;
    Mudou-se um _avarentão_
    P’r á _rua da Caridade_,
    E foi o _Dr. Verdade_
    _P’r á rua do Capellão_.

Um barbeiro de Bucellas quiz lembrar-se, para me dizer, de certo _Fado_
composto sobre o onomastico locativo do Termo de Lisboa, mas não se
recordou senão d’estes quatro versos:

    Deu Bucellas uma facada
    Na ribeira do Trancão.
    Acudiu-lhe a Ponte Nova,
    Camarate e Appellação.

O _Fado_ saloio tem já hoje vida propria e autónoma. Quero dizer que
os fadistas do Termo não se limitam a copiar os _Fados_ de Lisboa, mas
já por sua vez os compõem sobre assumptos locaes: portanto é natural
que lhes dêem um caracter toponymico.

N’esta especie de _Fados_ a quadra substitue a decima, que é de mais
difficil improvisação; mas já ouvi quadras locaes da Ericeira--por mim
recolhidas em outro livro--[48]cantadas no rythmo do _Fado_.

Sem embargo tambem ha _Fados_ saloios em décimas, que Lisboa exporta
nos almanachs, com o fim de conquistar leitores entre as povoações
suburbanas:


Fado saloio

    _Sou saloio, honro-me d’isso,
    P’ra casacas não sou mau;
    Os janotas atrevidos
    Sei correr a varapau._

    Que andamos no ramerrão
    Dizem lá os de Lisboa;
    Porém entre nós já sôa
    O brado da illustração:
    Escolas já cá estão
    Fazendo bello serviço;
    Eu cá já tenho toutiço
    Para entender os jornaes,
    Tenho ideias liberaes,
    _Sou saloio, honro-me d’isso_.

    Aos comicios vou tambem
    E lá sei fallar em barda
    Contra quem me põe albarda,
    E nos deixa sem vintem:
    É certo que não vou bem
    Com quem se me faz marau;
    Mas jámais corro a calhau
    Quem me sabe respeitar;
    Se não veem cá namorar
    _P’ra casacas não sou mau_.

    P’r’ as madamas que cá veem
    Com o fim de tomar ares,
    Temos modos singulares
    E attenções como ninguem;
    Nós cantamos muito bem
    Os doces fados corridos;
    D’amor mil versos sentidos
    Sabemos improvisar.
    E com elles castigar
    _Os janotas atrevidos_.

    E saiba qualquer senhor
    Que eu, saloio esperto e girio,
    Não soffro manguem co’o cirio
    A que tenho tanto amor:
    Se vem com ar zombador
    Algum janota marau
    Fazer o _serviço mau_
    De quem a crença me ataca,
    Verá como eu um casaca
    _Sei correr a varapau_.

O Algarve tem o seu _Fado_, que abrange toda a provincia:


Fado algarvio

    _Dos seus fructos abundantes
    O Algarve se ensoberbece;
    Graças ao trabalho honrado,
    De dia a dia enriquece._

    Quem é que torceu a venta,
    Quem fez, acaso, careta,
    Ao bom vinho da Fuzeta
    Que o nosso Algarve apresenta?
    Quem é que se não contenta
    Co’os nossos figos chibantes?
    Quem não quer ver quanto antes
    No prato o atum saboroso?
    Pasma este solo, orgulhoso,
    _Dos seus fructos abundantes_.

    Abundante e variada
    É no Algarve a pescaria,
    E quem na vida porfia
    Mantém sempre a vida honrada;
    A figueira abençoada
    Vigorosa aqui floresce;
    Por parte alguma apparece
    Outra que lhe seja igual.
    De n’ella não ter rival
    _O Algarve se ensoberbece_.

    É bem formosa Tavira,
    Villa Nova formosa é,
    Formosissima Loulé,
    Gloria a Faro ninguem tira:
    Galharda brilha Odemira
    Em o seu torrão fadado;
    E de pobre ou rico estado,
    Do Algarve a boa gente
    Leva a vida alegremente,
    _Graças ao trabalho honrado_.

    Salve, pois, terra eminente
    A que devo chamar nobre,
    Onde o rico vale ao pobre
    Tão briosa e christãmente!
    O Algarve um brado valente
    De toda a nação merece;
    E é justo que aqui me apresse
    Em offerecer a cantiga
    A quem, graças á fadiga,
    _De dia a dia enriquece_.

Os assumptos biblicos são muitas vezes aproveitados pelo cantador
fadista n’um sentido religioso.

Por exemplo:

    A doce mãe de Jesus,
    Que remiu a humanidade,
    Sentia a cruel saudade
    Que ao nada a alma reduz.
    Nos céus não havia luz
    Desde o sul até ao norte,
    Só ella chorava a sorte
    E o seu tão horrivel trilho,
    Porque, ali, do querido filho
    A Virgem chorava a morte.

    Quão amargo era o seu pranto,
    Quantas lagrimas vertia
    Ao pensar que lhe morria
    Quem na vida amava tanto!
    Seu coração puro e santo
    Sentia-se aniquilado,
    E ora erguia aos céos um brado
    Repassado de desgosto,
    Ora olhava o bello rosto
    Do seu filho idolatrado.

Tambem o fadista investe ás vezes com os problemas mysteriosos de alem
da campa, como n’este _Fado_:

    _Satanaz, rei do Averno,
    Reunindo o seu conselho,
    Mandou fazer a caldeira
    Do grande Pero Botelho._

    Clara ideia ninguem faz
    Da sua monstruosidade,
    Nem de quanta humanidade
    Em suas fornalhas jaz.
    Por ordem de Satanaz
    Foi posta ao meio do inferno,
    E á ordem do seu governo
    E ali tudo queimado,
    Depois de haver decretado
    _Satanaz, rei do Averno_.

    As bruxas em volta d’ella
    Preparam enguirimanços,
    E os mais negros manipanços
    Vigiam-n’a, com cautella.
    Ali cae desde a donzella
    Ao condemnado mais velho.
    Ha bem perto um apparelho,
    Semelhante a uma lousa,
    Onde o diabo repousa
    _Reunindo o seu conselho_.

    Os infernaes feiticeiros
    Que do demonio são filhos,
    Cantam tristes estribilhos,
    Ateiam os seus brazeiros.
    Horropilam os berreiros
    Que saiem d’esta lareira!
    Mas o rei vendo a maneira
    Como as almas se perdiam,
    Vendo que mais appar’ciam,
    _Mandou fazer a caldeira_.

    É ali que tudo finda,
    Ali tudo se consome:
    De Pero lhe deram o nome
    P’la sua crueza infinda.
    Quem para o céu se não guinda
    Attente bem n’este espelho:
    Pois quem segue mau conselho,
    Ou caminha com cegueira,
    Vae acabar na caldeira,
    _Do grande Pero Botelho_.

Quanto á historia de Portugal, tenho ouvido _Fados_ sobre os amores e
morte de D. Ignez de Castro e ainda sobre outras epocas e assumptos,
como por exemplo:

    _Fazer nos Lusos matança
    Muitos tyrannos tentaram;
    Mas á voz da Liberdade,
    Elles seus fóros salvaram._

    Foi Dom João o primeiro,
    Quem, por seu punho real,
    Para livrar Portugal,
    _Estafou_ o conde Andeiro.
    Dona Leonor n’um berreiro,
    Pedia ao povo vingança;
    Porem fugindo-lhe a esp’rança
    De recobrar o seu mando,
    Deu-se á prisão; mas jurando,
    _Fazer nas lusos matança_.

    Lá se partiu p’r’as Hespanhas,
    Pedir ao rei que a vingasse,
    Que Portugal conquistasse,
    Contando-lhe outras patranhas.
    Umas taes artes, e manhas,
    Sempre o hespanhol abalaram:
    Logo os seus terços entraram
    No reino, altivos e bravos;
    E já fazer-nos escravos,
    _Muitos tyrannos tentaram_.

    Mas os famosos montantes
    De Dom João, formidavel,
    E do seu grão Condestavel,
    Deram-lhes rijo, possantes.
    Eis rôtos já, vacillantes,
    Os hespanhoes, co’anciedade,
    Fogem, ou pedem piedade;
    Triumpham, pois, dos revézes
    Esses leaes portuguezes,
    _Mas á voz da Liberdade_!

    Sempre em continuas batalhas
    Seu nobre sangue vertendo,
    Aos inimigos tecendo,
    Com ferro, as negras mortalhas;
    Eis como assim das migalhas
    O reino todo alimparam;
    Eis como, pois, alcançaram
    Das nações todas respeito:
    E á Liberdade com preito
    _Elles seus fóros salvaram_!

Disse-me o sr. Verol Junior tencionar imprimir uma collecção de
_Fados_, que abrange todos os periodos da historia de Portugal.

A vida do fado está intimamente relacionada com a tauromachia.

O fadista não falta a uma espera de touros, com a sua guitarra na mão;
o fadista de um e outro sexo, mulheres e homens.

Antigamente o enthusiasmo era maior, no tempo da Severa e do Vimioso,
quando os fidalgos, «amadores» e «cavalleiros», não perdiam uma espera,
nem uma tourada.

A tradição tauromachica era então muito mais intensa do que hoje,
porque no seculo XVIII tinhamos tido _touros de morte_, e o enthusiasmo
pelas luctas cruentas do redondel conservava ainda, no espirito do
povo, um rescaldo ardente.

No seculo XVIII havia em Lisboa nada menos de quatro praças de touros:
a da Estrella, nas terras do Infantado; a da Parada, junto ao Rocio;
a do Salitre, e a do Campo de Sant’Anna. Não fallando no Terreiro do
Paço, onde se realizavam as touradas de maior pompa.

Quem fazia as cortezias era o _neto_[49], (meirinho da cidade); quem
as recebia era o rei, o senado da camara, o tribunal da junta da casa
do Infantado, e, ás vezes, Nossa Senhora!

Assim, no programma de uma corrida _em obsequio da devotissima imagem
de Nossa Senhora do Cabo, sendo o producto para os cultos da mesma
Senhora_, lê-se o seguinte: «Ás duas horas e meia estará tudo prompto,
e feito o signal costumado, entrará o Neto a fazer as suas cortezias á
devotissima imagem de Nossa Senhora, que ha de estar collocada em um
logar proprio, e depois ao Tribunal».

Por esta não esperava de certo o leitor: que a propria imagem de
Nossa Senhora, collocada em altar todo florente de galas, fosse quem
recebesse as cortezias do cavalleiro.

O costume de fazer touradas em beneficio de Nossa Senhora e dos santos,
era então vulgarissimo.

Em setembro de 1778 effectuou-se na Praça do Commercio um combate de
touros, como n’esse tempo se dizia, _a bem do adeantamento das obras da
egreja de Santo Antonio d’esta cidade_.

Assistiram suas magestades.

Em agosto d’esse mesmo anno realizou-se na Praça do Commercio uma
tourada em beneficio de Nossa Senhora do Cabo, funcção promovida pelo
capitão João Dias Talaia Souto Maior, _como escravo que era, e toda a
sua familia_, da mesma Nossa Senhora.

Os touros, em numero de 25, afóra os que vinham sobrecellentes, eram
offerecidos bizarramente pela casa real.

No mesmo anno pediu o padre Emygio José da Costa licença para organizar
um combate de touros na Real Praça do Commercio, a fim de adquirir uma
avultada esmola destinada aos enfermos particulares da capital.

 «_Os touros que hão-de morrer_, dizia o programma, _são dezeseis_, que
 El-Rei N. Senhor e varios fidalgos d’esta Côrte deram para o presente
 dia.»

Aqui temos, pois, as _touradas de morte_, que tanto horrorisam os
portuguezes que a ellas assistem hoje em Madrid, Badajoz ou qualquer
outra praça hespanhola.

_Quantum mutatus ab illo_... o portuguez!

Outro programma dizia:

 «Entrará Nicolau Theodoro, suhiço (sic), vestido á suhiça com uma
 lança na mão, e sobre uma mesa á porta do touril esperará um touro, e
 ao tempo que o investir lhe metterá a lança, e repentinamente saltará
 por sima d’elle; e ficando em pé metterá a mão á espada, e esperará o
 touro cara a cara, e promette matal-o ás estucadas ou ás cotiladas.»

Copio textualmente para conservar toda a feição historica do
programma. Pela mesma razão não alterei a orthographia dos seguintes
periodos que de outros varios programmas vou transcrever.

 «Entrará o Neto a fazer as cortezias ao Tribunal, e depois um breve
 divertimento de algumas danças, em quanto os cavalleiros se põem
 promptos, e rodeando a praça sahirá tudo para fóra, entrarão os
 quatro contendores a fazer as cortezias do costume ao Tribunal, em
 primeiro lugar Theodoro Francisco Ribeiro, o qual já domingo passado
 entrou tambem em primeiro logar, e mostrou o quanto era destemido; em
 segundo logar Jacintho Pinto de Moraes, aquelle que domingo passado
 ficou sem capa, pelo Touro lha tirar dos hombros, e n’este dia a quer
 restaurar; em terceiro logar Thomaz Cesar, o polvilheiro, que por
 esta Cidade vende poz (sic), que tendo noticias, que domingo passado
 os cavalleiros fizeram tantas proezas, quer elle imital-os; em quarto
 logar Carlos Antonio Canute, Genovez de Nação, com logea defronte do
 Palacio do Excellentissimo Monteiro Mór, sujeito de muito valor, e
 forças, e a figura muito especial, tem viajado pela China, e Indias de
 Hespanha, e quer mostrar como n’estes paizes se tourea, etc.»

       *       *       *       *       *

 «Seguir-se-ha logo o Contendor Bernardo de Magalhães e Noronha,
 filho do Capitão Mór de Formoselha, assistente no campo de Coimbra,
 pessoa bem conhecida n’esta côrte, o qual pelo seu nascimento, e
 valor, executará acções muito distinctas. Terá para combater 15
 touros escolhidos das melhores raças; irá acompanhado de seus criados
 ricamente vestidos, e capinhas, tudo com igual aceio.»

       *       *       *       *       *

 «E logo entrarão os contendores, que serão quatro cavalleiros do
 gosto dos senhores espectadores, em primeiro logar Lourenço Antonio
 de Moraes Bandeira, o qual desempenhará n’esta tarde o seu logar,
 pelas valorosas acções que se esperarão do seu animo; em segundo
 logar Sebastião Antonio de Mendonça, igual ao primeiro no mesmo
 valor; em terceiro lugar Francisco da Silva Alcantara, por appellido
 o _fava secca_, este promette á sua parte matar de rojão tres, ou
 quatro touros, por se obrigar a isso no ajuste que fez; em quarto
 lugar Thomaz Cesar, pulvilheiro d’esta cidade, e n’ella muito bem
 conhecido; entrarão estes quatro cavalleiros bem vestidos, e providos
 de bons cavallos, acompanhados dos seus criados, homens de forcado, e
 capinhas a fazer as cortezias, e acabadas sairão para fóra a mudarem
 de cavallos; entrarão novamente, e cada um occupará um angulo da
 praça, e se irão seguindo cada um quando lhe tocar, esperar o touro á
 sahida da porta do touril, ficando n’esta forma touriando, sem haver
 perturbação de logares, somente quando houver duellos os perderão para
 se desaggravarem.»

 «Entrará logo o Neto e depois os contadores a fazerem as devidas
 cortezias ao Tribunal da Junta da Casa do Infantado, os quaes serão
 Caietano Romão, criado do Excellentissimo Conde de Arcos, e João
 Gaspar, Allemão de Nação, professor da arte de Cavallaria, de muitas
 forças e igual valentia, o que pertende fazer certo neste combate;
 para o que promette pôr-se a pé, e chamar hum touro, que esteja
 com todas as suas forças, e ao investir pegar-lhe em huma ponta, e
 passando-lhe o pé dar-lhe huma tão grande cutilada, que, se fôr no
 pescoço, lho deixará quasi separado; e se fôr no lombo, lhe cortará
 o espinhaço, de sorte que lhe sáião os intestinos pela ferida; e se
 pela violencia do touro lh’o não puder fazer da primeira vez, tentará
 segunda e terceira; e no caso que o não possa conseguir apezar de toda
 esta diligencia que promette fazer, chamará o touro de cara a cara, e
 pegando-lhe por ambas as pontas o deitará em terra de pernas assima,
 tudo com muita ligeireza, e desembaraço: e se não fizer destas tres
 valentias huma perderá dez moedas de ouro, que tem depositado; e se
 executar das tres valentias alguma, as ganhará, etc.»

Vejamos agora a nomenclatura que tinham os diversos logares occupados
pelos espectadores:

 «Adverte-se que os preços dos camarotes do primeiro andar são a 600
 réis a vara, e do segundo andar a 480 réis a vara; e as trincheiras da
 sombra a 150 réis, e as do sol a 60 réis.»

N’outros espectaculos, que não fossem touros, mas que se déssem em
qualquer das praças, baixavam os preços consideravelmente.

Assim, n’uma exhibição pyrotechnica, feita por um hespanhol de nação,
_os preços dos camarotes eram a 300 réis por vara, tanto no primeiro
como no segundo andar_, e todos os palanques a 40 réis.

Um outro programma, da Praça do Campo de Sant’Anna, diz:

 «Os camarotes do andar de sima serão com mais comado, (sic).»[50]

Comprehende-se que o seculo XIX recebesse do seculo anterior uma viva
tradição tauromachica, que enthusiasmava ainda o povo pelas antigas
corridas, cujo brilho e perigo não tinham sido menores que nas praças
de Hespanha.

As mulheres de má vida não ficavam indifferentes a essa tradição; não
ficou a Severa, que zombava das suas collegas menos animosas do que
ella, e que fez escola.

Algumas raparigas do fado chegaram a tomar parte em touradas.

Assim aconteceu n’uma corrida realizada em outubro de 1842.

A _Revista Universal_, redigida por Castilho, commemorou o
acontecimento n’este _suelto_ vernaculo, de que se perdeu já o feitio:

«A corrida de touros de domingo ultimo no Campo de Sant’Anna pouca
menção merece. Sim eram bravos os animaes; mas, exceptuando algumas
quédas, alguns corpos humanos marrados e pisados, e algumas saudes
provavelmente arruinadas para sempre, não houve ahi successo por onde a
tarde se podesse chamar boa.

«Semear morte em vultos de figura humana, é de pequeno interesse
dramatico; é preciso dar-lh’a prompta e estrondosa; é doutrina
corrente, é aphorismo entre os partidarios do curro. Para descontar
porém a semsaboria da festa, houve n’ella a novidade (pomposamente
annunciada em todas as esquinas da capital) de uma rapariga a cavallo
n’um rossinante, correndo um toiro á vara larga: o toiro, que a podia
ter morto, contentou-se fidalgosamente de dar-lhe uma licção; e
mettendo os cornos pelos peitos ao cavallo, e arvorando-o a prumo, a
despejou da sella, estirada de costas no meio da praça por entre os
risos dos circumstantes.

«A mulher forte, com razão assomada da descortesia, recavalgou para se
desaffrontar; e não duvidamos que o houvera conseguido, se o cavallo
não discordasse manifestamente das opiniões da cavalleira: o exame
phrenelogico dos dois craneos, se algum curioso de anatomia comparada o
tiver de fazer lá para o futuro, deverá, se nos não enganamos, redundar
todo em gloria do quadrupede.»

O brado de um poeta contra as touradas não encontrava écco; nem as
mulheres nem os homens lhe davam ouvidos.

Qualquer _Fadinho_ toureiro, como relembraremos no capitulo seguinte, o
combatia e supplantava.

Resta-nos ainda fallar de duas especies de _Fados_.

Aquelles que tratam assumptos pornographicos, mais ou menos
desbragados, encontram-se na _Guitarrinha innocente_ e no _Almanach do
fado bréjeiro_.

Quanto aos _Fados_ exdruxulos, e outros que apenas visam a uma
combinação artificiosa de palavras, technicas ou arrevezadas, havemos
de incluil-os na secção dos _Fados de nomenclatura_, não porque
propriamente o sejam, mas porque melhor ficarão ali do que em qualquer
outro grupo.

[Illustração: FADO CHORADINHO]


NOTAS DE RODAPÉ:

[40] Cordas da guitarra.

[41] Alberto Bessa, _A giria portugueza_.

[42] Adolpho Coelho, _Os ciganos de Portugal_, pag. 56.

[43] Bute é uma das palavras que o calão adoptou das linguas
estrangeiras. Vem do inglez _boot_, bota, pé. (Adolpho Coelho.)

[44] Dos Cordões, por trazer sempre dois ao pescoço. Esta mulher devia
ser do norte. Morava na rua das Gaveas.

[45] A _Borboleta_ inculcava-se irmã natural do infeliz tribuno Vieira
de Castro. Quando ella morreu, cantou-se-lhe um _Fado_ que dizia:

    Se em seu collo de alabastro
    Nutrisse conducta sã,
    Desmentira o _ser_ irmã,
    Do fraco Vieira de Castro.
    Estava escripto no cadastro
    Da sorte que os malfadou,
    Matar o irmão quem matou;
    Tornar-se a irmã prostituta,
    Que d’essa _chamma_ corrupta
    Tanto á _luz_ se aproximou!...


[46] Victor Hussla inspirou-se certamente n’esta lettra quando compoz a
ballada «Triste vida do marujo».

[47] _Dom Antonio_ ou _Antonio Caro_ era o illustre estadista Antonio
Maria de Fontes Pereira de Mello, chefe do partido regenerador. Este
partido estava então no poder, sendo chefe do gabinete, por delegação
de Fontes, o conselheiro Antonio Rodrigues Sampaio.

[48] _Sem passar a fronteira_, pag. 138.

[49] N’um opusculo em que se descrevem as touradas com que o senado
da camara de Lisboa celebrou a acclamação da rainha D. Maria I,
encontra-se a origem da accepção tauromachica da palavra _Neto_. Diz
o folheto. «Seguiu-se a entrar na praça o meirinho da cidade João
Marcelino Alvares de Sá (_a que o vulgo n’estas funcções chama Neto,
pela tradição de um meirinho de appellido Neto, que assistiu a muitos
d’estes festejos_) etc.» É uma nota curiosa, e por isso a registamos.

[50] Todas estas noticias foram colhidas n’uma curiosa collecção de
programmas, coordenados em volumes de miscellanea, que existem na
bibliotheca da Academia Real das Sciencias de Lisboa.



                                  IV

                     A Severa e o conde de Vimioso


Toda a gente falla ainda da Severa, porque o typo d’essa mulher perdida
ficou como que personificando a época famosa do _delirio_ n’uma
sociedade de marialvas opulentos, que viviam para a guitarra, para as
touradas, para as extravagancias alegres e ruidosas, em que a vida
parecia arder como a resina no fogo.

De todas as mulheres da mesma estofa, que a tradição tornou celebres,
a Joaquina dos Cordões, a Escarnichia, a Amalia Bexigosa, a Conceição
Capellista, foi a Severa aquella cuja individualidade parece ter
consubstanciado todas as lendas da bohemia fadista, da vida picaresca
de Lisboa, das aventuras do _redondel_ e do alcouce, que tiveram um
periodo de fascinação capitosa.

Mas, se toda a gente falla ainda da Severa, é fóra de duvida que a
geração de hoje em dia não tem sobre o assumpto senão uma vaga idea
fugitiva, que apenas as cantigas do _Fado_ alimentam ainda, e que tende
a apagar-se como uma lenda que morre estrangulada pela corrente de
novos costumes e novas proezas.

No lapso de cincoenta annos a figura da Severa, a muza plebea do
_Fado_, a cuja vida destragada associára a homenagem de fidalgos e
populares, a cuja guitarra dolente o conde de Vimioso reconhecia o
prestigio de um alaude divino, tem-se diluido como todas as tradições
que enchiam de saudade o coração dos velhos que ainda chegamos a
conhecer, hoje, na sua maioria, adormecidos para sempre na paz do
tumulo.

Através do confuso nevoeiro da versão oral, o sr. Julio Dantas desenhou
os perfis, empallidecidos pela acção do tempo, da Severa e do conde de
Vimioso n’um drama, representado e publicado, e n’um romance tambem
publicado; mas o sr. Miguel Queriol, contemporaneo d’essas duas famosas
individualidades, acudiu logo, n’um interessantissimo artigo que _O
Popular_[51] estampou, a reavivar a physionomia exacta do conde e da
Severa, e a esclarecer alguns pontos escuros da biographia de ambos.

Para nos guiarmos na reconstituição d’essas duas figuras tradicionaes,
devemos dar preferencia ás indicações das trez testemunhas coetaneas
que teem escripto sobre o assumpto: Luiz Augusto Palmeirim, já
fallecido; Miguel Queriol e Raymundo Antonio de Bulhão Pato, ainda
vivos, felizmente.

Muitas pessoas suppunham, e eu com ellas, que a Severa pertencia,
pela sua origem, a essas hordas de ciganos errantes que, na passagem
por Lisboa, faziam outr’ora _quartel general_ no Paço da Rainha, e
que atravessavam em grupos a rua da Inveja, de S. Lazaro e o Campo de
Sant’Anna.

Todavia, como se verá, o sr. Miguel Queriol, com toda a sua auctoridade
de contemporaneo, affirma categoricamente que a Severa «nunca foi
cigana, mas uma esbelta e infeliz filha de uma megéra, que a explorava,
e era bem conhecida na policia pela alcunha de _Barbuda_.»

Alguem, certamente por informação que reputou fidedigna, disse já que o
conde de Vimioso tambem manteve intimas relações com a mãe da Severa, a
qual, mais tarde, viveu com o cavalleiro tauromachico D. H. B.[52].

Nunca ouvi isto a ninguem, mas é possivel, desde que o sr. Queriol
affirma que a _Barbuda_ explorava a filha: seria ella propria que a
lançára na prostituição, facto abominavel, mas infelizmente vulgar na
sua classe.

Por aqui se póde ver quão valioso e importante é o testemunho dos
coevos, no meio de tantas e tão imprevistas versões, para se chegar a
reatar um tenue fio de verdade historica.

A lenda até já produziu uma duplicação de Severas.

De Evora disseram ao sr. Adolpho Coelho existir ali uma cigana,
que foi amante do ultimo conde de Vimioso, _e que é a cantada nos
acompanhamentos de viola com o nome de Severa_.[53]

Mas a cigana de Evora não se chamava Severa, e o sr. Adolpho Coelho
inclina-se a crer que ella teria sido amante de um conde de Vimioso
mais antigo que o ultimo.

Ora D. Francisco de Paula Portugal e Castro, ultimo conde de Vimioso,
florescia no vigor dos 20 annos em 1837. Admittindo que a cigana de
Evora andasse pela mesma idade, teria em 1892, quando o sr. Adolpho
Coelho publicou o seu livro, 55 annos.

Se ella houvesse sido amante do penultimo conde, que falleceu em 1840,
deveria ser septuagenaria em 1892.

O informador eborense não diz que a cigana fosse de provecta idade,
circumstancia que decerto lhe não teria escapado, pois que informa com
minuciosidade dizendo que ella vivia na companhia de um filho que era
alfaiate, mas usava nome fidalgo; que tinha ainda outro filho, que
residia em Lisboa e constava ser rico; que ella, como as demais que
aberram dos principios da seita, foi despresada de todos os ciganos e
vivia isolada com aquelle filho.

Deve ter sido amante do ultimo conde, se o foi, e talvez do facto de
ser cigana proviesse, por confusão, o motivo de se haver julgado que a
Severa pertencia á mesma raça.

N’um apontamento que Bulhão Pato deu a Urbano de Castro, o illustre
poeta da _Paquita_ diz sempre «Maria Severa», o que faz crêr que
«Severa» era sobrenome, adoptado e popularisado como «nome de guerra.»

Palmeirim conheceu a Severa, foi vel-a com o interesse de quem visita
uma celebridade. Morava ella então no Bairro Alto. E parece que a
encontrou n’um momento de tédio, em que ella o recebeu mal, e elle
ficou desagradavelmente impressionado.

Conta Palmeirim, textualmente:

«Quando entrei em casa da Severa, modesta habitação do typo vulgar
das que habitam as infelizes suas congéneres, estava ella fumando,
recostada n’um camapé de palhinha, com chinellas de polimento ponteadas
de retroz vermelho, com um lenço de seda de ramagens na cabeça, e as
mangas do vestido arregaçadas até ao cotovello.

«Era uma mulher sobre o trigueiro, magra, nervosa, e notavel por uns
magnificos olhos peninsulares. Em cima de uma mesa de jogo estava
pousada uma guitarra, a companheira inseparavel dos seus triumphos; e
pendente da parede (sacrilegio vulgar nas casas d’aquella ordem) uma
pessima gravura, representando o Senhor dos Passos da Graça!

«Antes da minha apresentação, que foi rapida, e sem cerimonia, a
Severa que logo conheceu não ser eu um official do officio, isto é um
fadista emérito, como quasi todas as pessoas que lhe eram apresentadas,
mimoseou-me com uma saraivada de injurias, a que eu repliquei de
prompto, dando logar a uma sabbatina pouco edificante, de que me sai
como defendente a contento d’ella propria, que não esperava encontrar
n’um _liró_ um contendor capaz de lhe replicar ao pé da lettra».[54]

Tudo isto se poderá explicar, na Severa, por um irritante orgulho de
celebridade e uma longa pratica de impudores de classe.

Aquella mulher, que um fidalgo portuguez notára e distinguia, e que, de
guitarra na mão, era enthusiasticamente applaudida por muitos outros,
vendo crear-se á volta do seu nome uma atmosphera estonteante de
vaidade, devia por vezes achar-se contrariada fóra d’esse meio que a
celebrisára, e que representava para ella o enlevo, o sonho, a poesia
na desgraça; devia achar-se constrangida na presença de pessoas que
não eram fidalgos, nem toureiros, nem marialvas, nem guitarristas, nem
cantores celebres do _Fado_.

E nas horas de aborrecimento, o seu caracter resoluto, o seu orgulho
explosivo, a sua lingua solta e ponteira, encontravam como desabafo
o vocabulario torpe que ella aprendêra desde pequena, talvez com a
propria mãe.

Na hora em que Palmeirim a viu e ouviu, não estava ao pé d’ella o conde
de Vimioso a exercer a suggestão da grandeza e da fidalguia; faltava
ali o prestigio que vinha das noites de luar, das esperas de touros,
das serenatas de _Fado_, das aventuras esturdias, dos applausos da
multidão.

Tambem os grandes actores perdem toda a sua grandeza fóra do palco,
quando vistos na realidade da existencia.

Falta-lhes o fogo divino, a commoção, a arte; falta-lhes a luz
da ribalta que os illumina; a illusão que lhes é emprestada pela
caracterisação e pelo scenario; falta-lhes o enthusiasmo do publico,
que os admira e que os applaude.

A Severa era n’essa hora uma celebridade arregaçada até ao cotovello,
mergulhada em silencio como a guitarra que jazia sobre a mesa, abatida
na solidão e na ausencia do Vimioso.

Comprehende-se a sua revolta, o seu mau humor irritado, como tambem se
comprehende, embora pareça paradoxal, que sempre que o conde queria
dominal-a como se prende uma ave n’uma gaiola, ella lhe fugisse para
saborear a liberdade reles do alcouce, que lhe dava orgulho, porque
d’ali subira á celebridade, ali a iam procurar os bohemios fidalgos
e famosos, desejosos de ouvir a sua guitarra e a sua voz enternecida
soluçando o _Fado_.

O sr. Miguel Queriol conta no artigo do _Popular_ quando e como viu a
Severa em casa do conde de Vimioso.

Foi uma noite, á saida de S. Carlos, que elle Queriol e alguns
amigos (Augusto Talone, Frederico Ferreira, Antonio de Serpa, João
Blanco e outros) tendo alugado burros no Poço de Borratém, seguiram
alegremente, _au clair de la lune_, para o palacio do conde no Campo
Grande.

Ahi encontraram em partida de jogo, sendo Fidié o banqueiro, uma boa
roda de amigos: D. Antonio Galveas, Roberto Payant, D. José de Almeida
Mello e Castro «O Cazuza», etc.

[Illustração: O Conde de Vimioso]

Queriol descreve: «... depois de muita chalaça e folia em que tomaram
parte algumas festejadas companheiras de outros amigos que em seges
de aluguel se nos haviam antecipado, quebrando a monotonia de uma
sociedade composta só de homens, o conde de Vimioso mandando entrar a
Severa e pedindo a Roberto Camello que a acompanhasse na guitarra, nos
deu uma audição de _Fado_ até então desconhecido da maior parte senão
de todos os ouvintes.»

Esta declaração é importante, porque vem confirmar tudo quanto havemos
dito sobre a data provavel em que principiou a usar-se a palavra _Fado_
como synonymo de canção.

Não se contradiz o sr. Queriol quando n’outro relance do seu artigo
escreve que o _Fado_ já anteriormente se cantara «na prôa dos navios
de guerra á mistura com a vida do marinheiro e outras canções em que a
triste sina ou miserias da vida arrastavam ao infortunio».

Sim, cantavam-se as canções tristes e fatalistas dos portuguezes, n’um
rythmo dolente; mas ainda se não havia dado a esse typo de canções
populares a categoria musical e o nome generico de _Fado_.

É isso o que temos sustentado n’este livro, é isso o que o sr. Queriol,
que hoje conta mais de 70 annos, affirma no seu artigo, quando diz que
o _Fado_ era até então desconhecido da maior parte senão de todos os
ouvintes.

Quanto ao physico da Severa, o sr. Queriol está em accôrdo com
Palmeirim: nenhum reconhece que fosse bella, mas ambos dão a impressão
de que era elegante; um gaba-lhe os olhos, o outro o cabello; do
que resulta que seria, como tantas outras portuguezas, uma mulher
attraente, sem formosura, pela sua linha airosa e pelo encanto dos
olhos e do cabello.

No attinente ao moral, é que parece haver desharmonia entre o sr.
Queriol e o fallecido Palmeirim; mas talvez possamos chegar a uma
conclusão conciliatoria.

Vejamos o que escreveu o primeiro, pois que já vimos o que o segundo
escreveu.

Diz o sr. Queriol, referindo-se á noite, de que vem fallando, em casa
do conde:

«Ora a Severa apresentava-se como uma serviçal e não com pretensões a
dona de casa.

«Se bem me recordo era uma rapariga esbelta, bem apessoada, cabello
escuro e farto com um ar de desenvoltura sem ultrapassar as
conveniencias da sua posição para com quem a favorecia, trajando limpa
mas modestamente sem fazer lembrar a desgraça da classe em que menos
o vicio que a miseria a havia precipitado, e que pela sua timidez se
mostrava contrafeita no meio social em que ali se achava.

«É possivel que a Severa no seu meio ordinario fosse a desregrada
fadista da lenda, mas o que _de visu_ posso assegurar, e para
confirmação do que appello para os que, ainda vivos, frequentaram
as boas e _más_ companhias da nossa mocidade, é que a impressão que
conservo da desgraçada heroina, hoje tão celebrada, apenas se limita a
uma satisfação passageira e caprichosa do conde, que como o gastronomo
saciado do continuo gozo da boa cosinha se deleita com satisfação
no apetitoso prato de sardinha ou no enlevo odorifero do acepipe de
taberna.»

Não lhe nega o sr. Queriol um certo «ar de desenvoltura», o ar
_canaille_ da sua profissão provocante. Mas conheceu que a Severa, em
casa do conde, perante tão luzida companhia de mulheres que valiam mais
do que ella, e de homens que eram os primeiros estroinas elegantes da
epoca, se mostrava submissa, quasi timida.

Nenhuma d’aquellas pessoas--ou todas ellas--a teria acobardado cara
a cara na sua casinha de rameira, onde Palmeirim a viu, quando ella,
entregue a si mesma, não era mais do que a Severa da matricula, uma
desgraçada como outra qualquer.

Mas, no palacio do Campo Grande, acabava a realidade e começava o sonho.

Ella era como um actor que vae entrar em scena e que, sempre nervoso e
agitado, por maior que seja o seu merito, já sente o calor da ribalta,
a respiração do publico, o frémito da sala.

Toda a gente sabe que nem os grandes actores escapam á timidez
supersticiosa, quando entre bastidores esperam a «deixa.» Todos elles
se persignam antes de se defrontar com o auditorio. Mas uma vez
em scena, entram n’uma região ideal que os absorve, e ás vezes os
divinisa. Já não são timidos, nem supersticiosos; vão affoitamente até
onde o seu talento os leva.

A Severa, tal como o sr. Queriol a viu, achava-se na situação
hesitante, no momento indeciso, do actor que sae da realidade para
entrar no mundo do sonho.

Depois, tangida a guitarra, ella era como um artista em scena:
commovia-se, soluçava, chorava, cantava chorando, arrebatava-se e
arrebatava os outros.

A guitarra é, pela sua voz maviosa, um dos instrumentos que
mais impressionam, talvez o primeiro em produzir effeitos de
sentimentalidade; o _Fado_ tem o que quer que seja de simplicidade
grandiosa e dilacerante, como toda a expressão de uma dor sincera.

O sr. Julio de Castilho n’um dos seus livros confessou de si mesmo
esta intima fragilidade: «A bordo de um paquete estrangeiro, uma vez,
em viagem do Cabo da Boa Esperança, peguei n’uma guitarra, e sosinho
comecei a repetir uns pobres fadinhos da Mouraria. Pois não pude ir
ávante; restitui a guitarra ao dono, e tive de me afastar.»[55]

Palmeirim diz nos _Excentricos do meu tempo_: «se de longe me chegam
aos ouvidos os sons de uma guitarra tocada com sentimento, deixo-me ir
atraz d’esses sons aos mundos dos proprios sonhos, agradecido á aragem
que m’os trouxe tirando-me por momentos da aridez da vida positiva.»[56]

De mim lhes posso dizer que em 1873, quando cheguei a Lisboa, me
causaram profunda impressão os primeiros _Fados_ que ouvi na guitarra,
de noite. N’um livrinho escripto muito á pressa logo nos primeiros
dias, do que resultou ficar imperfeito e ser incompleto, encontro
estas palavras que são o testemunho espontaneo da suggestão recebida:
«O fado tem a poesia natural das grandes angustias, a tristeza dos
que soffrem desamparados. É o hymno da desgraça, o romance das maguas
obscuras, a epopêa do povo. Não ha sentimento doloroso que a linguagem
melancolica do fado não reproduza desde a saudade do tombadilho até á
afflicção do lupanar. É o pensamento dos que não sabem exprimil-o. Para
interpretar o fado nenhum instrumento mais de geito que a guitarra.
Está costumada a cantar tristezas desde a mais remota antiguidade, e
alem d’isso falla tão baixinho que não chega a incommodar os grandes,
os felizes, os opulentos. É quasi uma creança que chora ou uma mulher
que suspira. Impressiona e não atordoa. Faz-se ouvir, mas não se
impõe.»[57]

Eu, que trazia os ouvidos cheios das alegres canções populares do
norte, da _Canninha verde_, do _Malhão_, do _Vira_, deixei-me subjugar
pela triste canção do sul e lembro-me ainda--já lá vão quasi trinta
annos!--de que tambem compuz a lettra de um _Fado_, que principiava
assim:

    Hontem a noite era bella.
    Na guitarra um namorado
    Tangia sob a janella
    Um fado triste e chorado.

Não me lembra o resto, e importa pouco.

Mas, voltando ao ponto, parece que os nossos dois informadores,
Palmeirim e Queriol, acabarão por ficar de accôrdo: é que na Severa,
como em quasi todas as pessoas de uma sensibilidade doentia, havia duas
entidades diversas--a da realidade e a do ideal.

E quando a ella lhe faltava a atmosphera do sonho, que principiava a
engrandecel-a, e a embriagal-a; quando queria preparar-se para cantar,
sem se encontrar n’um meio suggestivo que a levantasse, recorria ao
vinho, diz a tradição; embriagava-se a valer.

As esperas de touros exaltavam-n’a, faziam-n’a delirar. A paixão
tauromachica completava a feição bohemia d’aquelle tempo. O Vimioso
era um cavalleiro eximio, o primeiro entre todos. A Severa seguia-o
fascinada. Então, no calor da noitada, ao luar e ao relento nas
Marnotas, a Severa, excitada, cantava _Fados_ gaiatos, cantigas _a
atirar_, ironicas, picantes, contendendo com as outras mulheres menos
celebres do que ella.

Uma vez desfechou contra a Joaquina dos Cordões este mote trocista:

    Eu já vi n’uma tourada
    A Joaquina dos Cordões,
    Mal viu dar dois trambolhões,
    Ficar logo desmaiada.

O conde de Vimioso affeiçoara-se-lhe, porque reconhecêra na Severa a
mais intelligente e espirituosa fadista de Lisboa, a que melhor sabia
cantar e bater o _Fado_.

Mas, ponhamos de parte a lenda, não se deixou arrastar nunca por uma
paixão delirante e degradante. Nunca deixou de ser um fidalgo, um
gentilhomem; nunca enlouqueceu por amor da Severa. Foi, na primeira
sociedade, um bohemio, mas não perdeu nunca a sua linha aristocratica.

Dil-o o sr. Queriol: que o conde, gastronomo saciado de boa cosinha, se
deleitava, por extravagancia, saboreando uma sardinha de taberna.

Isso foi um tanto moda entre os fidalgos antigos, e ainda o era no
tempo do conde.

N’elle talvez um pouco mais persistentemente do que em outros; mas só
isso.

O _Diccionario Popular_, n’um artigo escripto por Pinheiro Chagas, vem
em reforço do sr. Queriol: «O conde de Vimioso era um toureador de
primeira ordem, e procurava de preferencia uma sociedade menos propria
da sua alta ascendencia, _apesar de se apresentar na outra como um
verdadeiro fidalgo_.»[58].

Ainda havemos de transcrever passagens do artigo do sr. Queriol, que
completarão este juizo.

Talvez que o conde de Vimioso pudesse ter-se apaixonado pela Severa,
se conseguisse domal-a, arrancal-a á vida que ella arrastava. Se o
fizesse, acabaria por aborrecer-se. Ella, intelligente como era,
comprehendia esse perigo, e evitava-o. Faltar-lhe-ia então o prestigio
da libertinagem, a nota canalha, mas acirrante, da sua existencia de
fadista. Antes «sardinha» toda a vida do que «_foie gras_» uma hora.

Não ha duvida de que o conde de Vimioso, sem querer descer inteiramente
até á Severa, procurou guindal-a até elle, adoptando-a como sua amante.

E houve uma occasião em que ella pareceu disposta a deixar-se
escravisar. Chegou a estar guardada por criados do conde durante uma
noite. Mas o travesseiro aconselhou-a bem, e ella retomou logo o seu
bom-senso, ao accordar.

De manhã veiu para a janella, e respirou a plenos pulmões o ar livre e
fresco da rua.

Passavam carroças de lavadeiras, coguladas de trouxas de roupa lavada.
A janella era baixa, a Severa pendurou-se do peitoril, deixou-se cair
dentro de uma das carroças. Fugiu.

De outra vez, havia-se escapado á vigilancia do conde de Vimioso.
Ninguem sabia d’ella, em vão a procuravam por toda a parte. Só ao
cabo de muitas pesquizas foram encontral-a n’uma taverna do largo dos
Inglezinhos sentada a tocar guitarra no meio de um auditorio compacto.

Então, um dos amigos do conde, que por ali passara, esgalgando o
pescoço por entre o grupo dos ouvintes, cantou ao som da guitarra da
Severa:

    Todos aquelles que são
    Da nossa sucia effectiva
    Lamentam a fugitiva
    Da rua do Capellão.

A Severa levantou, contrariada, a cabeça, tendo conhecido aquella voz.
Estava apanhada, fôra descoberta; mas esse aventuroso incidente ainda
mais augmentára a sua celebridade.[59]

Creio que deixo reduzida a biografia da Severa aos seus verdadeiros
termos.

A lenda é boa; mas a historia é melhor.

Não ha duvida que a morte d’esta fadista celebre, que, prematuramente
esgotada, falleceu aos vinte e seis annos de idade, em resultado de
uma congestão que uma ceia de borrachos assados provocou, foi um
acontecimento de sensação nas classes populares e até na bohemia
elegante de Lisboa.

Appareceu então o seu _Fado_, a que foram ligadas algumas quadras em
que a lenda começou a formar-se desde logo.

    Chorae, fadistas, chorae,
    Que uma fadista morreu.
    Hoje mesmo faz um anno
    Que a Severa falleceu.

    Chorai, fadistas, chorai
    Que a Severa já morreu:
    E fadista como ella
    Nunca no mundo appar’ceu.

    O conde de Vimioso
    Um duro golpe soffreu,
    Quando lhe foram dizer
    Que a Severa falleceu.


Variante:

    O conde de Vimioso
    Terrivel golpe soffreu,
    Quando lhe foram dizer:
    «A Severa já morreu».


Outra variante:

    Quando lhe foram dizer:
    A tua Severa morreu.

    Corre á sua sepultura,
    O seu corpo ainda vê:
    «Adeus, ó minha Severa,
    Boa sorte Deus te dê.»


Variante:

    Corre á sua sepultura,
    Seu cadaver inda vê.
    Disse-lhe: «Adeus, ó Severa,
    «Melhor sorte o ceu te dê.

    «Assim como as flores vivem,
    Minha Severa viveu.
    Assim como as flores morrem,
    Minha Severa morreu.»

    Lá n’esse reino celeste,
    Com tua banza na mão,
    Farás dos anjos fadistas,
    Porás tudo em confusão.

    Até o proprio S. Pedro,
    Á porta do ceu sentado,
    Ao vêr entrar a Severa
    Bateu e cantou o _Fado_.

    Levantae-lhe um mausoleo
    Co’um negro cypreste ao lado.
    E o epitaphio que diga:
    Aqui jaz quem soube o _Fado_.

    Ponde no braço da banza
    Um laço de negro fumo,
    E este signal diga a todos
    Que o _Fado_ perdeu o rumo.


Variante:

Que diga por toda a parte: O _Fado_ perdeu seu rumo.

[Illustração: FADO DA SEVERA]


    Morreu, já faz hoje um anno,
    Das fadistas a rainha.
    Com ella o _Fado_ perdeu
    O gosto que o _Fado_ tinha.

    Chorae, fadistas, chorae,
    Que a Severa se finou.
    O gosto que tinha o _Fado_,
    Tudo com ella acabou.

Comprehende-se que os fadistas tratassem logo de fazer a lenda, que
engrandecia uma heroina da sua classe, associando-lhe o nome ao brazão
do conde de Vimioso.

Mas, o que parece liquidado e certo é que a Severa foi a «_divette_
do Fado»; que ninguem até hoje o soube cantar e bater melhor; e que o
conde de Vimioso, apreciando essa qualidade, frequentou a Severa mais
por extravagancia bohemia do que por loucura amorosa.

Comtudo, oiçamos a lenda, evidentemente de origem fadista:

    _O Conde de Vimioso
    Terrivel golpe soffreu,
    Quando lhe fôram dizer:
    «A Severa já morreu»._

    Na casinha onde habitava
    A mundana tão famosa,
    A turba silenciosa
    Seu cadaver contemplava.
    Ali tudo só pensava
    Em que o seu rosto formoso
    Não par’cia angustioso;
    E a companhia que estava
    Dizia que só faltava
    _O Conde de Vimioso_.

    Então um bello rapaz,
    D’aspecto de cavalleiro,
    Entra sombrio e altaneiro
    Buscando quem ali jaz;
    Febris diligencias faz,
    Procurando o corpo seu,
    E quando co’os olhos deu
    No corpo da sua amante,
    Sentiu um punhal vibrante,
    _Terrivel golpe soffreu_.

    Nos braços seus enlaçou
    A sua qu’rida Severa,
    Que era a doce primavera
    Da paixão que alimentou.
    Os cabellos lhe beijou
    Deixando o pranto correr,
    Nem tentou a voz erguer
    Suffocado pelos ais,
    Mas soffreu ainda mais,
    _Quando lhe foram dizer_.

    Ali tinha o ente amado
    D’encontro ao seu coração,
    Mas na outra occasião,
    ’Stava longe de seu lado.
    Quasi louco, desvairado,
    P’las ruas então correu
    Buscando um amigo seu
    Que o ajudasse a soffrer
    E ao qual pudesse dizer:
    «_A Severa já morreu_».

Do _Almanach da Severa_ para 1902.

    _Corre á sua sepultura,
    Seu cadaver ’inda vê.
    Disse-lhe:--Adeus, ó Severa;
    Melhor sorte o ceu te dê._

    O Conde, qu’rendo prestar
    Homenagem derradeira
    Á formosa companheira
    A quem tanto ouviu cantar;
    Sem conseguir disfarçar
    A sua grande amargura,
    Sente n’alma atroz tortura
    D’um desgosto bem profundo
    E sem qu’rer saber do mundo,
    _Corre á sua sepultura_.

    Então copioso pranto
    Em seu bello rosto corre,
    Ao vêr que já não soccorre
    Quem na vida elle amou tanto.
    Levantando um negro manto
    Um doce allivio prevê,
    Porque n’um momento crê
    Que ’inda lhe póde dar vida.
    E buscando a sua qu’rida
    _Seu cadaver ’inda vê_.

    Mas ao vêr tudo acabado
    Soltou bem fundada praga.
    Todo o rosto se lh’ alaga
    E o seu peito é mart’risado.
    Então a ella abraçado
    Com a dôr se desespera,
    E quando se refrigera
    Co’a doce resignação,
    Apertando-a ao coração,
    _Disse-lhe:--Adeus, ó Severa_.

    «Foste no mundo infeliz
    E pela sorte engeitada;
    Mer’cias ser bem fadada,
    Mas tua sorte não quiz.
    É minh’ alma quem maldiz
    A minha insensata fé
    E pergunto ao céo por que
    Tão cedo te arrebatou?
    Mas foi Deus que assim mandou;
    _Melhor sorte o céo te dê_.»

A lenda foi tomando vulto, propagada nas guitarras do povo e nas trovas
dos fadistas. Alguns escriptores modernos, com maior pompa de estylo
que investigação historica, favoreceram a lenda.

Se não pudesse ouvir-se ainda o testemunho de algum raro contemporaneo,
o conde de Vimioso passaria definitivamente á posteridade como tendo
sido um desvairado e cego amante da Severa, um louco fidalgo apaixonado
até ao desatino.

Ora o que ha de verdade na origem da lenda é que D. Francisco de
Portugal, tendo sido um eximio picador e um destro toureiro, prendas
aliás vulgares então na sua classe, tratava sem orgulho com pessoas
de inferior condição que prestavam serviços n’esses dois generos de
_sport_, e que ou por convivencia com essas pessoas ou por inclinação
natural veiu a ser um fanatico _dilettante_ do _Fado_, circumstancia
que o aproximára da Severa, a qual não foi nunca sua manceba teuda
e manteuda, mas apenas sua parceira nas serenatas de guitarra e nas
esperas de touros, com as facilidades que a situação d’ella podia
proporcionar a todos os outros homens.

Posto isto, resta-me dizer que o sr. D. Caetano de Bragança (Lafões)
possue uma guitarra, que se diz ter sido da Severa, e que é designada,
em virtude da sua fórma, pelo nome de _Melão_.

O ultimo marquez de Angeja, ha pouco fallecido, manifestou-me, porém,
duvidas sobre a authenticidade d’esta procedencia.

Fallemos agora, um pouco mais detidamente, d’aquelle dos Vimiosos cujo
nome foi pela lenda associado ás tradições orgiacas do _Fado_.

A casa Vimioso não é, na historia de Portugal, uma familia incolor, nem
incaracteristica como a de muitos outros fidalgos que se contentaram em
dar frades e freiras aos conventos, esmolas aos santos e almas ao ceu.

Bastaria, para que se não afogasse jamais a memoria d’esta casa, o
facto honroso de ter ella offerecido o lençol em que foi caridosamente
amortalhado Luiz de Camões.

Os Vimiosos tambem são distinctos por outros mais predicados, que
impõem respeitabilidade. Uns cultivaram as lettras, outros a musica,
alguns evidenciaram-se na politica e nas armas.

O primeiro titulo de conde de Vimioso concedeu-o el-rei D. Manuel a Dom
Francisco de Portugal, filho natural do bispo de Evora, Dom Affonso
de Portugal, e neto do primeiro marquez de Valença, primogenito do
primeiro duque de Bragança.

Por aqui se vê o grau de parentesco existente entre Vimiosos e
Braganças.

Dom Francisco de Portugal militou em Africa, servindo o rei em Arzilla
e Azamor; favoreceu muitos estabelecimentos pios; exerceu o cargo de
védor da fazenda; foi varão tão discreto, que lhe deram o cognome de
Catão portuguez, e como cultor das muzas collaborou no _Cancioneiro_ de
Garcia de Rezende.

Succedeu-lhe no titulo seu filho Dom Affonso de Portugal, que na
mocidade aventurosamente acompanhou o infante D. Luiz na expedição de
Tunes, e na velhice seguiu el-rei Dom Sebastião na desgraçada empresa
de Alcacerquibir, levando comsigo trez filhos. Lá morreu captivo,
depois de ter visto na batalha cair morto um dos filhos aos pés de
el-rei.

O seu primogenito, Dom Francisco de Portugal, foi o terceiro conde de
Vimioso. Esteve com o pai em Africa, onde se apaixonou por elle uma
irmã do xerife de Fez.[60] Resgatou-se, e seguiu devotadamente a causa
do Prior do Crato, ficando ferido na batalha de Alcantara. Depois
andou por Hespanha e França a manobrar politicamente em favor do seu
querido Dom Antonio; por elle se tornou a bater no mar dos Açores; e,
finalmente, morreu em consequencia de peçonha que lhe deram para não
cair nas garras de Filippe II.

Foi poeta, muito dado a damarias, e excellente cavalleiro e toureiro, o
que explica, por atavismo, que estas duas prendas resurgissem, seculos
depois, no 13.º conde.

Não deixou descendencia, motivo por que lhe succedeu no condado Dom
Luiz de Portugal, segundo filho de D. Affonso, o segundo conde.

Este Vimioso tambem esteve com o pai em Alcacerquibir, e foi resgatado,
mas Filippe II, por se vingar da affeição do 3.º conde ao Prior do
Crato, sequestrou-lhe a casa. Andou Dom Luiz por Castella mais de
trinta annos a requerer o que era seu, e só pôde rehavel-o tarde, e
minguado.

Com os trabalhos e os annos reavivaram-se-lhe as tendencias para
o mysticismo, manifestadas desde a mocidade. E elle e a condessa
sua mulher deram ao mundo o singular espectaculo de abandonarem
voluntariamente a côrte, a sua casa, os seus filhos, recolhendo-se
a condessa ao convento do Sacramento, que ambos fundaram em Lisboa,
retirando-se o conde para o mosteiro de Bemfica, do qual passou ao de
S. Paulo em Almada, onde professou, vindo a morrer em Evora, e ahi jaz.

Na quarta parte da _Historia de S. Domingos_, livro terceiro, conta
frei Luiz de Sousa largamente a historia d’este estranho divorcio, que
por amor de Deus e sem desamor dos conjuges se effectuou.

E Garrett, no seu bello drama, tambem lhe faz referencia, quando Manuel
de Sousa Coutinho diz á mulher, no segundo acto: «Olha a condeça
de Vimioso, esta Joanna de Castro que a nossa Maria tanto deseja
conhecer... olha se ella fazia esses prantos quando disse o ultimo
adeus ao marido...»

O quinto conde de Vimioso foi D. Affonso de Portugal, primogenito
do conde-frade e da condessa-freira. D. João IV, em 1643, creou-o
marquez de Aguiar,[61] como premio dos serviços que prestára á causa da
Restauração desde os tumultos d’Evora até ás longas campanbas de todo o
Alemtejo, onde teve por émulo Mathias de Albuquerque, que o invejava.

Foi grande amador de musica, tão desvairado por ella, que em Madrid
comprou por seiscentos mil réis duas violas, de bom fabricante, que o
proprio Filippe IV achou caras.

D’esta paixão musical de Dom Affonso incidiu um reflexo atavico sobre o
13.º representante do titulo.

Succedeu-lhe o primogenito, Dom Luiz de Portugal. 6.º conde, que foi
capitão de cavallaria (n’essa qualidade fez a campanha do Alemtejo,
como seu pai), gentilhomem da camara do principe D. Theodosio, poeta, e
helenista apreciavel.

Mas a todas as suas prendas fidalgas sobrelevou a da equitação, que
exerceu a primor.

No famoso «desafio do jogo da péla», em que tomou parte como padrinho
de seu cunhado o conde de S. João, foi assassinado por um parcial do
outro adversario, quando empregava esforços para impedir a pendencia.

Por não deixar successão legitima, passou a representação da casa para
seu irmão Dom Miguel de Portugal, setimo conde, a quem Dom Affonso VI
nomeou mestre de campo general, conselheiro de guerra, e governador das
armas em Evora.

Foi estribeiro-mór da rainha Dona Maria de Saboya e védor da fazenda da
princeza Dona Izabel.

Toda a sua paixão eram cavallos, musica, esgrima e livros.

É curioso observar como as tendencias hereditarias se vão reproduzindo
n’esta família com pequenos intervallos de tempo.

Permittiu el-rei Dom Pedro II que o continuasse no titulo um filho
illegitimo, Dom Francisco de Portugal, que foi o 8.º conde, e casou com
uma filha dos primeiros marquezes de Alegrete.

Houveram um successor que foi Dom Joseph Miguel João de Portugal, 9.º
conde, o qual escreveu, para lição e uso de seu filho, a relação da
vida e feitos de seus ascendentes.

Intitula-se o livro _Instrucçam que o conde de Vimioso Dom Joseph
Miguel Joam de Portugal dá a seu filho D. Francisco Joseph Miguel de
Portugal, fundada nas acçoens moraes, politicas, e militares dos condes
de Vimioso seus ascendentes. Lisboa occidental, 1741._

N’este livro ha uma lacuna importante. O 9.º conde não quiz fallar de
seu pai, como por um sentimento de modestia, receioso de que pudessem
tomar á conta de affecto filial quanto de elogioso houvesse de dizer.

Mas falla por elle o auctor da _Historia Genealogica_, o qual
relata que Dom Francisco de Portugal recebeu o titulo de marquez de
Valença,[62] que fôra de seu quinto avô, o conde de Ourem D. Affonso,
filho do 1.º duque de Bragança.

Nós já tinhamos dito que o 1.º conde de Vimioso era neto do 1.º marquez
de Valença, por onde vinha aos Vimiosos o parentesco com a casa de
Bragança.

D. Francisco de Portugal, que foi provedor da Santa Casa da
Misericordia, distinguiu-se tanto na piedade como nas bellas-lettras.
Foi socio da Academia Real de Historia, em cujas collecções deixou
escriptos seus, no genero das composições eruditas que caracterisam
aquella academia e aquella epoca.

Innocencio, no _Diccionario bibliographico_,[63] traz a resenha de
todas as obras compostas por Dom Francisco de Portugal, entre ellas
uma que possuo, _Instrucçam que o marquez de Valença D. Francisco de
Portugal, do conselho de Sua Magestade, dá a seu filho primogenito D.
Joseph Miguel Joam de Portugal_. Lisboa, 1746.[64]

Esta _Instrucçam_, que é um compendio de conselhos moraes, com
exemplos colhidos na historia universal, foi publicada trez annos antes
do marquez de Valença morrer de apoplexia no paço real, e cinco annos
depois do primogenito ter publicado aquella outra _Instrucçam_, que já
mencionamos.

O 9.º conde de Vimioso e 3.º marquez de Valença, Dom Joseph Miguel,
alem d’esta _Instrucçam_, e outras obras,[65] compoz a _Vida do Infante
D. Luiz_, livro que anda nas mãos de todos os bibliophilos.

Casou com D. Luiza de Lorena, filha de seu primo co-irmão Manuel Telles
da Silva, 3.º marquez de Alegrete.

Succedeu-lhe o 2.º filho varão, Dom Francisco Joseph, porque o
primogenito morreu de pouco tempo.

Não sabemos o motivo por que este 10.º conde de Vimioso não usou o
titulo de marquez de Valença.

O 11.º conde foi D. Affonso Miguel de Portugal e Castro, 4.º marquez de
Valença, que falleceu a 27 de novembro de 1824.

O 12.º conde de Vimioso e 5.º marquez de Valença, D. José Bernardino de
Portugal e Castro, par do reino e conselheiro de estado, casou com Dona
Maria José de Noronha, 2.ª filha dos 1.ᵒˢ condes de Peniche, e morreu a
26 de fevereiro de 1840.

Fallemos agora do seu successor, que mais directamente interessa ao
nosso assumpto.

O 13.ᵒ conde, D. Francisco de Paula Portugal e Castro, senhor da
casa de Valença, com honras de parente, par do reino por direito
hereditario, não foi, como continuador da sua familia, uma figura nulla
e incolor.

A nobreza estava já decadente, em virtude das loucuras ruinosas da
maior parte dos fidalgos, e do golpe politico que lhe vibrára a
democracia constitucional.

Para o marquezado de Valença soara já a ultima hora, mas o condado de
Vimioso, muito prejudicado em seus rendimentos pelo regimen liberal,
que os ferira na origem, havia de sobreviver ainda alguns annos mais,
na pessoa do seu decimo terceiro representante.

D. Francisco de Paula nascera a 28 de julho de 1817.

Aos vinte annos, isto é, em 1 de abril de 1837 casou por amor com
D. Maria Domingas de Castello Branco, filha dos segundos marquezes
de Bellas, e viuva do segundo conde de Belmonte, D. José Maria de
Figueiredo Cabral da Camara, porteiro-mór da casa real, e capitão de
cavallaria.

Esta illustre dama tinha mais 12 annos que D. Francisco de Paula, e
enviuvára em 1834, ao cabo de 14 annos de casamento com o primeiro
marido.

Não era rica, e não se preoccupara, desinteressadamente, com a questão
de dinheiro ao passar a segundas nupcias.

Diz o sr. Queriol:

 «O conde, novo e esbelto, casara por mutua paixão com uma virtuosa
 senhora viuva do conde de Belmonte, que tambem por sua parte pouco lhe
 ficára restando de fortuna propria.

 «Mais velha do que o conde, a santa senhora limitou-se a ser educadora
 de seus filhos, libertando o marido do jugo matrimonial, do que
 elle bem se aproveitou, sendo um dos mais felizes conquistadores em
 assumptos amorosos. Foi talvez esta sociedade que lhe despertou o
 appetite da _pouco duradoura_ aventura amorosa com a Severa.»

D. Francisco de Paula, impellido pela corrente tradicional da fidalguia
portugueza, e desculpado pela bondade tolerante da esposa, entregou-se
bem depressa á vida alegre e estouvada dos rapazes nobres do seu tempo
e da sua idade.

Tornou-se perito exemplar em equitação e tauromachia e, por estes dois
caminhos abertos á sua phantasia juvenil, entrou na bohemia elegante,
a que tomou gosto, chegando a penetrar nas camadas populares onde a
guitarra e o _Fado_, quando bem tangidos, não pediam passaporte, nem
folha corrida a ninguem.

Era feição do tempo, e da nobreza de então.

Foi justamente na ultima classe social que encontrou a Severa, á qual
não exigiu pergaminhos, nem credenciaes. Era uma excellente camarada
para se fazer ouvir dedilhando a guitarra e cantando o _Fado_.

Como tal a acceitou na evidencia em que ella já se tinha collocado
por essas prendas, não obstante ter nascido condemnada á desgraça do
lupanar.

Por sua parte, as classes populares adoravam o conde de Vimioso, que
as tratava sem preoccupações hierarchicas, e que se distinguia pela
exteriorisação de qualidades que muito deslumbram o criterio pouco
intellectual do povo: a valentia, a coragem, o primor da guitarra e do
toureio.

O unico exemplar notavel d’este genero de fidalgos foi, no meu tempo, o
marquez de Castello Melhor.

O sr. Queriol reduziu tambem a lenda do conde de Vimioso aos devidos
termos, mas ainda assim resulta do seu artigo uma figura sympathica,
que foi o conde, distincta por aquellas qualidades, não intellectivas,
que o publico aprecia e que ainda hoje constituem a galhardia do
moderno _sport_.

Desde muito novo que D. Francisco de Paula se notabilisou pelo valor
physico e destemida coragem.

Creança de 16 para 17 annos, serviu o exercito liberal como aspirante
de lanceiros.

Com referencia a essa epoca conta o sr. Queriol:

 «O seu animo corajoso e sua força herculea tornaram-n’o notavel em
 varias proezas, contando-se entre ellas a de ter nas linhas de Lisboa,
 em presença do imperador, mettido hombros e arrombado um forte portão
 de ferro que impedia a passagem de tropas liberaes que tinham de
 occupar uma posição estrategica e só por ali podiam fazer caminho.

 «D’esta sua força muscular foi testemunha (e appello para a memoria
 do então aspirante de artilharia e hoje general Victo Moreira,
 ajudante de campo de el-rei) quando n’uma tarde, sahindo D. Pedro
 de Sousa Coutinho, filho mais novo do conde de Linhares, de casa do
 fallecido conde das Galveias D. Antonio, no seu elegante pháeton
 puxado por dois poneys hanoverianos de forçosa pujança apesar da
 diminuta estampa de seus corpos, o conde de Vimioso, segurando com
 a mão direita o eixo trazeiro do carro e com a esquerda o varão
 do portão do palacio, embora o elegante D. Pedro se esforçasse em
 fustigar a parelha e esta se empenhasse em arrancar o trem do logar em
 que se achava, não puderam os poneys adiantar um passo limitando-se a
 escarvar a calçada, inutilisadas as suas forças pelas que lhes oppunha
 o valente titular.»


Outro exemplo de pujante denodo conta o auctor do artigo.

Foi por occasião da feira do Campo Grande.

Dois valentões da provincia tinham se postado junto ao portão de ferro,
que então limitava o Campo Grande pelo lado do Lumiar, e não deixavam
entrar nem sair ninguem.

A que distancia já ficam hoje estas bravas tunantadas portuguezas, e
que mal se podem comprehender agora!

Raça de Hercules, no acerto ou na loucura, quebramos: agora estamos a
pedir funda.

O povo levantou celeuma contra os dois pimpões, mas não ouzava
affrontal-os, porque algum saloio que investia, recuava ganindo,
deslombado.

Com o conde de Vimioso estavam almoçando n’essa occasião o sr. Miguel
Queriol e João Nunes Vizeu.

Ouviram o borborinho que vinha da alameda, informaram-se da
occorrencia, e não tiveram um momento de hesitação.

Narra o sr. Queriol, sem faltar de si mesmo, mas certamente que não
deixou de molhar a sua sopa, porque era muito desembaraçado:

 «O conde de Vimioso e José Vizeu apenas tiveram tempo de cada um
 se munir de bons cajados de marmaleiro, e fazendo frente aos dois
 varredores de feiras os levaram a tombos até junto da feira, onde os
 soldados municipaes os receberam contusos e confusos da má sorte que
 em Lisboa veio offuscar a sua valentia provinciana.»

Todos estes predicados davam prestigio, faziam lenda ao conde no
conceito popular. Pode imaginar-se a ovação de que elle seria alvo
n’aquella manhã do Campo Grande, quando varreu os dois alcides que
varriam a feira.

Como atirador, D. Francisco de Paula foi prodigioso.

Depõe o sr. Queriol, cujo artigo diz mais e melhor no seu proprio texto
do que o poderiamos fazer em extracto:

 «O conde de Vimioso era um notabilissimo caçador e em occasiões
 de falta de dinheiro, de proventos de sua casa, sahia de Lisboa
 e, provido apenas da sua espingarda, petrechos de caça e dos de
 _toilette_ de que nunca prescindia, o que obtinha de suas excursões
 venatorias enviava como qualquer caçador de contracto á Praça da
 Figueira, para com o producto da venda viver modestamente nos sitios
 affastados da capital, mas sem recorrer a outros meios que sem verdade
 lhe attribuem.

 «Da sua notavel aptidão como atirador ainda invoco o testemunho do
 actual general Victo Moreira (discipulo do conde em equitação, de que
 depois foi laureado cursador nos picadeiros em França); alem do que,
 outras testemunhas podem certificar de que sendo o conde desafiado a
 matar morcegos, ao anoutecer e em pleno Campo Pequeno, abateu todos
 os que esvoaçavam a distancia de tiro de espingarda, não obstante a
 escuridão que em nada lhe prejudicava a certeira pontaria.»

A phrase final do primeiro periodo que deixamos transcripto--_mas sem
recorrer a outros meios que sem verdade lhe attribuem_--contramina
a lenda de que o conde de Vimioso ciganava em cavallos mais que os
proprios ciganos.

A este respeito temos dois testemunhos dignos de toda a fé: o do sr.
Queriol e o de Bulhão Pato.

Refere o sr. Queriol que precisando comprar um cavallo, lhe offereceram
uma égua, mas por tão baixo preço, que o fez desconfiar.

Foi consultar o conde, que lealmente o avisou de que não comprasse
a égua, que era doida; e quanto á respeitabilidade do vendedor
preveniu-o de que «em negocios de cavallos não havia que confiar em
cavalheirismos, por ser essa a norma geral n’estes negocios».

Não contente com isto, o conde indicou ao sr. Queriol outro lavrador,
que effectivamente o serviu bem, porque lhe vendeu a preço razoavel um
cavallo sem resaibo, e muito resistente.

Conclue, com razão o sr. Queriol:

 «Em abono á lealdade com que fui tratado, devo protestar contra a
 lenda que a muitos tenho ouvido de ser o conde de Vimioso o cigano
 mais temivel em negocio de cavallos, quando, como deixo acima dito,
 foi elle proprio a prevenir-me ser norma geral n’estes negocios não se
 confiar senão na propria experiencia.»

Quanto ao testemunho de Bulhão Pato, por igual abonatorio, logo o
traremos a lume.

O artigo do sr. Queriol teve por fim principal refutar o episodio do
drama do sr. Julio Dantas em que o conde (com outro supposto titulo)
puxa de uma navalha.

Sobre esta phantasia o sr. Queriol protesta categoricamente, dizendo:

«O conde de Vimioso do nosso tempo era um excentrico, mas d’ahi a usar
de navalha de ponta e molla e a suciar com bolieiros e fadistas da
Mouraria, vae a distancia de um extravagante que o era de polpa para um
ser inferior que elle nunca foi.

«A navalha era por tal fórma alheia aos habitos sociaes em rapazes
da época do conde de Vimioso, que uma só vez o que escreve estas
recordações a viu brilhar na mão de um pouco conceituado frequentador
do Marrare (cujo nome não cito por consideração a pessoas
respeitabilissimas da sua familia, que ainda existem e não podem ter
responsabilidade em factos degradantes de seus maiores já defuntos)--e
que em questão de jogo de bilhar, offendido por um insulto do Lima da
Cardiga, puxou de uma luzente catalan que Lima da Cardiga, em furia de
leão, lhe arrancou da mão e fez pedaços no sobrado, subjugando sob os
joelhos o aggressor, que os circumstantes salvaram de ser suffocado,
mas não espesinhado pelo athletico Lima, que foi calorosamente
applaudido pelos circumstantes, sendo apupada e envilecida a acção tão
extraordinaria na sociedade d’então.

«Creio que d’esta scena foi testemunha D. João de Menezes, ainda vivo,
mas pelo menos deve d’ella ter tido conhecimento.»

Agora é opportunidade de reproduzirmos o testemunho de Bulhão Pato;
consta de uma carta dirigida ao sr. Queriol, e publicada no _Popular_
de 8 de abril de 1901:

 Monte de Caparica, Torre, março, 11, 1901.

  _Meu..._

 Conheci o conde de Vimioso quando tinha eu 15 annos, por que fui
 da creação do irmão mais novo--D. Pedro de Portugal e Castro. A
 mãe--marqueza de Valença--era muito minha amiga. Vimioso, como sabes,
 na praça dos toiros, no palacio e na feira dos ciganos era sempre um
 fidalgo de raça. Nunca usou faca senão as _facas_ que montava; nunca
 levou aos beiços um quartilho em tabernas. A graça viva saltava-lhe da
 physionomia com os ditos originaes, portuguezes e galantes.

 Fazia os seus alborques de cavallos, não havia cigano que o embaçasse,
 porém, repito, foi sempre um gentil-homem.

 N’uma toirada no Campo Grande, no pateo da casa d’elle--em setembro de
 88!--quando eu ia a metter um par de ferros n’um garraio--disse elle,
 alludindo aos meus primeiros versos--_Se coras não conto_--_Se marras
 não brinco!_ Vivi muito, muito com elle, principalmente em caçadas na
 Torre Bella, nas lezirias, pelo Alemtejo. Que dias!

 Abraço-te, a tua santa mulher e a teus filhos.

                                                              Teu do C.ᵒ

                                                          _Bulhão Pato._

A maior evidencia do conde de Vimioso foi como cavalleiro tauromachico,
prenda que reune duas aptidões distinctas, a da equitação e a do
toureio.

«Montava com rara elegancia e perfeição--escreve Pinheiro
Chagas[66]--e póde dizer-se que foi o Marialva do nosso seculo XIX.
Tambem esse grupo de rapazes que se denominam _marialvas_, se não
quizessem ir buscar tão longe o seu cognome, podiam denominar-se
_vimiosos_ com muita razão, porque assim consubstanciavam n’um nome
aristocratico as suas qualidades e os seus defeitos.»

Por sua parte diz o sr. Queriol:

 «Notabilissimo na arte de montar--de uma figura elegante e
 sympathica--com o seu titulo de nobreza de sangue, o conde foi o
 escolhido pelos amadores da arte tauromachica, que ia decahindo em
 abatimento, para rehabilitar a memoria dos antigos lidadores em
 combate com o feroz animal, sendo unanimemente acclamado o cavalleiro
 que devia reivindicar a fama do seu antepassado marquez de Marialva.
 Desempenhou-se o conde do seu encargo com enthusiastico applauso
 de milhares de espectadores, nas primeiras touradas chamadas de
 _Fidalgos_ que tiveram logar na praça do Campo de Sant’Anna sob a
 direcção de João Pereira da Silva da Fonseca «o morgado d’Alcobaça» e
 em que fizeram de netos D. José, da casa Loulé, e Roberto Camello, um
 elegante do seu tempo e muito estimado na sociedade lisbonense».

Os primeiros ensaios tauromachicos do conde realizou-os elle no pateo
do seu palacio, ao Campo Grande. Depois appareceu nas corridas de
amadores na praça do Campo de Sant’Anna, ao lado de D. José Maria de
Mendóça (Loulé), tambem official de cavallaria, e a opinião publica não
duvidou acclamal-o como o primeiro «cavalleiro» do seu tempo.

A D. José Mendóça se referia um dos _Fados_ tauromachicos cantados pela
Severa, quando dizia:

    Eu vi em uma tourada
    Um valente cavalleiro:
    Era o Dom José Lanceiro,
    Pae da rapaziada.

O conde de Vimioso não se limitou apenas a executar as melhores sortes
de toureio estabelecidas pela tradição: inventou uma, a que deu o nome
de _cara a cara_.

É o que hoje chamamos _á estribeira_.

O cavalleiro dirige-se para o touro ladeando o cavallo sobre a direita,
e na altura da rez arrancar, passa o cavallo de mão: o touro deve
receber o castigo quando mette a cabeça junto ao estribo do cavalleiro.

Esta sorte é brilhante e arriscada, requer uma grande certeza. O conde
de Vimioso, seu inventor, nem sempre pôde leval-a a effeito, mas
enthusiasmava delirantemente o publico quando a realizava.

D. Francisco de Paula, como cavalleiro, adoptou um principio, que
impunha a si proprio, e recommendava a todos os outros _aficionados_:
«O trabalho do toureio a cavallo consiste essencialmente em que o
cavalleiro, pela sua destreza e arte, zomba do poder do animal, sem
que elle ou o seu cavallo recebam o mais ligeiro contacto, o que
constitue sempre desaire».

Uma ou outra vez lhe falhou na pratica este preceito, mas o conde
desaffrontava-se logo com grande galhardia e brio.

Aconteceu isso em Evora, n’uma corrida a que assistiram muitos
portuguezes e hespanhoes.

O touro saiu com tal rapidez, que nenhum recurso pôde ser efficaz ao
cavalleiro.

Vimioso foi colhido e derrubado conjuntamente com o cavallo, que ficou
muito contuso.

Mas, habilmente, o conde tirou-se da sella, montou outro cavallo em
sellim razo, e castigou o touro, que o havia desfeiteado, com oito
ferros, que levantaram a praça n’uma ovação colossal.

Comprehende-se que n’esta e outras occasiões, em que o conde de Vimioso
enflorava o seu brazão com tantas provas de coragem, denodo e mestria,
visse acenarem-lhe na praça muitos lenços brancos, agitados por mãos
femininas, umas em que a brancura patricia era _soignée_ com primor,
outras morenas e menos cuidadas, como as da Severa, que, subjugada
pela fascinação do cavalleiro prodigioso, o applaudia n’um frémito de
enthusiasmo estonteante.

«O conde de Vimioso, diz o sr. Queriol, foi sempre o alvo dos mais
calorosos applausos e o idolo das mais formosas damas, que lhe
disputavam a preferencia em amores».

Como era de prevêr, a vida do conde gastou-se rapidamente. O seu
organismo ardia em frequentes incendios, que lhe apressaram a morte aos
47 annos de idade.

Coincidencia notavel: falleceu no palacio do largo do Metello no mesmo
mez em que tinha nascido.

A _Revolução de Setembro_ do dia 10 de julho de 1864 noticiava que o
conde de Vimioso havia expirado na noite antecedente, depois de um
prolongado padecimento, ao qual succedeu um typho.

N’esse mesmo dia 10, um domingo, se realizou o funeral.

E, coincidencia não menos notavel! á hora em que o funebre cortejo
saía do largo do Metello, ali perto, na praça do Campo de Sant’Anna,
effectuava o cavalleiro Diogo Henriques Bettencourt o seu beneficio com
um curro de 13 toiros fornecido pelo lavrador do Ribatejo Francisco da
Silva Falcão.

O cortejo funerario d’esse que fôra o primeiro cavalleiro portuguez do
seu tempo, e que tantas e tão ruidosas ovações conquistára na arena,
contrastava singularmente com o cortejo tauromachico que á mesma hora
entrava na praça ao som do hymno real para dar começo á lide.

As palmas e os bravos, com que o publico saudava os lidadores,
contrapunham-se ás palavras doloridas com que os velhos _aficionados_
lastimavam, caminho do cemiterio, a morte do conde de Vimioso.

E quando o ultimo raio de sol poente, n’essa calmosa tarde de julho,
se apagava sobre o tumulo que recebera o cadaver do conde, o publico,
na praça do Campo de Sant’Anna, levantava-se em massa, fremente de
enthusiasmo, a applaudir o grande Sancho, que acabava de _marear_ o
ultimo touro da corrida com uma brilhante _navarra_.

[Illustração: FADO DO CONDE DE VIMIOSO]

O _Fado do Vimioso_ foi publicado no fasciculo 61 do _Cancioneiro de
musicas populares portuguezas_.

Acompanham-n’o algumas quadras, de origem manifestamente popular,
porque são incorrectas e banaes.

O conde é ahi tratado pelo anagramma de Moisivo.

A lettra é muito posterior á morte de D. Francisco de Paula, como se vê
da seguinte quadra, penultima do _Fado_:

    Aqui ponho agora ponto,
    Na lenda que finda está:
    _Foram casos d’outra era_,
    São voltas que o mundo dá.

O auctor da lettra explora a _lenda_ (elle mesmo emprega esta palavra)
da «paixão» do conde pela Severa, cujos encantos avulta com poetica
phantasia:

    Quem lhe vê a face morena,
    Quem vê seus olhos tyrannos,
    Nada vê que mais captive
    Inda que viva mil annos.
    ............................
    Quem uma vez lhe ouviu
    Sua voz enternecida,
    Ainda depois da morte
    Aos seus ais recobra a vida.

    Quem a vê dançar o fado
    Com rigor desconhecido,
    Ao vel-a batendo forte
    Fica um doido perdido.

E, continuando a lenda, falla do conde como de um cego amante que
tivesse morrido de amor:

    Assim Moisivo carpia
    No auge da desventura.
    E ao outro dia, já cadaver,
    Foi levado á sepultura.

    Chorae, fadistas, chorae,
    Ah! chorai a mais não ser,
    Que d’outro tão fino amante
    Não torna o fado a dizer.

O que é certo é que a lenda da Severa e do conde de Vimioso, tal como
a musa popular a foi cantando ao sabor das multidões, estimulou a
corrente que vulgarisou o _Fado_, especialmente no sul do paiz, e que
lhe reforçou um caracter de vaga saudade, de tristeza plangente, em que
parece pairar a longinqua memoria de uma supposta allucinação amorosa
que um fidalgo bohemio experimentou por uma pobre moça fadista, de
chinella de polimento ponteada a retroz vermelho.

Todas as mulheres dos bairros infamados, todas as criadas de servir,
todas as camareras de botequim cantam de preferencia o _Fado da Severa_
e o _Fado do conde de Vimioso_, dando-lhe uma intenção de aristocracia
rehabilitadora pela esperança de que um novo conde, seguindo o exemplo
de D. Francisco de Paula, venha enamorado, dedilhar a banza, em honra
de uma segunda Severa plebea.

«Ainda hoje, diz Pinheiro Chagas,[67] se ouve cantar a deshoras, com
acompanhamento de guitarras, por vozes nem sempre da primeira frescura,
uma melodia melancolica e plangente, que se denomina o _fado do conde
de Vimioso_.»


NOTAS DE RODAPÉ:

[51] Em os numeros de 7 e 8 de abril de 1901.

[52] Estas iniciaes são as do nome de Diogo Henriques Bettencourt.

[53] _Os ciganos de Portugal_, pag. 221.

[54] _Os excentricos do meu tempo_, pag. 289.

[55] Amores de Vieira Lusitano, pag. 129.

[56] Pag. 237.

[57] Photographias de Lisboa, pag. 64.

[58] Vol. 13.ᵒ, vocabulo _Vimioso_.

[59] Estes factos foram por mim recolhidos da tradição oral e contados
n’um folhetim do _Diario de Noticias_, de 12 de junho de 1893,

[60] C. Castello Branco, _Sentimentalismo e historia_, pag. 70.

[61] _Hist. Gen._ tomo X, pag. 756-757.

[62] Por carta regia de 10 de março de 1716. _Hist. Gen._, tom. X, liv.
X, cap. XI.

[63] Tom. III, pag. 27.

[64] Francisco José Freire escreveu o elogio do 2.º marquez de Valença.
Foi publicado em 1749.

[65] _Dic. Bibl._ tom. V, pag. 74. Entre as outras obras merece
especial menção a _Instrucçam que dá a seu filho segundo D. Manuel
José de Portugal, fundado nas acções christãs, moraes e politicas dos
ecclesiasticos que teve a sua familia_. Lisboa, 1744.

[66] _Dicc. Pop._, vocab. _Vimioso_.

[67] _Dicc. Pop._, vocab. _Vimioso_.



                                   V

               Fados de nomenclatura--Fados litterarios


Sobre esse fundo de singeleza e espontaneidade, que tanto caracterisa
a lettra e a musica da maior parte dos nossos _Fados_, lembraram-se
alguns trovistas de bordar complicados floreios de palavras, procuradas
com esforço e artificio, laboriosamente.

Assim como o rythmo musical foi asiaticamente ornado com variações
pretenciosas, que rendilharam de laçarias difficeis a ingenuidade
inicial do _Fado_, tambem a lettra, a glosa, se enredou em
extravagancias e boleios exoticos de linguagem, parallelamente.

O espirito humano parece enfadar-se da simplicidade, que se lhe torna
um ramerrão fastidioso, e d’ahi provéem os excessos e requintes com que
arrebica as modas e exaggera os figurinos, tanto para vestir o corpo
como o pensamento.

Os amphiguris, que ainda estavam em voga quando o _Fado_, singelo
e corrido, os rechaçou como velharias[68], vieram mais tarde a
reproduzir-se, em differente métrica, mas com o mesmo intuito de jogos
malabares de phrase, nos _Fados_ exdruxulos, nos _Fados_ enygmaticos,
nos _Fados_ de trocadilho e nos _Fados_ tautophonicos (repetição).

É claro que toda a naturalidade da poesia popular foi estrangulada
n’estas tentativas de habilidosa gymnastica, algumas mais felizes do
que outras; mas a alma de um povo não se torce facilmente, como vara
tenra, nas manifestações da sua sentimentalidade espontanea e nativa.

Essas tentativas passam, e a indole fundamental do _Fado_ permanece a
mesma.

Os _Fados_ exdruxulos, bem como todos os outros em que o artificio
predomina, podem ser admirados quando o mereçam, como esforço de
paciencia; mas só isso, porque não encontram ecco dentro do nosso
coração, nem affectuosa adhesão no nosso espirito e memoria.

Pode achar-se-lhes mais ou menos graça, mas não se lhes encontra
sentimento, e a poesia do povo só vive á custa das suas proprias
emoções.

Exemplo de _Fado_ exdruxulo:

      _Eu zombo d’homens teutonicos,
      Eu zombo dos argentarios,
      Eu zombo dos pythagoricos,
      Eu zombo dos uzurarios._

    Eu zombo dos dialeticos,
    Eu zombo até dos sophisticos,
    Eu zombo dos casuisticos,
    Eu zombo já dos magneticos;
    Eu zombo dos cynegeticos,
    Eu zombo dos bons euphonicos;
    Eu zombo dos sons harmonicos,
    Eu zombo dos bons topasios,
    Eu zombo dos taes pascasios,
    _Eu zombo d’homens teutonicos_.

    Eu zombo já dos grammaticos,
    Eu zombo dos elegiacos;
    Eu zombo d’esses syriacos,
    Eu zombo dos esquipaticos;
    Eu zombo até dos didacticos,
    Eu zombo dos santanarios;
    Eu zombo dos proletarios,
    Eu zombo dos economicos;
    Eu zombo dos pobres comicos,
    _Eu zombo dos argentarios_.

    Eu zombo dos privilegios,
    Eu zombo dos sacrificios;
    Eu zombo dos artificios,
    Eu zombo dos sortilegios;
    Eu zombo dos sacrilegios,
    Eu zombo dos taes historicos;
    Eu zombo dos allegoricos;
    EU zombo até já dos clinicos;
    Eu zombo dos proprios cynicos,
    _Eu zombo dos pythagoricos_.

    Eu zombo dos pathologicos,
    Eu zombo dos fidelissimos;
    Eu zombo dos modestissimos,
    Eu zombo dos mythologicos;
    Eu zombo dos pedagogicos,
    Eu zombo dos breviarios;
    Eu zombo dos perdularios,
    Eu zombo dos cabalisticos;
    Eu zombo dos humoristicos,
    _Eu zombo dos uzurarios_.

Exemplo de _Fado_ enygmatico, em que é preciso interpretar o sentido
das cacophonias:

      _Minha T-O-L-A.
      Só tu és minha nini!
      Manda carta p’lo correio
      P’ra o teu querido K-H-I._

    Dois é bis, potes bem juntos;
    Não faças como o judeu...
    Que por-K, gallos me deu,
    Em lugar dos taes presuntos.
    Despresa, pois, os assumptos
    Da do-O, mais do-H;
    Bem vês que, muito não ha,
    Por te ver dias seguidos
    Me constipei dos ouvidos,
    _Minha T-O-L-A_.

    Bem deves conjecturar,
    Não sou nenhum-O-I-S,
    Que eu te fiz d’amor a prece,
    A ti só quero adorar.
    Não te deixes ingrolar
    P’lo _francez_ do G-U I;
    Meu amor é só p’ra ti.
    Manda á fava o-R-I-R;
    Muito embora o-M berre,
    _Só tu és minha nini_.

    Peço-te que a mal não leves
    Se te escrevo p’la-B-U;
    V-A-L conheces tu...
    Bastantes penas lhe deves.
    Entre questão d’almocreves,
    Do teu porte não descreio;
    Se o-K-I te dá receio,
    Toma conta no-Q-V;
    Não o dés ao-D-K-D,
    _Manda carta p’lo correio_.

    Põe p’ra amor sómente um-A,
    P’ra conselhos um-C só,
    P’ra doçuras põe um-Dó,
    P’ra lamentos põe um-Lá,
    P’ra familia põe um-Fá,
    P’ra o que te respeita-Mi,
    P’ra situação põe um-Si,
    P’ra que não te façam-Ré,
    Põe-n’a com Sol-de-Loulé,
    _P’ra o teu qu’rido-K-H-I_.

Exemplo de _Fado_ em trocadilho de homonymos:

    _P’ra que sinta bem a cinta
    Não só no acto em que a ato,
    No fio d’ella me fio...
    Pois sou mui fatuo no fato._

    Quem aos _sessenta se senta_
    (Como a _ama_ que não _ama_)
    A _chamma_ d’amor não _chama_,
    Quando aos _setenta se tenta_;
    Se _venta_, funga-lhe a _venta_
    Quando _pinta_ qualquer _pinta_:
    Se eu fôr, na _quinta_, p’r’a _quinta_
    Verei se a _serra_ se _cerra_
    _P’ra que sinta bem a cinta_.

    A _vella_ fez-se p’ra _vella_;
    De _massa_ se fez a _maça_;
    Cobre-se a _caça_ com _cassa_,
    Na propria _cella_ se _sella_:
    Alguem p’la _péla_ se _pélla_;
    Eu _cato_ os picos do _catto_.
    Se _mato_ as lebres no _matto_.
    Sem _anda_ tambem se _anda_;
    Pois trago a _banda_ p’r’a _banda_,
    _Não só no acto em que a ato_.

    Dou-lhe um _laço_ muito _lasso_,
    Da _cota_ bem pago a _quota_:
    E a _bota_ que peso _bota_?
    _Asso_ o peito em peito d’_aço_;
    A _passo_ vou par’o _Paço_
    Muito _pio_, sem dar _pio_;
    _Rio_ até do proprio _rio_;
    Sou como o _cura_ sem _cura_.
    Se a _dura_ espada me _dura_,
    _No fio d’ella me fio_.

    Carece o _lente_ da _lente_,
    Quando _fita_ qualquer _fita_,
    Se teve a _dita_ da _dita_
    _Patente_, que traz _patente_;
    Se minha _mente_ não _mente_,
    O _Tatto_ tem muito _tacto_;
    _Retrato-o_, e não me _retracto_,
    Pois _papa_ as honras do _Papa_
    Quem me _capa_ mais a _capa_,
    _Pois sou muito fatuo no fato_!

Exemplo de _Fado_ tautophonico sem que a rima seja obrigada a
exdruxulos:

    _Respeito o poder do gallo,
    Respeito a voz do leão,
    Respeito as têtas da vacca,
    Respeito a pelle do cação._

    Respeito o ferrão d’abelha,
    Respeito as pennas do pato,
    Respeito as unhas do gato,
    Respeito as cans d’uma velha;
    Respeito o vello da ovelha,
    Respeito o nobre cavallo,
    Respeito o rim-rim do rallo,
    Respeito o fim da baleia,
    Respeito a voz da sereia,
    _Respeito o poder do gallo_.

    Respeito o mau papagaio,
    Respeito o bom pintarroxo,
    Respeito a fórma do mocho,
    Respeito o verde do gaio,
    Respeito o fino garraio,
    Respeito as pernas do anão,
    Respeito os pés do pavão,
    Respeito a velha serpente,
    Respeito a lingua da gente,
    _Respeito a voz do leão_.

    Respeito a côr da rolinha,
    Respeito o zum do bezoiro,
    Respeito as armas do toiro,
    Respeito o fel da pombinha,
    Respeito o pôr da gallinha,
    Respeito o mal da macaca,
    Respeito o pello da alpaca,
    Respeito a tal cegarrega,
    Respeito o bico da pega,
    _Respeito as têtas da vacca_.

    Respeito as azas do grillo,
    Respeito a feia minhoca,
    Respeito o berro da phoca,
    Respeito o vil crocodilo,
    Respeito o curso do esquillo,
    Respeito o ser tubarão,
    Respeito os dentes do cão,
    Respeito os coices da mula,
    Respeito o gosto da lula,
    _Respeito a pelle do cação_.

Entre os _Fados_ de repetição merece menção especial o seguinte, que é,
no genero, dos melhores e por ventura o mais litterario que conhecemos:

    _Alecrim é rei das hervas,
    O ouro, rei dos metaes;
    Rosa, rainha das flores;
    Leão, rei dos animaes._

    Deus é rei universal;
    Homem, rei da creação;
    Rei dos sabios, Salomão;
    Rei dos sabores o sal;
    Rei das mattas o pinhal;
    Capitão, rei das catervas;
    Virgem, rainha das servas;
    Romã, rainha dos fructos;
    O trigo é rei dos productos;
    _Alecrim é rei das hervas_.

    É o mar o rei das fontes;
    Cruz, das armas é rainha;
    Baccho é rei de toda a vinha;
    O Sinai é rei dos montes;
    O navio é rei das pontes;
    Foi Adão o rei dos paes;
    Coral rei dos mineraes;
    Rei de amarguras o fel;
    Rei dos doces é o mel;
    _O ouro, rei dos metaes_.

    Rei da riqueza o trabalho;
    Aguia, rainha das aves;
    Dó é rei dos sons suaves;
    Rei dos martellos o malho;
    Rei dos dentes é o alho;
    O vinho, rei dos licores;
    Cupido, rei dos amores;
    Rei dos poetas foi Dante;
    Rei das pedras o brilhante;
    _Rosa, rainha das flores_.

    Rei dos ventos é o norte;
    É o sol o rei dos astros;
    O traquete é rei dos mastros;
    Rainha do pranto, a morte;
    Rei dos dons é o bom porte;
    Pena, rainha dos ais;
    O ponto, rei dos signaes;
    Rei das cannas o alcaçuz;
    Rainha das cores, a luz;
    _Leão, rei dos animaes_.

Lembrou, naturalmente, aos que procuravam esta estrondosa orchestra de
palavras, que os glossarios ou nomenclaturas lhes podiam fornecer uma
abundante mina, e trataram de exploral-a com os minguados recursos
technologicos de que dispunham.

Exemplo de _Fado_ mythologico:

    _Apollo o jogo talhava
    N’uma casa de batota;
    Cupido alugou um trem,
    E bateu p’ra a Porcalhota._

    Baccho estava sem dinheiro,
    E combinou com _Silvano_
    Para irem com _Vulcano_
    Visitar qualquer banqueiro;
    Foi o rancho galhofeiro,
    Ao que mais perto ficava,
    E quando na sala entrava
    O ranchinho reinador,
    Estendia-se o alvor,
    _Apollo o jogo talhava_.

    _Minerva_ um cêrco fazia
    Sobre um valete d’espadas,
    _Venus_ dobrava as paradas,
    _Sileno_ só recebia;
    _Neptuno_ sempre perdia,
    _Fauno_ fazia risota,
    _Marte_ saltou n’uma sôta,
    _Phebo_ jogava ao acaso.
    Estava emfim todo o _Parnaso_
    _N’uma casa de batota_.

    _Titão_ joga n’um valete,
    _Mercurio_ joga no az,
    _Cliópe_ só cêrcos faz,
    _Euterpe_ joga n’um sete.
    _Jove_ uma parada mette,
    _Plutão_ arrisca um vintem,
    _Esculapio_ já ganho tem,
    E abandona a banca logo.
    E co’o dinheiro do jogo,
    _Cupido alugou um trem_.

    _Saturno_ vendo uma quina,
    Saltou-lhe logo nos pés,
    E fez cêrco sobre um trez,
    Que lhe saiu papafina;
    A _Juno_ como é ladina
    Não gostava da batota;
    Deus _Baccho_, todo janota,
    Contratou uma tipoia,
    Deu o braço á lambisgoia,
    _E bateu p’ra a Porcalhota_.

Exemplo de _Fado_ botanico:

    _Nos espinhos d’uma rosa
    Se feriu meu coração;
    Não soltei nem uma queixa!
    Muito póde uma paixão!_

    Eu sou bom floricultor,
    Sou o rei dos jardineiros,
    Tenho lá, nos meus canteiros,
    Toda a casta, pois, de flôr.
    Co’o meu grande regador
    Lhes dou rega cuidadosa,
    Quando a noite está calmosa,
    Sem nenhuma m’escapar,
    Mas senti-me espicaçar,
    _Nos espinhos d’uma rosa_.

    Caso novo foi p’ra mim,
    Tal descuido desgraçado!
    Tanta flôr tenho regado,
    Sem jámais vêr coisa assim!
    Com meu sangue, do jardim
    Fui pingando todo o chão;
    E, com folhas d’ensaião,
    Estancava a hemorrhagia,
    Pois, quem visse, julgaria
    _Se feriu meu coração_!

    Madre-silvas se sorriam,
    De me vêr em tantas maguas;
    E as devassas das anáguas
    Grande troça me faziam!
    Os chorões, esses carpiam,
    Murmurando a sua endeixa,
    Os geranios buscam reixa
    Com seu riso impertinente;
    Porém eu, por mais prudente,
    _Não soltei nem uma queixa_!

    Os martyrios suspiravam,
    Tristes sempre, contrafeitos;
    E os gentis amor’s-perfeitos,
    Sempre bons, me lamentavam.
    Por vingança já esp’ravam
    Que eu, pegando no alvião,
    Sem mais dó, nem compaixão,
    Arrazasse todo o herbario,
    Porém eu,--bem p’lo contrario!
    _Muito póde uma paixão._

Exemplo de _Fado_ zoologico:

    _Faz o pombo--rú, tu, tú!--
    Na certã enfarruscada.
    É preciso ser bem má,
    Nem me dás uma trombada!_

    Todo o gato faz--_miau!_--
    Quando chama p’la gatinha,
    E, p’la fresta da cosinha,
    Responde ella-- _renhaunhau!_--
    Faz na rua o cão--bau, bau!--
    O perú faz--gl_ú_, gl_ú_, gl_ú_!--
    Só p’ra mim não fazes tu,
    Por meu fado, e por meu mal,
    O que á pomba, no pombal,
    _Faz o pombo--rú, tu, tú!--_

    Se a gallinha faz--cró, cró--
    Logo o gallo arrasta-lh’ a aza,
    E co’a crista toda em braza
    Canta após--kó, kó, ró, kó!--
    Dando ao rabo anda o tótó,
    Atraz da cadella amada,
    Só a mim não fazes nada,
    Nem sequer uma omelêta
    --Por que eu dou a pecholêta--
    _Na certã enfarruscada_.

    Vê tu bem como no estio,
    Quando chega a noite escura,
    ’Té no meio da espessura,
    Faz o triste môcho--pio!--
    Espanando-se no rio
    Faz o pato--quá, quá, quá!--
    A perdiz faz--cá, cá, rá!--
    Todos cantam seus amores,
    Tu p’ra mim só tens rigores,
    _É preciso ser bem má_!

    Até mesmo o villão burro,
    Nas manhãs de muita calma,
    Á jumenta da su’alma,
    Diz amor co’o triste zurro!
    O javardo mais casmurro,
    Chafurdando na enxurrada,
    Faz--rom, rom!--e a porca amada
    Animando vae co’a tromba!
    Só teu peito de mim zomba,
    _Nem me dás uma trombada_!

Esta especie de _Fados_ valorisou-se pela intervenção de um estudante
bohemio que, dispondo dos conhecimentos scientificos que ia adquirindo
nas aulas, de veia poetica e de graça espontanea, lhes deu um caracter
de rigorosa technologia ao mesmo tempo que um sainete espirituoso,
alteando-se sobre as composições corriqueiras com que o povo pretendia
invadir os dominios da sciencia.

Chamava-se Luiz Filippe Ferreira d’Almeida Mello e Castro, e era filho
de Bernardino Antonio Ferreira e de D. Maria José d’Almeida Mello e
Castro.

Nasceu em Lisboa a 21 de abril de 1844.

Um seu contemporaneo e amigo, Urbano de Castro,[69] traçou-lhe á penna
o seguinte retrato, a meu pedido:

«Luiz d’Almeida era de estatura acima do regular; a não ser nos dias
de desalento, que não eram muitos para o seu espirito naturalmente
despreoccupado e alegre, desempenava a figura, e attraia a attenção das
mulheres pelo seu porte garboso.

«Os olhos pardos tinham scintillações tão vivas, que muitos olhos
negros os invejariam. Graciosissimo o sorriso, onde brincava a ironia.
Raras vezes recorria ao sarcasmo. O seu coração era bom de lei.

«O bigode, castanho, não era propriamente o que se chama uma bigodeira,
mas tinha alguma coisa de petulante, com as suas guias retorcidas,
agudas, como pontas de lanças.

«A gesticulação era viva como a de um puro meridional.

«A voz agradavel, e punha-lhe um _tic_ especial de graça o carregado do
_r_.

«Quando lhe dava para janota, nenhum official o excedia no brilho do
uniforme, na elegancia do porte, etc.»

Luiz d’Almeida matriculou-se na Escola Polytechnica em 15 de outubro de
1859.

Estouvado e folgasão, deu pouca attenção ao estudo das disciplinas que
ali ia buscar para seguir o curso militar na Escola do Exercito.

Assim foi que ficou reprovado na 1.ª cadeira (mathematica) e que não
fez exame da 5.ª cadeira (physica) nem do 1.º anno de desenho.

Sem embargo, tanto os seus professores como os seus condiscipulos
reconheceram-lhe desde logo uma intelligencia penetrante e, tambem,
um fina graça natural, que o tornava querido e procurado dos outros
estudantes, os quaes o acclamaram chefe da bohemia academica.

Em 1860 repetiu o anno na Polytechnica, tendo obtido 12 valores em
mathematica e 10 em desenho. De physica não fez exame.

Em outubro de 1862 matriculou-se na Escola do Exercito, como ordinario,
com destino ao curso de infantaria.

Em 1863 fez exame da 1.ª cadeira a 22 de junho, e foi approvado com a
classificação de sufficiente; exame de topographia, em 11 de julho, com
igual classificação; e de sabre em 30 de julho, sendo approvado pela
maior parte.

Matriculou-se pela segunda vez na Escola do Exercito em 14 de outubro
de 1863, na mesma classe de ordinario, e fez exame do 1.º anno de
desenho, obtendo a classificação de sufficiente.

Em 1865 voltou á Escola Polytechnica, onde se matriculou nas aulas de
calculo, chimica mineral e economia politica.

O gosto pela bohemia havia-o empolgado completamente. Era o mais
endiabrado dos estudantes nas folias do carnaval. E como guitarrista,
nas serenatas ao luar, não havia quem o excedesse a cantar _Fados_ de
sua mesma composição, _Fados_ scientificos, feitos com a nomenclatura
das disciplinas em que se tinha matriculado, e de que elle apenas
parecia disposto a colhêr a flor da graça.

Perdeu na Polytechnica, successivamente, trez annos lectivos, de 1865 a
1868.

Em 1869 pôde finalmente vêr-se livre do calculo, da chimica mineral
e da economia politica, ficando approvado com 10 valores em cada uma
d’estas cadeiras.

Mas não conseguira ainda desembaraçar-se do 2.º anno de desenho, em que
ficou reprovado.

Relativamente ao anno de 1869, diz a nota que solicitei da Escola
Polytechnica:

Matricula em 14 de outubro:

3.ª cadeira (mechanica) exame em 6 de julho de 1870: reprovado.

5.ª cadeira (physica) exame em 26 de julho: approvado com 10 valores.

Geometria descriptiva (1.ª parte) não fez exame.

Analyse e chimica organica, exame em 6 de maio: approvado com 10
valores.

Desenho (2.º anno) exame em 30 de julho: approvado com 10 valores.

Em outubro de 1871 voltou a frequentar a cadeira da mechanica, ficando
approvado com 10 valores.

Tambem fez exame da 1.ª parte de geometria descriptiva, sendo
classificado com 11 valores.

Intencionalmente publicamos estas indicações escolares, porque ellas
mostram eloquentemente a feição bohemia de Luiz de Almeida.

Quando se propunha dar alguma attenção aos compendios, ainda que pouca,
logo conseguia aproveitar o anno lectivo, sem cuidar de que outros
menos intelligentes lhe passasem adeante com melhores classificações.

Mas, adeus livros, adeus aulas, quando a vida alegre e irrequieta o
tentava, e os condiscipulos lhe punham entre as mãos a guitarra para
que cantasse os seus _Fados_, que adquiriram grande voga entre todos os
estudantes de Lisboa.

D’esses _Fados_, que merecem ficar archivados n’este livro, vamos dar
trez _specimens_, em que esfusia a graça brilhante de Luiz de Almeida,
e que representam a alliança da poesia popular com o vocabulario da
sciencia n’uma expressão rigorosamente technica.


Fado mechanico

    A gentil _velocidade_
    Pôz-me o peito em _movimento_,
    Ficando sempre _constante_
    N’este _intervallo de tempo_.

    Andava um _ponto no espaço_,
    Pela calçada da Gloria,
    Sem saber da _trajectoria_,
    Com um V 0[70] pelo braço.
    Vão ao Terreiro do Paço,
    Affectando _gravidade_;
    E encontram, ó f’licidade!
    No caminho escuro e só,
    A mulher do v² ρ[71],
    A gentil _velocidade_.

    Eis o _plano projectado_!
    «Se não vem o F¹,[72]
    N’um dôce impulso lhe imprimo
    O meu amor _retardado_.
    Vê lá tu, que _espaço andado_
    Ella tem, n’este _momento_!
    Lá vae... no _prolongamento_
    D’aquella _diagonal_!
    «Que pureza inicial!
    Poz-me o peito em movimento!

    «Pára, agora, em _m_...[73]
    Ah! meu Deus, se ella me vê!
    Ó cousa! espera um _dt_,[74]
    Não te affastes d’esta _linha_.
    «--Senhora, deusa, rainha,
    D’este amôr, só, _resultante_,
    Dê-me attenção n’este _instante_!...
    --Então, senhor! o meu esposo!...
    Deixe-me estar em _repouso_,
    Ficando sempre _constante_.

    «--Ai! meu Deus! que _resistencia_,
    Que _attracção_, que _força viva_!
    Gosto de a vêr pensativa...
    Dá-me um beijo, v. ex.ᵃ?
    --Senhor _ponto_, que insolencia!
    De onde parte o seu intento?»
    «--Senhora, o meu _elemento_
    Nunca _mudou de sentido_!»
    Eis que apparece o marido
    N’este _intervallo de tempo_!


Fado chimico

    O _H nascente_[75]
    Decompoz a H²O[76] mãe.
    Vejam que typo esquisito
    N’uma familia de bem!

    Sentiu-se a Ag[77] pejada,
    E um _sal precipitado_
    Quiz matar o namorado
    Com quem estava combinada;
    A _K²O_[78] _electrisada_
    Diz que o corpo é innocente,
    O CL,[79] já meio quente
    Em presença d’uma _hulha_,
    Faz sair com grande bulha
    O H[80] nascente.

    Assim que o gaz maganão
    Se encontrou livre no ar,
    Tratou logo de chamar
    Perna torta a um _syphão_.
    Houve grande _reacção_
    Nos _metaes_, gente de bem!
    Indo a cousa por além,
    O que fez o tal demonio?
    Foi buscar o _Sb_,[81]
    Decompoz a _H²O_[82] _mãe_.

    Não parou n’isto o tratante:
    Com provas de malvadez,
    N’uma _retorta de grés_
    Prende o _gaz oleificante_;
    Toma o _poder descórante_,
    Ataca um _hyposulphito_,
    De um _tubo_ faz, logo, apito,
    D’uma caldeira faz bumbo,
    Dissolve as _cam’ras de Pb_[83]...
    Vejam que _typo_ esquisito!

    Perguntava o _sal marinho_
    «--Quem é este rapazote?»
    «--É filho do pae _Az_,[84]
    E tem o rabo em _cadinho_.»
    «--Não ves n’aquelle focinho
    A cara do pae, tambem?»
    «--Mal sabe a prenda que tem,
    Tendo um filho _comburente_,
    Que serve de _reagente_
    N’uma familia de bem!»


Fado mathematico

        Um polynomio estranho
        Foi o melhor da _soirée_,
        No dia do baptisado
        Da _raiz do P. A. B._

        Na funcção ás 10^{¹⁄₂}
        Apparecia o _infinito_
        Vestido como um palmito
        --Casaca, sapato e meia.
        Uma _curva_ muito feia
        Pedia ao _numero inteiro_
        Para servir de parceiro
        Na partida ao voltarete
        Á mulher do 3 × 7,
        _Polynomio extrangeiro_.

        O festim era imponente:
        Tocava um _factor commum_
        _1_, _2_, _3_, n + 1
        _Na corda d’arco tangente_.
        Valsava toda contente
        A mulher do D. V. D.
        Por signal passa-lhe o pé,
        Escorrega e cai no chão.
        Diz uma nimia _fracção_:
        --Foi o melhor da _soirée_!

        --Minha _constante arbitraria_,
        Diz o _termo_ tão ratão
        Á gentil dona _Equação_
        D’uma _formula imaginaria_:
        «Que faz aqui solitaria
        Com esse rosto córado?
        Eu por si fico _elevado_
        Ao _5.º grau de potencia_.
        Que valor tem Vossa Excellencia
        No dia do baptisado!»

        Uma _differença finita_
        Polkava com todo o esmero;
        Fazia _tender p’ra zero_
        Um _delta_ todo catita.
        Uma _esphera_ mui bonita
        Mostrava a perna e o pé,
        Emquanto o _T e o Z_,
        Recostados n’um sophá,
        Conversavam co’ o papá
        Da _raiz do P. A. B._

Este _Fado_ appareceu no _Almanach de Lembranças_ para 1890, pag. 472,
assignado por José Carlos Lagrange (Lisboa).

Mas todos os contemporaneos e amigos de Luiz de Almeida lh’o attribuem.

Um d’elles, Urbano de Castro, veiu á imprensa reivindicar para
esse inolvidavel bohemio, que tinha a especialidade dos _Fados
scientificos_, a paternidade d’este _Fado_.

Essa reivindicação foi feita no _Correio da Manhã_, a cuja redacção
pertencia então Urbano de Castro, que pessoalmente me confirmou este
facto.

Luiz de Almeida tambem compoz um _Fado dos vinhos_, de que apenas
conheço uma quadra, o mote:

    O Collares foi-se casar
    Com a genebra de Hollanda.
    O Torres, que a namorava,
    Ficou de ventas á banda

Sobre a vida airada de Luiz de Almeida são muito interessantes as
informações que me forneceu o illustre professor, e meu amigo, Luiz
Feliciano Marrecas Ferreira.

Recorto de uma sua carta os seguintes periodos:

 «Namorou-se de uma rapariga, que andava n’um baile de mascaras,
 vestida á Luiz XV--a _Peregrina_--levou-a para casa, mas, como o
 dinheiro, mal chegando para o indispensavel, não era elastico, não lhe
 pôde dar outro fato, resultando d’ahi o ella ter de ir ao talho, ao
 vinho... ao diabo! invariavelmente vestida á Luiz XV.

 «Teve amores com uma outra, que era hespanhola, e, como não soubesse
 a significação de varias palavras do idioma d’ella, resolveu-se a
 comprar um diccionario. N’um bello dia a mulher foge, elle quer-lhe ir
 no encalço, junta o pouco dinheiro que tinha e o que pôde realizar. Lá
 foi o diccionario para o prégo!

 «Mostrando aptidão devéras para o estudo das cadeiras, que devia
 frequentar, pouco estudou durante largos periodos. Chegando a certa
 altura do anno, abandonava qualquer d’ellas e fazia um fado, onde
 revelava sempre com bastante espirito algum conhecimento do assumpto,
 não se lhe tendo nunca apontado um erro.

 «Inventou a seguinte reacção chimica: «_o alcool em presença do ether
 vinico perde uma molecula de agua e toma uma de vinho._» Se o alcool
 realmente toma, ou não, os sabios que digam, elle é que nunca deixava
 de tomar varias vezes por semana com uma frequencia bem assignalada
 pela policia e pelos numerosos amigos e companheiros.

 «Depois de lauta ceia em casa de um titular, bastante conhecido
 (visconde de Trancoso?) foi passear com um amigo e já de madrugada
 recolheu a penates. Deu-lhe para molhar toda a gente, que passava
 pela rua, e da saccada do segundo andar, defronte da Polytechnica,
 foi deitando agua até que se lhe acabou--n’esse tempo não havia
 canalisação, vivia-se em pleno regimen de barril e aguadeiro--e elle
 foi-se resignando a assistir _a sêco_ ao transito da rua. N’isto passa
 o antigo bando dos toiros: campinos a cavallo, uma charanga de barulho
 ensurdecedor, arruaça, garotos e não garotos a apanhar cartazes.

 «Luiz de Almeida lembra-se de que ainda poderia haver alguma agua no
 fundo do pote, foi n’um pulo á cosinha, tira-o do poial e tral-o para
 a janella, onde o sacudiu a vêr se deitava alguma coisa, até que se
 lhe escapa das mãos indo cahir com grande estardalhaço n’um intervallo
 dos cavallos, partida esta que o levou á Boa Hora.

 «Felizmente ninguem ficou ferido, e o pote, tambem como a taça do
 celebre rei de Thule, mereceu as honras de uns versos.

 «No primeiro andar d’essa casa moravam as _Manas Perliquetetes_,
 n’essa época gente séria e recatada e só deixaram de o ser quando
 ao L. de Almeida passou pela cabeça--o que realizou--tornar-se seu
 perceptor.

 «Quando não vivia em _faux ménage_, arranjava uma _républica_ de
 rapazes, sendo então um verdadeiro inferno para os senhorios.

 «No pequeno largo, entre a R. do Telhal e a de Santo Antonio dos
 Capuchos, morava n’um primeiro andar com o Alves (que morreu capitão
 de artilheria); o Anthero, do Porto; e o Thomaz Malheiro (engenheiro
 civil já fallecido). N’uma manhã põe escriptos nas janellas, apesar de
 nenhum d’elles ter feito tenção de se mudar; batem á porta, vae abrir
 a uns sujeitos que não conhecia, mostra-lhes a casa e leva-os para a
 cosinha depois de longo discurso sobre as vantagens e inconvenientes
 do que iam vendo, até que pôde fechal-os á chave. Os homens berraram,
 era uma bulha dos demonios na cosinha, os companheiros d’elle riam
 a bandeiras despregadas e o Luiz de Almeida vae pôr-se á janella
 a assoprar n’um apito até que veiu a policia libertar os presos,
 pregando com estes e com aquelle no Carmo.

 «Já official de artilheria e no polygono de Vendas Novas deu largas á
 veia poetica e folgazã fazendo versos a tudo e a todos.

 «Alli havia por esse tempo um tal Rodarte, com mania de caçador, mas
 sem a destresa necessaria para esse sport, o qual á volta do campo
 trazia sempre, ou quasi sempre, alguma caça comprada a um ferrador,
 que existia no caminho. Fez-lhe um dia varias quadras, sendo a
 primeira:

    Ó Rodarte, Rodartinho,
    Ó Rodarte, ó meu amôr,
    Quando fôres caçar perdizes
    Busca á volta o ferrador.

Como todos os bohemios, Luiz d’Almeida morreu em plena mocidade, crêmos
que pouco depois do verão de 1872, sem que possamos designar com
segurança a data do seu fallecimento.

Na academia de Lisboa, elle foi o mais completo exemplar do
estudante-menestrel, errante de bairro em bairro, de rua em rua, a
cantar o _Fado_ ao som da guitarra dolente, por noites de luar, n’umas
férias sem fim.

Sempre os moços souberam canções, porque amam as mulheres, a liberdade
e a alegria, e porque, n’uma palavra, são moços. Os estudantes teem por
si a tradição de poetas e namorados, que tambem é uma recommendação
suggestiva. Lá diz a trova:

    Se houver de tomar amores
    Ha de ser com um estudante:
    Ainda que não tenha dinheiro,
    Tem o passear galante.

As suas canções (estudantinas), muito sentimentaes, prestam-se
facilmente ao rythmo mavioso do _Fado_, para o qual elles compõem
quadras de fino sabor litterario, que contrastam, pela elevação dos
conceitos e pela belleza da fórma, com o _Fado_ popular.

Em algumas localidades ha _Fados_ escolares de classe, como, por
exemplo, o _Fado dos estudantes açorianos_, que foi recolhido no
_Cancioneiro de musicas populares_[85].

N’outras localidades, principalmente em Coimbra, cada estudante poeta
dá largas ao lyrismo individual em quadras de _Fado_, que vão passando
de guitarra em guitarra até se generalisarem na classe e depois no paiz.

                        [Illustração: HYLARIO]

Hylario foi moderadamente o grande aédo do Fado escolar coimbrão.

Depois de Luiz d’Almeida não tinha apparecido ainda entre a classe
escolastica de Portugal um mais notavel e mais errante cantor de
_Fados_ litterarios.

A sua vida foi ephémera, segundo a lei fatal dos bohemios; mas o seu
nome ficou ligado indissoluvelmente á tradição nacional do _Fado_.

Chamava-se Augusto Hylario Costa Alves; mas o seu nome de guerra foi
simplesmente «Hylario».

Elle conquistou a celebridade que dispensa appelidos e avós.

Era natural de Vizeu e surprehendeu-o a morte quando, através as
delongas proprias da vida esturdia, frequentava o 3.º anno da faculdade
de medicina em Coimbra[86].

Tinha sido nomeado aspirante a medico do ultramar.

Matou-o, na sua terra natal, uma doença do figado, cremos que cyrrhose,
aggravada por um ataque de grippe.

Falleceu, estando em férias de Paschoa, no dia 3 de abril de 1896.

A sua morte causou sensação em todo o paiz, e o seu funeral teve
aquella pompa solemne que costuma derivar da celebridade do morto.

Dizia um telegramma de Vizeu, dando conta d’esse triste acontecimento:

«_VIZEU_, 4, ás 7 h. 35 m. da t.--Hylario, o estudante bohemio que todo
o paiz conhece, principalmente pelo seu _fado_ popularissimo, soffria
do figado. Foi essa a doença que o matou, consequencia de um ataque de
_influenza_.

«O seu corpo foi velado em casa da familia, onde morreu, por academicos.

«O seu enterro realizou-se ás 6 horas da tarde de hoje. Vestiram-lhe o
uniforme de aspirante de medico naval. Acompanharam varias irmandades
e a banda de musica de infantaria 14, sendo a chave do caixão entregue
ao coronel do mesmo regimento. Ás borlas pegaram os officiaes, sendo
o feretro conduzido pelos estudantes do lyceu de Vizeu e dos cursos
superiores das differentes escolas do paiz, que aqui tinham vindo
passar as ferias da Paschoa.

«No cemiterio foram depostas oito corôas, sendo uma da familia, outra
do curso do terceiro anno medico e as restantes de varios academicos e
pessoas amigas do inspirado guitarrista.

«Pronunciaram discursos, quando o corpo baixou á terra, um estudante do
lyceu d’esta cidade, dois estudantes de Coimbra e o advogado Alberto
Ponces.

«A guarda de honra, porque o finado tinha honras militares como
aspirante a medico naval, foi prestada á porta do cemiterio por uma
força, que deu as trez descargas do estylo.

«A morte do pobre rapaz foi muito sentida em Vizeu.»--_M._

Na população de Coimbra, habituada a ouvil-o, a manifestação de
sentimento foi ainda maior talvez do que em Vizeu.

Um telegramma d’aquella cidade dizia:

«O academico Hylario era muito conhecido em todo o paiz pelos seus
popularissimos fados. Em Coimbra deixa saudosas recordações. Seu genio
jovial e tendencias bohemias deram-lhe grande prestigio e ascendencia
na actual mocidade academica. Em Coimbra é sentidissima a sua morte.»

Todos os jornaes diarios do paiz se referiram largamente ao Hylario;
alguns publicaram o seu retrato, esse conhecido retrato em que elle, de
capa e batina, cabeça ao lado, olhos em extasi, dedilha na guitarra um
dos seus _Fados_ dolentes.

Lisboa conhecia-o, tinha-o ouvido; mas os seus _Fados_ haviam chegado á
capital primeiro do que elle.

Um jornal da epoca relembrou n’estes termos a sua vinda a Lisboa:

«Occorreram as festas em honra do João de Deus. Com a academia de
Coimbra veiu Hylario a Lisboa.

«O rythmo inédito do seu fado ia então ter o ensejo de lançar o vôo e
popularisar-se como se popularisaram os versos do grande poeta.

«A poesia e a musica do povo abraçavam-se ali, por um decreto do acaso,
tendo surgido com o intervallo de trinta annos.

«Todos iriam decorar o fado do Hylario como haviam decorado as quadras
adoraveis de João de Deus.

«O destino como que quizera tambem consagrar o grande poeta do amor
inventando este bohemio legitimo, authentico como os dos lendarios
tempos de João de Deus, para fazer perdurar, por uma musica grata ao
povo, a lembrança d’aquella festa sympathica da mocidade.

«E assim foi.

«Durante trez noites Lisboa ouviu, altas horas, os accordes tristes da
guitarra do Hylario e a sua voz potente a que elle imprimia um tom de
melancolia estranha:

    «Foge, lua, envergonhada,
    Retira-te lá do céu;
    Que o olhar da minha amada
    Tem mais brilho do que o teu.

    «Um dia, quando morreres,
    Ó pomba dos meus anhelos,
    Consente que eu vá beijar
    As tranças dos teus cabellos.

«Da rua passou ao theatro. A não ser nas peças puramente academicas,
estava deslocado n’aquelle meio. Tão legitimamente bohemios eram os
seus fados, a sua maneira de cantar, que o effeito falhava todo como
falharia um trecho de Mozart tocado n’uma baiuca de camareras.»

Em Vizeu sahiu a 12 de junho de 1896 o primeiro numero de um semanario
imparcial, intitulado _Hylario_.

Declarava no artigo do fundo que o seu programma, alem de ser «uma
consagração á memoria do que pode dizer-se o ultimo bohemio portuguez»
era, conservando uma feição accentuadamente litteraria, empregar como
armas de combate a satyra e a critica, com firmeza, mas com moderação.

Estampou o retrato de Hylario na 1.ª pagina, o seu retrato de estudante
e de bohemio; e varios artigos commemorativos da sua morte.

Não sei se este semanario tem continuado, mas possuo o 1.º numero.

Quero ainda referir-me á saudosa necrologia entoada nos jornaes do
paiz, para transcrever as palavras com que um d’elles rematava a
apologia do mallogrado Hylario:

«É menos um doido no mundo, dizem as pessoas graves e de circumstancia.
Mas essas pessoas graves não farão verter, muitas d’ellas, á sua
despedida d’esta vida, senão lagrimas de cerimonia, ao passo que esse
doido é a esta hora sinceramente pranteado por muitos corações juvenis
das filhas do Mondego, que, fascinadas pela sereia da sua guitarra,
corriam em Coimbra apoz elle como as antigas virgens romanas apoz os
seus heroes, offerecendo-lhe o óbolo do seu primeiro amor.

    «Meu coração é quadrante,
    Quadrante do meu desejo:
    Nas horas em que te vejo
    Não marca mais que um instante.[87]

    «Vivo de ti separado,
    Escravo da minha dôr.
    Com prazer manietado
    Por élos do teu amor.

«Pobre Hylario! Parece que tinhas a previsão do teu fim tão rapido
quando perguntavas:

    «...E passo a vida tristonho
    A cantar por não saber
    Se a vida está só no sonho
    E a realidade em morrer![88]

«O destino acaba de te dar resposta.»

Hylario cantava quadras suas e de outros poetas, taes como Guerra
Junqueiro, Antonio Nobre, Fausto Guedes Teixeira, etc.

Proprias ou alheias, avultavam no seu cancioneiro estas lindas trovas
galantes:

    Nossa Senhora faz meia
    Com linha feita de luz.
    O novello é a lua cheia,
    As meias são p’ra Jesus.[89]

    O mar tambem tem amante,
    O mar tambem tem mulher!
    É casado com a areia,
    Dá-lhe beijos quando quer.[90]

    A minha capa velhinha
    Tem a côr da noite escura.
    N’ella quero amortalhar-me
    Quando fôr p’ra sepultura.[91]

    Ave Marias são beijos,
    Padre Nossos são abraços.
    Rosario dos meus desejos,
    A cruz é abrires-me os braços.[92]

    Tuas mãos são branca neve,
    Teus dedos são lindas flores;
    Teus braços cadêas de ouro,
    Laços de prender amores.

    Eu queria ser como a hera
    Pela parede a subir,
    Para chegar á janella
    Do teu quarto de dormir.

    Olhos verdes côr d’esp’rança,
    Inconstantes, côr do mar.
    Quem tem amor é creança,
    Sou creança por te amar.

    Ao lançar dos olhos meus
    A rêde dos meus desejos
    No lago dos labios teus,
    Eu trago-a cheia de beijos.

    N’esse teu labio vermelho
    Ha risos do sol de agosto:
    A alvorada é um espelho
    Onde se mira o teu rosto.

    Um canto ao vento fluctua,
    Começa a aurora a cantar:
    Ó vate, vai-te deitar,
    Rasga o pandeiro da lua.[93]

    Anda o luar prateando
    Os ribeiros palradores.
    O ar é quente, a seara
    É como um ninho de amores.

    Foge, lua, envergonhada,
    Retira-te lá do ceu;
    Que o olhar da minha amada
    Tem mais brilho do que o teu.[94]

    Tem o brilho das estrellas
    E o fulgor dos arreboes.
    Quem me dera com dois beijos
    Apagar tão lindos soes!

    Não ha saphiras mais bellas
    Na grande concha dos ceus.
    Pois se Deus quiz ter estrellas,
    Roubou-as dos olhos teus!

    Á porta do Infinito,
    A traços largos, profundos,
    A mão de Deus tinha escripto:
    «Os teus olhos são dois mundos.[95]

    Os teus olhos são escuros
    Como a noite mais cerrada.
    Apesar de tão escuros,
    Sem elles não vejo nada.

    Serve-te a madeixa negra
    De moldura ao rosto franco,
    Como se uma toutinegra
    Pousasse n’um lirio branco.[96]

    A lua tranquilla dorme
    Na amplidão celestial,
    Tal como perola enorme
    N’uma concha colossal.

    Ouvi dizer ao luar
    Com trinados na garganta:
    «Quem canta seu mal espanta.»
    E eu puz-me então a cantar.[97]

    Eu quero que o meu caixão
    Tenha uma forma bizarra:
    A forma de um coração,
    A forma de uma guitarra.[98]

    Guitarra, minha guitarra,
    Solta teus ais, minhas queixas.
    És tu a unica amante
    Que por outro me não deixas.

    Vai alta a lua, vai alta,
    Brilha nos ceus, branca lua.
    Vem tu vel-a, minha amada,
    Illuminando esta rua.

    A lua, onde os olhos fito,
    A face em nuvens recaia,
    Como lagrima de prata
    Na palpebra do Infinito.[99]

    Ás vezes quando, indeciso,
    Me curvo p’ra o teu olhar,
    Vem n’uma lagrima um riso:
    Raio de Sol sobre o Mar.

    Pequenas da minha terra,
    Dou-vos canções, dai-me beijos.
    A quem sua alma descerra,
    Vai-se-lhe a alma em desejos.

    Tenho já sêca a garganta.
    E como é que isto é não sei.
    _Quem canta seu mal espanta..._
    Puz-me a cantar... e chorei!

    Tu és o pomo vedado
    Do Éden da minha vida;
    Triste illusão do passado
    Ao meu porvir transmittida.[100]

    Ha malmequeres pelo ceu
    --Esse azulino canteiro.--
    A lua dá-lhes a côr.
    É o sol o seu jardineiro.

    Na noite do meu soffrer
    Cheia de nuvens sombrias,
    Ha o canto das nostalgias
    Da minha alma a envelhecer.

Uma noite, no theatro do Principe Real, do Porto, Hylario improvisou
esta quadra ás damas:

    Ai! que lindas pombas brancas
    Ha no Principe Real!
    Quem me dera ser o pombo
    Da que não tenha casal!

Depois conservou esta quadra no seu cancioneiro, modificando assim o
segundo verso:

    Vejo n’aquelle pombal!

Nas quadras que acompanham o _Fado Serenata_, publicado no Porto por
Eduardo da Fonseca, vem uma que não é do Hylario, nem dos poetas seus
contemporaneos:

    Os teus olhos negros, negros,
    São gentios da Guiné:
    Da Guiné por serem negros,
    Gentios por não ter fé.

Esta quadra é popular, e mais antiga. Já tinha saido no _Cancioneiro_
de Theophilo Braga em 1867.

Ouvi cantar o Hylario no theatro da praia de Espinho, no verão, por
occasião de uma récita de caridade que ali se organizou.

Cabeça pendida sobre o lado esquerdo, como para ouvir melhor o que
dizia o coração, a sua voz soluçava requebrada n’uma especie de arroubo
illuminado de inspiração.

Assistia a esse espectaculo uma menina portuense (J. L. R.) vestida
de preto e toucada com uma rosa; Hylario improvisou em sua honra a
seguinte quadra:

    Ao vêr-te meiga e formosa
    Nas tuas roupagens negras,
    Eu cuido vêr uma rosa
    N’um _bouquet_ de violetas.

Hylario tencionava colligir as suas canções n’um volume com o titulo de
_Guitarrilhas_.

É-lhe attribuida a musica de varios _Fados_.

O _Catalogo geral alphabetico do Cancioneiro de musicas populares_
dá-lhe a paternidade de cinco, o que me parece exigir alguma correcção.

Indica os seguintes:

I--_Cancioneiro_, fasc. 16, «As Estrellas» 1.º fado. Recolhido em
Coimbra, 1890.

II--_Cancioneiro_, fasc. 13, «A filha do Guadalquivir».

É com leves alterações o _Fado_ que nós em Lisboa chamamos «do Roldão».
O _Catalogo_ diz ser o 2.º _Fado_ do Hylario, mas o _Cancioneiro_
annota a respectiva melodia dizendo: «Parece que a musa teutonica
inspirava o melodista, _que não temos o gosto de saber quem é_.»[101]

III--_Cancioneiro_, fasc. 23. _Fado serenata_. Traz a designação de:
Musica de Augusto Hylario.[102]

                     [Illustração: FADO SERENATA]

Foi este que ouvimos ao proprio auctor em Espinho, e o que, de
todos que elle indubitavelmente compoz, se tornou mais popular.
Reproduzimol-o na pagina anterior.

IV--_Cancioneiro_, fasc. 34, «_O Ultimo Fado_», com a designação
de--Musica de Augusto Hylario--e a seguinte nota: «Quando nas férias
de 1895, Hylario se hospedou em uma dependencia do escriptorio da
nossa Empreza, offereceu-nos esta composição dizendo-nos que era o seu
_ultimo fado_, mas que tencionava addicionar-lhe algumas variações, e
que reservassemos a publicação para quando elle as tivesse composto
definitivamente.»

Tambem se popularisou este _Fado_, e por isso o reproduzimos.

                     [Illustração: O ULTIMO FADO]

V--_Cancioneiro_, fasciculo 68. «Fada pósthumo do Hylario» com a
seguinte annotação: «Este fado foi recolhido em Sinfães pelo ex.ᵐᵒ sr.
dr. M. M. Castro Côrte Real, que nol-o enviou com a seguinte nota:
«Fado do Hylario (ultimo). O fado (IV) que vem no _Cancioneiro_ com
a designação de ultimo é anterior a este. Este é que é geralmente
conhecido pelo ultimo; sempre assim o ouvi designar aos estudantes
coevos do grande bohemio. A lettra é do ex.ᵐᵒ sr. Luiz Osorio.»

Ora este _Fado_ é o mesmo que no Porto foi publicado com o titulo de
_Fado do 28_.

Pessoa auctorisada, por ser muito competente na materia, diz-me
d’aquella cidade que o auctor foi o rapaz cego a quem me referirei no
capitulo VI quando tratar do _Fado do 28_.

No _Cancioneiro_, fasciculo 60, vem outro _Fado_ relacionado com o nome
do Hylario: é dedicado á sua memoria e acompanhado da seguinte lettra:

    Oh! Hylario, oh! Hylario,
    Teu nome me dá paixão.
    O teu fado faz vibrar
    As cordas do coração.

    Guitarra, minha guitarra,
    Solta gemidos e ais;
    Que os dias passam voando
    E os prazeres não voltam mais.

    Guitarras andam de luto,
    Que o Hylario já morreu.
    Seu corpo guarda-o a campa,
    Sua alma voou ao ceu.

    Oh morte, tyranna morte,
    Eu de ti tenho mil queixas:
    Quem has de levar não levas,
    Quem has de deixar não deixas.

Diz a nota respectiva: «Este fado acha-se vulgarisado por todo o paiz
com diversa lettra.»[103]

Na collecção de glosas de _Fados modernos_, vendida em Lisboa nos
kiosques, sahiu um _Fado para o Hylario_, pranteando a sua morte.

Transcrevemos a ultima quadra:

    Calem-se os sons da guitarra
    Porque o Hylario morreu
    E foi cantar serenatas
    Ás virgens brancas do ceu.

O Hylario deixou escola em Coimbra, onde tem tido distinctos
continuadores do _Fado_ academico.

Um d’elles é o sr. Candido de Viterbo, que em 1899 compoz a serenatella
para o _Auto da sebenta_, impressa (Coimbra, casa da viuva Paula e
Silva) com outros _Fados_, a saber: _Fado do Penedo da Meditação_,
_Fado da Quinta das Lagrimas_, _Fado do Penedo da Saudade_, _Fado da
Lapa dos Poetas_, _Fado da Fonte da Serêa_.

O frontispicio, em lithographia, representa, alem de alguns trechos
da cidade de Coimbra, o sr. Candido de Viterbo, de capa e batina,
dedilhando a sua guitarra, sentado no alto de um penedo.

A lettra d’estes _Fados_ pertence aos seguintes academicos: Augusto
Gil, Lopes Vieira, Gomes Lopes, Antonio Macieira, Guedes Teixeira
(Fausto Guedes), Teixeira de Paschoaes, Severo Portela, Humberto de
Bettencourt, Pereira Barata, Marques dos Santos, Alberto Pinheiro,
Mario Esteves e Dom Thomaz de Noronha.

Vamos dar alguns _specimens_:

De Augusto Gil:

    Teus olhos, contas escuras,
    São duas Ave-Marias
    D’um rosario d’amarguras
    Que eu reso todos os dias.

    Canta mais devagarinho,
    Viterbo, ao seu postigo.
    Não sei porquê, adivinho
    Que está sonhando comigo...

    Donzellinhas, tomai tento,
    Meninas, não vos fieis.
    Cantigas, leva-as o vento,
    Cartas d’amor são papeis.

    Olhos negros de velludo
    Heis de fazer-me doutor.
    Sois os meus livros d’estudo
    Na faculdade do amor.

                    [Illustração: Guitarra de luxo]

De Lopes Vieira:

    Adeus, rio, choupos, serra,
    Adeus tudo, tudo emfim!
    Donzellinhas d’esta terra,
    Lembrai-vos por cá de mim.

    Cantarei, na despedida,
    P’ra onde me leva a sorte,
    O fado da minha vida,
    O fado da minha morte.

De Antonio Macieira:

    Andam teus olhos perdidos,
    Dizes, de tanto chorar.
    Pois eu perdi os sentidos
    De os andar a procurar.

De Fausto Guedes:

    Deus que nos vê lá de cima,
    Alma d’esta alma, querida,
    Juntou-nos: somos a rima
    Da linda quadra da vida.

De Teixera de Paschoaes:

    Sepulturas de desejos
    São teus labios ideaes,
    Onde vão chorar os beijos
    Mal empregados nas mais.

De Severo Portela:

    A trança que tu me deste
    É negra como o carvão.
    De luto tu me vestiste
    Dos olhos ao coração.

De Humberto de Bettencourt:

    Perdido todo o juizo,
    Ia morrendo d’amores:
    Pôde mais um teu sorriso
    Que a sciencia dos doutores.

De Pereira Barata:

    Não tenho de ti reserva
    Pelo mal em que me deixas:
    Por mais que se pise a herva,
    Nunca á herva se ouvem queixas.

De Marques dos Santos:

    Ó minha santa madrinha,
    Isabel de Portugal,
    Heis de me dar a mézinha
    Que me livre do meu mal.

    Dos Olivaes Santo Antonio,
    Lá no alto idolatrado,
    Fazei com que as lindas moças
    Me tenham todas de agrado.

De Alberto Pinheiro:

    Ó Senhora da Bonança,
    A quem eu reso a chorar:
    Olhai pela minha amada,
    Que anda sobre aguas do mar.

    Dos meus anneis o mais lindo
    Vos darei quando voltar,
    E em vossa capella branca
    Com ella me irei casar.

De Mario Esteves:

    Senhora da minha vida,
    A trança deitai-a ao vento,
    Que quanto mais desprendida
    Mais me prende o pensamento.

De Dom Thomaz de Noronha:

    Nos teus seios de luar
    Derrama-se o teu cabello,
    Como uma aurora a brilhar
    Sobre montanhas de gêlo.

Foi Coimbra que deu ao _Fado_ a alta cotação litteraria, que elle tem
hoje nas serenatas academicas.

Muitas d’essas quadras, que ahi ficam relembradas, são poemas
encantadores, _doloras_ suavissimas, verdadeiras obras d’arte em
miniatura.

Não conheço na poesia popular dos outros paizes, e não a conheço
mal,[104] perolas de mais subida concepção poetica do que a maior parte
d’essas quadras que pareciam sair da bocca do Hylario como um bando de
queixumes estonteados, que algum temporal de amor tivesse desaninhado
da alma dos poetas.

De mais a mais o _Fado_, transplantado litterariamente para Coimbra,
não soffreu uma deslocação violenta como quando entrou, producto
exotico, nas salas de Lisboa, e passou da guitarra ao piano.

Em Coimbra elle tem conservado toda a sua amargura dolente, continua a
ser, na voz dos estudantes, o hymno da desgraça, não da que se debate
em abysmos de miseria social, mas em tormentos, certamente exagerados,
de amor e de saudade.

Prevalece integral no _Fado_ de Coimbra a mesma feição psychica de
soffrimento e angustia com que nasceu o _Fado_ de Lisboa.

Não tem a desnatural-o a garridice frivola das salas, a inconsciencia
musical com que elle é martelado nos pianos alfacinhas sem uma parcella
minima de senso esthetico e de vibração emotiva.

Em Lisboa alguns poetas «novos» teem seguido o exemplo dos de Coimbra,
dando ás coplas do _Fado_ uma expressão accentuadamente litteraria.

                    [Illustração: Guitarra commum]

Do sr. Ribeiro de Carvalho citarei os seguintes.


Fados

1.º

    Cantigas do Triste Fado,
    Bemditas pelo Senhor,
    Só as inventa quem soffre,
    Canta-as só quem tem amor...

2.º

    É um passo da Terra ao Céu,
    Da Vida á Morte é um ai...
    Só do meu peito ao teu peito
    Tamanha distancia vae!

3.º

    Quem espera sempre alcança,
    Diz um dictado traidor...
    E eu espero e desespero,
    Não alcanço o teu amor!

4.º

    Dou-te amor, tu dás-me penas,
    Vives só pela traição...
    Fazes commercio de injurias,
    Nem Deus te dá o perdão![105]

Logo que a litteratura se apropriou do _Fado_, como de um poema curto
e profundo, a arte foi procurar n’elle a alma do povo, o caracter
nacional, e á semelhança do que fizera Franz Liszt, inspirando-se
nos motivos populares da Hungria, começaram a apparecer as rapsodias
portuguezas, o rythmo do _Fado_ foi superiormente glosado por alguns
compositores, n’uma alta expressão de technica profissional.

As _Rapsodias_ de Victor Hussla contéem _Fados_; Munier compoz um
arranjo sobre o _Fado corrido_; Rey Colaço já publicou 8 _Fados_,
incluindo o _Hylario_ e o _Corrido_; Moreira de Sá deu recentemente a
lume o _Fado choradinho variado_, etc.

Foi certamente Coimbra que, fazendo entrar o _Fado_ nos dominios da
litteratura, chamou para elle a attenção dos artistas portuguezes e dos
estrangeiros que, como Victor Hussla, viveram em Portugal.

Dos nossos poetas modernos, aquelles que passaram por Coimbra são pois
os que melhor revelam nos seus cantares toda a delicada comprehensão
esthetica do _Fado_, toda a sua grande doçura maviosa como expressão
sentimental.

Lembra-me, a proposito, esta quadra de Antonio Nobre:

    Meu violão é um cortiço,
    Tem por abelhas os sons,
    Que fabricam, valha-me isso,
    Fadinhos de mel, tão bons!

Cito de preferencia este poeta ainda pela circumstancia de que a sua
morte prematura inspirou o _Triste Fado_, musica de Julio Silva, lettra
de Armando de Araujo.

Mas não deixarei em silencio outras quadras, de rapazes que passaram
por Coimbra. Ellas dão toda a emoção produzida pelo _Fado_ na alma
nacional:

    Não temos musica é a nossa falha!
    Sabemos a do vento e mais do mar...
    É a da India e do campo da batalha,
    Que o proprio fado é um modo de chorar.

    FAUSTO (GUEDES).

    Cantador enamorado
    Á minha porta a cantar,
    Não cantes, chora-me o fado,
    Que o fado fez-se a chorar...

    (LADISLAU PATRICIO).

    Eu se o meu fado cantar
    Sineiro m’ hei de fazer:
    P’ra todo o povo chorar
    Quando o meu fado souber.

    (LOPES VIEIRA).

Da academia de Coimbra tem partido a publicação de folhas volantes,
editadas pelo livreiro França Amado: uma d’ellas intitula-se _Cantigas
para o Fado e para as Fogueiras do San João_.


NOTAS DE RODAPÉ:

[68] Quando o sr. D. Antonio Ayres de Gouvea, hoje bispo de Bethsaida,
foi cursar a Universidade em 1850, ainda os estudantes compunham e
cantavam amphiguris. Segundo informação de s. ex.ᵃ, appareceu mais
tarde o _Fado de Coimbra_ e depois o _da Figueira_. _Fado_ ainda não
era então, em Coimbra, uma designação generica, mas apenas especial
d’aquellas duas canções.

[69] Emquanto este livro esperava o momento de entrar no prélo,
falleceu Urbano de Castro, ás 3 horas da manhã de 6 de novembro de 1902.

Aqui fica n’esta pagina um clarão do seu espirito tão finamente
litterario. É como se eu plantasse aqui uma saudade.

[70] Leia-se: Vê zero.

[71] Leia-se: Vê dois ró.

[72] Leia-se: F (éfe) primo.

[73] Leia-se: M linha.

[74] Leia-se: Dêtê.

[75] Leia-se: Hidrogénio.

[76] Leia-se: Agua.

[77] Leia-se: Prata.

[78] Leia-se: Potassa.

[79] Leia-se: Chloro.

[80] Leia-se: Hydrogénio.

[81] Leia-se: Antimonio.

[82] Leia-se: Agua.

[83] Leia-se: Chumbo.

[84] Leia-se: Azote.

[85] Fasciculo 56.

[86] Ficára reprovado em alguns preparatorios e no 1.º anno d’esta
faculdade.

[87] Esta quadra é de Guerra Junqueiro, na _Morte de D. João_.

[88] De Fausto Guedes.

[89] De Antonio Nobre.

[90] Presumo que esta quadra é do Hylario.

[91] Tambem attribuo esta quadra ao Hylario.

[92] De Francisco Bastos, estudante brazileiro, morto.

[93] De Fausto Guedes Teixeira.

[94] Repetimos esta quadra por causa do seu encadeamento com as duas
seguintes. Suppomos que é do Hylario.

[95] É do Hylario.

[96] De Fausto Guedes Teixeira.

[97] De Fausto Guedes Teixeira.

[98] É do Hylario.

[99] Esta e as trez quadras seguintes são de Fausto Guedes Teixeira.

[100] Supponho que é do Hylario.

[101] Ha manifesta contradicção entre o _Cancioneiro_ e o seu
_Catalogo_, de modo que o leitor fica hesitante. O _Cancioneiro_ é
um vasto e importante repositorio de canções populares, mas carece
de algumas rectificações e de muitas aclarações, o que aliás não
admira em obra de tanto vulto. Assim, no fasc. 4., diz que o amphiguri
_Duzentos gallegos_ appareceu em 1846 e 1847, sendo porem certo que
Filinto Elysio já se refere a elle. Reappareceu n’essa epoca, o que
faz differença. No fasc. 56 traz sob o titulo _Remar... remar..._ uma
barcarola com a seguinte nota: «É esta barcarola, uma das canções
orpheonicas do Mondego, hoje vulgarisada por todo o paiz.» Não cita o
nome do auctor, e comtudo eu conheço-o muito bem. Sou eu mesmo, que dos
16 para os 17 annos a compuz: é a «Barcarola de Ismael» no poemeto _A
nereida_.

Mais tarde, quando inclui este poemeto no livro _Cantares_, procurei
corrigir algumas infantilidades, que me saltaram aos olhos. Fiz reparo
nos dois seguintes versos:

    Velas ao vento,
    Remar, remar.

No commum dos casos, se o vento sopra não é preciso remar. Por isso
modifiquei assim a barcarola:

    Do mar no fundo,
    Sobre as areas,
    Cantam sereas,
    Quando ha luar.

    O mar é lindo
    N’este momento!
    Repoisa o vento,
    Remar, remar.

    Do mar no fundo,
    Cheios de aljofres,
    Ha muitos cofres,
    Que te hei de dar...
    O mar é lindo
    E a tarde é calma.
    Delira a alma!
    Remar, remar.

    Do mar no fundo,
    Sobre as areas,
    Cantam sereas,
    Quando ha luar.
    O mar é lindo!
    O ceu convida!
    O amor é vida...
    Remar, remar.

A barcarola, tal como ella vem no _Cancioneiro_, chega a não fazer
sentido logo no primeiro verso, que diz:

    No mar, no fundo, etc.

E padece outras alterações, que facilmente podiam ter sido evitadas.

[102] Tambem publicado, com a lettra, nos _Cantos populares_ editados
no Porto por Eduardo da Fonseca.

[103] Tambem vem publicado na 2.ª série de _Cantos populares_, Porto,
editor Eduardo da Fonseca.

[104] Consegui reunir na minha modesta livraria 24 volumes sobre a
poesia popular das nações da Europa. Estimo muito esta collecção, não
só porque não é facil juntal-a, mas porque n’ella encontro bellezas que
deixam a perder de vista muitos poetas cultos e gloriosos.

[105] No jornal _A Chronica_, n.º 68, do 3.º anno.



                                  VI

                     Bibliographia musical do Fado


É quasi impossivel coordenar um catalogo completo dos _Fados_ (musica)
hoje mais ou menos vulgarisados em Portugal.

Succedem-se uns aos outros. Apparecem, alguns d’elles gosam de certa
popularidade, e demoram-se até que um novo _Fado_ lh’a roube ou pelo
menos cerceie; outros não encontram ecco no gosto publico, passam e
esquecem rapidamente.

O catalogo alphabetico, que em seguida publicamos, abrange, ainda
assim, mais de 100 _Fados_.

As indicações bibliographicas, que pudemos reunir, são por vezes
deficientes, mas algumas não deixarão de ser interessantes.

De muitos _Fados_ se ignora o nome do auctor.

A este respeito baldamos longas pesquizas e aturados esforços, mas
tivemos de resignar-nos a mencionar apenas o titulo dos _Fados_ por não
haver meio de descobrir quaes foram os seus auctores.

É possivel que, n’uma nova edição, logrêmos preencher algumas lacunas.

Sempre que dissermos _Fados_, deve entender-se que são as composições
musicaes d’este nome; quando se trata apenas da cantiga ou lettra,
temos o cuidado de o fazer sentir para evitar equivocos.

Como entre a entrega do manuscripto ao editor e a publicação do livro
mediaram largos mezes, pudemos addicionar a este capitulo alguns fados
que foram publicados ou reeditados entretanto; bem como a noticia de
outros que chegaram ao nosso conhecimento, e varias indicações que
encontramos na imprensa relativas ao assumpto.

       *       *       *       *       *

Posto isto, segue o catalogo.


=Açoriano= (Fado)

Pelo actor Roldão. Editora a livraria Avellar Machado; Lisboa.


=Albertina= (Fado)

Editor Raul Venancio, rua do Ouro, Lisboa.


=Alcantara= (Fado d’)

O sr. Fernando Diniz, professor lisbonense de guitarra, recolhe todos
os _Fados_ que vae ouvindo.

Possue uma collecção de mais de 60, mas não sabe o nome dos auctores de
muitos d’elles.

Só por este colleccionador é que tive noticia do _Fado d’Alcantara_.


=Alegre= (Fado)

Auctora, Theodolinda E. Silva.

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=Algarve= (Fado do)

Musica de Alberto de Moraes; lettra de Bernardo de Passos.

Lettra:

    Meu doce fado, és tão triste
    Como á noite a voz do mar;
    Tão triste, que a quem te canta
    Dás vontade de chorar.

    Eu não sei quem fez o fado,
    Mas tenho d’isto a certeza:
    Quem lhe deu esta tristeza,
    Amou e não foi amado.

    Se um dia a trança te ardesse
    Nas chammas do teu olhar,
    Nem talvez todo o meu pranto
    Pudesse o fogo apagar.

    Nada maior do que o ceu,
    Que é immenso como o espaço,
    Pois o ceu cabe em teus olhos
    E tu cabes n’um abraço.

    Teu chorar é uma aurora
    E dizes que soffres tanto...
    Mais triste do que o teu pranto
    É meu rir a toda a hora.

    Nos braços da cruz morreu
    Por sina o proprio Jesus.
    E eu morro longe dos teus,
    Sendo tu a minha cruz.

Editores d’este _Fado_: Benjamin & Filgueiras, Lisboa.


=Alijó= (Fado de)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=Amanhã= (=O=) Fado.

Este _Fado_ era cantado pelo actor Queiroz na revista do anno de 1895,
_Retalhos de Lisboa_, por Eduardo Schwalbach Lucci.

Foi lithographada a musica na officina da rua das Flores, 13, Lisboa.

Basta citar uma ou duas copias para dar idéa da intenção do titulo:

    De navios é preciso
    Nossa esquadra guarnecer.
    Amanhã se trata d’isso,
    Hoje ha muito que fazer.

    É força tomar juizo,
    As finanças recompor.
    Hoje não, oh que maçada!
    Amanhã, se faz favor.


=Amphiguri= (Fado)

Publicado no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
49.


=Anadia= (Fado)

Este _Fado_ nem foi composto pelo penultimo conde de Anadia, como muita
gente suppõe, nem teve por berço a villa da Anadia.

Testemunha contemporanea (o fallecido Severo Ernesto dos Anjos)
contou-me uma vez que o titulo d’este _Fado_ lhe adveio de ter sido
offerecido em Lisboa áquelle titular por um musico, de que me disse o
nome, que infelizmente esqueci.

Vem publicado no 5.º fasciculo do _Cancioneiro de musicas populares_,
e ahi se diz que «é uma das musicas no estylo moderno, do genero, mais
distincta e não monotona.»

Incluido nas collecções das casas Lambertini, Sassetti, etc. de Lisboa,
e da casa Eduardo da Fonseca, do Porto.

O conde de Anadia viveu na bohemia elegante, mas não cantava o _Fado_,
e supponho que não tocava guitarra.


=Antonino= (Fado)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=Armada= (Fado da)

Este _Fado_ foi aproveitado por Freitas Gazul na revista de Souza
Bastos _Sal e pimenta_. Cantava-o actriz Carmen Cardoso, applicando-lhe
quadras allusivas aos vehiculos do empresario Jacinto, que então
faziam carreiras nas ruas de Lisboa. Por este motivo se lhe ficou
chamando tambem _Fado do Jacinto_.

Vide _Jacinto_.


=Artilheiro= (Fado)

Vide _Fado Robles_.


=Até Chora!= (Fado)

Composição de Julio Neuparth.


=Atroador= (Fado)

Incluido na 1.ª série de _Fados_ da casa Sassetti, de Lisboa, e na
collecção da casa Eduardo da Fonseca, do Porto.


=Ballada= (Fado)

Original de Militão Lucio Garcia Coelho, professor de piano em Lisboa.


=Beira= (Novo Fado da)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra, na sua
collecção.


=Bohemio= (Fado)

De Reynaldo Varella. Editado no Porto, para piano, por Eduardo da
Fonseca.

Lettra:

    Guitarra, minha guitarra,
    Vamos correr esse mundo.
    Será, vendo-te a meu lado,
    Meu pesar menos profundo.

    Quando eu gemer tu suspira,
    Sorrirás quando eu sorrir.
    Havemos assim, guitarra,
    Prazer e dor compartir.

    Quando a saudade da amante
    Vier meus olhos turvar,
    Tu cantarás, e cantando
    Minha dor has de acalmar.

    Entre as folhas orvalhadas
    Dormem as rosas e os lirios.
    Não dorme quem tem amores,
    Porque amores são martyrios.


=Branco e Negro= (Fado do)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=Brazileiro= (Fado)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=Brilhante= (Fado)

Canto nacional para piano por N. S. Propriedade do auctor. Lith. R. das
Flores--Lx.ᵃ.


=Brisa= (=A=) Fado

Composição de Francisco Jorge de Sousa Bahia, professor de musica em
Lisboa.


=Brisa e Rosa= (Fado da)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=Campestre= (Fado)

Incluido (com o n.º 23) na 2.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti.
Publicado no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
33.


=Cantadores= (Fado dos)

Incluido (com o n.º 22) na 2.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti.


=Carmona= (Fado)

Incluido (com o n.º 20) na 2.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti.
Publicado no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
62.


=Carriche= (Fado de)

Pequena povoação da freguezia do Lumiar, arrabalde de Lisboa, Carriche
é um sitio muito frequentado por occasião das esperas de touros, posto
já o fosse mais, quando ali havia, ao fundo da calçada, o _Hotel de
Nova Cintra_, com uma bella horta para comesainas ao ar livre. Hoje o
dono do _Hotel_ veio estabelecer-se no Campo Grande. No sitio, apenas
restam algumas tascas, que ainda assim fazem bom negocio em noitadas de
touros, e que são habitualmente visitadas pelos saloios que ali passam.


=Cascaes= (Fado)

Muito vulgarisado. Incluido (com o n.º 18) na 2.ª serie de _Fados_
da casa Sassetti, e na collecção de 8 _Fados_ da casa Lambertini.
Publicado no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
56.

Cascaes é a praia aristocratica de Portugal; a praia da côrte.


=Cascos de rolhas= (Fado de)

Incluido (com o n.º 27) na 3.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti.


=Casino Lisbonense= (Fado do)

Original de João Maria dos Anjos.

Veja pag. 68 d’este livro.

           [Illustração: O guitarrista João Maria dos Anjos]


=Cega= (Fado da)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=Cegos= (Fado dos)

Incluido (com o n.º 17) na 2.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti.


=Celta= (Fado do)

Publicado no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
72.


=Cezaria= (Fado da)

Este _Fado_ para guitarra foi dedicado por Ambrosio Fernandes Maia,
como já dissemos, a uma rapariga de nome Maria Cezaria, continuadora
das tradições fadistas da Severa.

A ella se refere a ultima das seguintes glosas de um _Fado_ moderno:

    Quando a Severa cantava,
    Dizem os _faias_ antigos
    Que a pedido dos amigos
    Grande copasio empinava.
    Sem isso bem não cantava,
    Não _trinava_ com paixão;
    Mas se via um cangirão
    Dizia, ao som do fadinho:
    --Venha lá mais um copinho
    _D’esse vinho de tostão_.

    E houve ainda outra _canaria_
    Que tambem fazia o mesmo
    E bebia sempre a esmo,
    De fórma extraordinaria.
    Chamava-se ella Cezaria
    E era como a toutinegra,
    Que canta sempre com regra
    Tendo vinho ou agua-pé,
    Pois já dizia Noé:
    _Só o vinho nos alegra._

(Transcriptas do _Almanach da Severa_ para 1902).


Chegou! chegou!

O mesmo que _Fado Visconti_. Vide _Visconti_


=Chiado= (Fado do)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra.


=Choradinho= (Fado)

O _Cancioneiro de musicas populares_ (fasc. 18) traz este popularissimo
_Fado_ com a seguinte annotação: «Recolhido em Lisboa, em 1850. Este
é um dos fados propriamente ditos, e dos mais antigos, por onde se
moldaram outros muitos que posteriormente appareceram.»

Não ha duvida que é, chronologicamente, dos primeiros. Mas o primeiro
decerto não foi. (Vide _Fado do marinheiro_). Bem podia elle ter
estabelecido o typo d’este genero de canções a julgar pela sua grande
espontaneidade de sentimento, singela e profunda. Todavia a designação
de _Fado choradinho_ parece indicar que já havia outros, e que este se
distinguia por um tom ainda mais plangente, d’onde lhe viera o nome.
Em verdade, dir-se-ia um rosario musical feito de gemidos e suspiros.

O _Cancioneiro_ dá-lhe a lettra de algumas quadras populares, taes como
esta:

    Quem tiver filhas no mundo
    Não falle das malfadadas:
    Porque as filhas da desgraça
    Tambem nasceram honradas.

É claro que se lhe póde applicar qualquer outra lettra.

Este _Fado_ está vulgarisadissimo.

Em Lisboa anda nas collecções das casas Sassetti, Engestrom,
Lambertini, etc.

No Porto, Moreira de Sá escreveu sobre elle variações para piano, para
rabeca, bandolim ou flauta com acompanhamento de piano ou de violão e
guitarra.

Em Lisboa, Rey Colaço tambem glosou o _Fado choradinho_; dizia o jornal
_Novidades_, de 31 de janeiro de 1903:

«Foi agora posto á venda mais um trabalho do illustre pianista Rey
Colaço, uma das mais poderosas organisações artisticas do nosso paiz.
É um fado (choradinho), e, como todas as producções inspiradas na
melopeia que é o caracteristico da nossa raça, esta de Rey Colaço é
cheia d’uma melancolia de poente do outono, terna e triste como uma
despedida.

«O delicioso fado, que é dedicado ao sr. Raul Lino e estampa no
frontispicio a reproducção da casa portugueza que aquelle architecto
anda a construir para Rey Colaço, está á venda em todos os armazens de
musica.»


=Choramigas= (Fado)

Incluido (com o n.º 34) na 3.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti.


=Cigarreiras= (Fado das)

Incluido (com o n.º 26) na 3.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti.


=Cinira Polonio= (Fado)

É o nome da gentil actriz brazileira, que durante muitos annos viveu e
representou em Portugal, e que está actualmente na sua patria.

Este _Fado_ foi recolhido pelo sr. Fernando Diniz (logar citado).


=Cintra= (Fado de)

Auctor, A. dos Santos Garcez.


=Coimbra= (Fado de)

Publicado no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
29.

Incluido (com o n.º 8) na 1.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti.


Collecção de fadinhos

(Vide _Fadinhos_).


=Corrido= (Fado)

O _Cancioneiro de musicas populares_ diz que este _Fado_ já era
popularissimo em 1870, e dá-lhe a lettra de algumas quadras que andam
na tradição oral.

Mas o _Corrido_ não é mais que o simples acompanhamento do canto.

Sobre este typo melodico teem sido bordadas muitas variantes por
Alexandre Rey Colaço, Reynaldo Varella, Militão e outros, incluindo um
compositor extrangeiro, Munier.

O _Fado corrido_ anda em todas as collecções.


=Cotovia= (Fado da)

Não sei o nome do auctor.


=Custodia= (Fado da)

Auctora, Custodia Maria. É antigo.


=Damas= (Fado das)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=Desfalque=, =O= (Fado)

Cantado na revista do anno, _Agulhas e alfinetes_, de Eduardo
Schwalbach Lucci.


=Dez mandamentos= (Fado dos)

Por uma referencia do livro _In illo tempore_, de Trindade Coelho,
sabemos da existencia d’este fado: «um condiscipulo que nós tinhamos
chamado Miguel Dias, que era doido por musica, e levava o tempo a tocar
violão, e a cantar o fado dos _Dez mandamentos_».


=Diario de Noticias= (Fado do)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra.


=Dias de Souza= (Fado)

O sr. J. Dias de Souza é aspirante dos telegraphos no Porto,
collaborador de varios jornaes, auctor de alguns fados e acompanhador,
á viola, dos primeiros guitarristas portuenses.

Antonio Mouson não gosta de tocar sem ser acompanhado por elle.

Nascido no Porto, baixo e extremamente magro, Dias de Souza, que não
conta mais de trinta e tantos annos, tem uma physionomia illuminada por
uma dupla expressão de intelligencia e bondade.


=Domingos de Campos= (Fado)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=Eduardo Silva= (Fados)

1.º, 2.º e 3.º

Recolhidos pelo sr. Fernando Silva na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=Elegante= (Fado)

Nada pude apurar a respeito do nome do auctor.


=Elite= (Fado da)

Composição do sr. Carlos Stuart Torrie, actualmente residente em
Lisboa, mas oriundo de uma familia portuense.

Este _Fado_, foi editado pelo proprio auctor, em 1900.

Tem segunda edição.

A lettra é do sr. Mattoso da Fonseca. Transcrevemos as primeiras trez
quadras:

    Morenas prendem á terra
    Na graça do seu sorriso.
    Louras levam-nos ao ceu,
    Aos sonhos do Paraiso.

    Tens a candidez dos lirios,
    A graça das borboletas,
    A modestia dos martyrios,
    O pudor das violetas.

    Através o veu subtil
    O seu olhar feiticeiro
    Brilha como o sol d’abril
    Em manhãs de nevoeiro.


=Estoril= (Fado do)

É o n.º 25 da 3.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti.

O Estoril, sobre a linha ferrea de Cascaes, é hoje um dos sitios mais
elegantes que a população de Lisboa procura para veranear. Possue
lindos e numerosos _chalets_, um estabelecimento thermal, magnifico
_hotel_, matta sombria, e uma excellente praia de banhos. Com o
Mont’Estoril, S. João do Estoril e Parede, constitue actualmente uma
nova serie de estações balneares, que se povoaram dentro de poucos
annos, e que fazem grande concorrencia a Cascaes.


=Estudante= (Fado do)

Do seu auctor apenas sei que tem o appellido Leite.


=Estudantes= (Fado dos)

Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
56.


=Fadinho liró=

Composição de Francisco Jorge de Souza Bahia.


=Fadinhos= (Collecção de)

Auctor, Moraes. Esta collecção foi editada pela casa Moreira de Sá, no
Porto.


=Fadinhos Portuenses=

Só a lettra, e sem valor litterario. Collecção publicada no Porto pela
_Livraria Portugueza_, de Joaquim Maria da Costa, Largo dos Loyos, 5.
Conheço o fasciculo 2.º, que comprehende: Fadinho Brazileiro, Fado dos
Amantes, Fado de S. Martinho, Fado do Caminho de Ferro. Transcrevemos
este ultimo:

    Da estação de _Lisboa_
    Ao _Poço do Bispo_ salto,
    Vi os _Olivaes_ no alto,
    Mais _Sacavem_, cousa boa;
    Á _Povoa_ fui dar á tôa,
    De longe _Alverca_ avistei,
    De _Alhandra_ me aproximei,
    _Villa-Franca_ tambem vi,
    No _Carregado_ desci,
    Por _Azambuja_ passei;
    Eu vi do _Reguengo_ a ponte,
    E de _Sant’Anna_ tambem;
    Vi o _Valle de Santarem_,
    Mais de _Santarem_ o monte;
    _Valle de Figueira_ defronte,
    _Matto de Miranda_ a par,
    Fui _Torres-Novas_ passar,
    Parei no _Entroncamento_;
    De _Paialvo_ n’um momento
    A _Chão de Maçãs_ fui dar;
    De _Caxarias_--que tal?
    Na _Albergaria_ me puz;
    De _Vermoil_--catrapuz!
    Dei co’ os ossos no _Pombal_;
    A _Soure_ fui menos mal,
    P’ra _Formoselha_ voei,
    P’ra _Taveiro_ nem olhei,
    Em _Coimbra_ quiz descer;
    Depois de _Souzellas_ ver,
    Á _Mealhada_ cheguei;
    P’ra _Mogofores_ segui rumo,
    Eu vi do _Bairro Oliveira_;
    De _Aveiro_--que brincadeira!
    Para _Estarreja_ fiz fumo;
    Em _Ovar_ me puz a prumo,
    No _Esmoriz_ quiz saltar,
    Pelo _Espinho_ ali ficar,
    Quiz ver a _Granja_ primeiro,
    P’ra _Valladares_ fui ligeiro,
    Té que ao _Porto_ fui parar.


=Fado= (Novas cantigas do)

Por Jayme de Sá. É publicação anterior a 1882, e foi feita no Porto
pelos editores Clavel & C.ᵃ, rua do Almada 119-123.


=Fado= (Um)

Vide Rey Colaço e _Fado plagiario_.


=Fado= (Um)

Para piano por D. Laura Gentil. Lisboa.


=Fado Nocturno=

Pelo actor Roldão. Editora a livraria Avellar Machado; Lisboa.


=Fado Novo=

Auctor, Raymundo Varella.


=Fado Novo=

Na revista _Beijos de burro_, representada em abril de 1904 no theatro
do Rato em Lisboa.


=Fado Serenata=

Pelo actor Roldão. Editora a livraria Avellar Machado; Lisboa. Vide
_Sinhá_.


=Fados=

Rapsodia de _Fados_, para piano, composição do professor da «Tuna do
Diario de Noticias», Augusto Machado. Dedicados á sr.ᵃ D. Maria Guerra
Quaresma Vianna. Estão impressos, mas já antes haviam sido executados
em publico.


=Fados=

Por Veterano. Só a lettra, publicada no Porto, em 1902. São cinco
fados, contendo allusões pessoaes, como os seus titulos indicam.


=Fados=

Para piano, «escriptos expressamente para o «_Auto de Misericordia_»,
do Ex.ᵐᵒ Snr. Severim de Moraes, peça representada no Theatro D.
Amelia, no sarau dos distinctos estudantes da Escola Polythecnica por
A. Mantua».

São dois _Fados_. A lettra, como acima se diz, é de Severim de Moraes.

Do 1.º Fado:

    Não te cances a estudar,
    Toma tento com a morte:
    Que passar ou não passar
    É tudo questão de sorte.

Do 2.º Fado:

    Quando em noutes de luar
    Sósinha cantas o _Fado_,
    Ouve-se alguem soluçar
    No velho quarto do lado.

    Sou eu que sonho acordado,
    Sou eu que estudo e versejo;
    Sou eu que em sonhos te vejo,
    Ó dona do triste _Fado_.


=Fados modernos= (Collecção de)

Só a lettra, e sem valor litterario. Publicada no Porto pela _Livraria
Portugueza_ de Joaquim Maria da Costa, Largo dos Loyos, 5. Contém:

 Fado dos janotas (primeira parte), fado do adeus do degredado, fado do
 verdadeiro amor, fado da velha presumida, fado do pescador, fado do
 cego e o cão.

 Fado do meu coração (segunda parte), fado do medo da trovoada, fado do
 beijo, fado do pastor, fado do meu anjo.

 Fado da saudade (terceira parte), fado de Lisboa, fado da minha
 guitarra, fado do engeitado, fado da donzella e o espelho, fado do
 pastor.

 Fado do exercito (quarta parte), fado do ramalhete, fado da ultima
 vontade, fado das tesouras, fado dos ladrões, fado das guitarras.

 Fado do noivado (quinta parte), fado do meu desejo, fado do amor, fado
 do escravo, fado d’um baptisado, fado dos padeiros.

 Fado dos animaes (sexta parte), fado do que eu amo, fado do jantar,
 fado das cosinheiras, fado das torradinhas.

 Fado do engeitado (setima parte), fado dos dois esposos, fado da
 mulher, fado das eleições, fado do casamento, fado do bebado.

 Fado das aves (oitava parte), fado do leque, fado da desgraçada, fado
 do desafio, fados das fructas.

Não sei se n’esta mesma collecção ou n’outra, da mesma casa, anda a
lettra dos seguintes Fados: Do Marquez de Pombal, de Luiz de Camões,
da Portugueza, da Deusa Venus, Lisboeta, Bréjeiro, do Exercito,
Descriptivo, Tripeiro, da Maia, etc.

Estes dois ultimos já se vendiam (1884) na antiga _Livraria
Civilisação_, do Porto, rua de Santo Ildefonso.

É curioso que no texto de qualquer dos dois _Fados_ não haja nenhuma
composição que justifique o titulo.

Sob a designação de _Fadinho Tripeiro_ estão incluidos:

A joven seduzida, A phylloxera, Não posso deixar de amar, Poucos se
affastam do vicio; e sob a designação _Fadinho da Maia_: O mendigo, A
miseria, Não chores! As criadas de servir.

Vide _Fadinhos Portuenses_.


=Fados modernos=

Collecção de 99 cantigas sob o titulo--_A Guitarra d’ouro_.
Collaboração de Augusto Garraio, Luiz de Athaide, Luiz d’Araujo,
Joaquim dos Anjos, Armelindo Veiga, Baptista Diniz, A. Roldão, Carlos
Harrigton, Celestino da Silva, Coimbra Lobo, Dupont de Souza, Eduardo
Fernandes, Ernesto Varella, Feliciano Correa, J. Rodrigues Chaves,
Julio Dumont, J. I. d’Araujo, Penha Coutinho, Salomão Guerra e F.
Napoleão de Victoria.


=Figueira da Foz= (Fado da)

Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
28.

É o n.º 2, com o epitheto de «rigoroso», da 1.ª serie da casa Sassetti.

Tambem publicado pelas casas Engestrom e Lambertini, de Lisboa; e
Eduardo da Fonseca, do Porto.


=Fonte da Sereia= (Fado da)

É o n.º 6 da Collecção do estudante Candido de Viterbo.

Editora, a viuva Paula e Silva, Coimbra.

A Fonte da Sereia, que deu o titulo a este _Fado_, pertence á bella
Quinta de Santa Cruz em Coimbra.

Hoje construiu-se n’essa magnifica vivenda d’outr’ora um bairro novo,
mas crèmos que a _Fonte da Sereia_ subsiste de pé.


=Furnas= (Fado das)

Musica de Alberto de Moraes; lettra de Candido Guerreiro.

Este _Fado_ deve ser de inspiração michaelense, porque o valle das
Furnas é o sitio mais bellamente pittoresco da ilha de S. Miguel.


=Garoto= (Fado do)

Lettra e musica de D. Ernestina Leite.

D’este _Fado_, bem como do anterior, são editores Benjamin &
Filgueiras, Lisboa.


=Gato= (Fado do)

Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
63.

É o n.º 6 na 1.ª serie da casa Sassetti.

O mesmo que _Fado Taborda_. Vide _Taborda_.


=General Boum=

O n.º 14 na 2.ª serie da casa Sassetti.

_General Boum_ é o nome de uma das personagens da operetta _A
Gran-Duqueza de Gerolstein_.


=Graça= (Fado)

A justificação do titulo está no facto de ter sido dedicada esta
composição ao sr. Silva Graça, proprietario e director do jornal _O
Seculo_.


=Guitarra= (A) =d’Almaviva=

Canções da plebe (collecção de _Fados_, cantigas) por Adelino Veiga.
Porto, 2.ª edição, 1882.


=Hylaria= (Fado da)

Publicado pela casa Engestrom; Lisboa.


=Hylario= (Fado ao)

Veja-se o cap. V d’este livro, pag. 229.


=Hylario= (Fados do)

Veja-se o cap. V d’este livro, pag. 225.


=Jacinto= (Fado do)

Veja-se _Armada_.

Jacinto era o nome do empresario de uns vehiculos, que faziam carreiras
nas ruas de Lisboa. Como os _Ripperts_, a empresa resistiu por muito
tempo, e ainda mais do que elles, á concorrencia dos carros americanos.

Esta resistencia tornou-se celebre pela tenacidade, apesar da pesada
contribuição que a camara municipal impoz ao Jacinto.

Por fim, a sua empresa seguiu o exemplo dos _Ripperts_ e deixou-se
absorver pela companhia dos americanos, com a qual se fundiu.

Agora vieram os carros electricos e metteram os americanos n’um
chinelo, como estes tinham mettido os _Ripperts_ e os _Jacintos_.

É a lei do progresso: _Celi tuera cela_.


=Janotas= (Fado dos)

Auctor, J. R. Cordeiro.


=João Blach= (Fado)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=João de Deus= (Fado)

Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
73.


=João e Helena= (Fado)

É o n.º 21 na 2.ª serie da casa Sassetti.


=João Maria dos Anjos= (Fado)

Composto em 1868.


=Jorge da Silva= (Fado)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=José Ricardo= (Fado)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz. José Ricardo é o actor d’este nome.


=Lamparina= (Fado)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=Lapa dos poetas= (Fado da)

É o n.º 5 da Collecção do estudante Candido de Viterbo. Editora, a
viuva Paula e Silva.

A Lapa dos poetas é um logar celebre e pitoresco na quinta das Cannas
em Coimbra.


=Lazarista= (Fado)

Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
73.


=Leandro= (Fado)

Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
69.


=Leça= (Fado de)

Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
59.

É o n.º 16 na 2.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti.

Leça da Palmeira, certamente. Assim se chama a villa que se defronta
com a de Mattosinhos (arrabalde maritimo do Porto). O rio Leça,
separando as duas povoações, deu o nome a uma d’ellas.

Tambem nos suburbios do Porto ha Leça do Bailio, notavel ainda hoje
pelo seu templo gothico, que pertenceu á ordem militar de S. João de
Jerusalem.

O _Fado_ deve ser de Leça _da Palmeira_, terra de marinheiros e, por
conseguinte, de guitarras.


=Leixões= (Fado de)

Este _Fado_ é o n.º 35 na 3.ª serie da casa Sassetti.

Leixões, penedia distante meia legua da foz do Leça, deu o nome ao
porto artificial que procurou evitar os perigos da barra do Porto para
navios de maior tonelagem.

Tem um _Fado_, e já teve um poema (heroe-comico) _As viagens a
Leixões_, publicado em 1855 por Alexandre Garrett, irmão do visconde de
Almeida Garrett.


=Limoeiro= (Fado do)

Composição do Padre Borba.


=Linda-a-Velha= (Fado de)

Musica de Alberto de Moraes; lettra de Alfredo Portugal. Editores,
Benjamin & Filgueiras, Lisboa.

Linda-a-Velha (Ninha-a-Velha se dizia antigamente) é uma graciosa
povoação, que se ergue sobre um cabeço, na freguezia de Carnaxide,
dominando o largo panorama do Tejo.


=Liró= (Fadinho)

Vide _Fadinho liró._


=Lisbonense= (Fado)

Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
22.

É o n.º 5 na 1.ª serie da casa Sassetti.

Tambem publicado pelas casas Lambertini e Engestrom, de Lisboa; e
Eduardo da Fonseca, do Porto.

Foi seu auctor João Maria dos Anjos.


=Livro d’ouro do fadista=

Nova collecção de fados para cantar ao piano e á guitarra,
escriptos e recopilados por Faustino Antonio da Cunha. Porto, 1878,
Editora--Livraria portugueza e extrangeira.


=Luar= (Ao)

Fado muito facil para piano por Antoine de Ferrière. Editora, a
livraria Avellar Machado.

Lettra: duas quadras apenas.


=Luiz Petroline= (Fado)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=Machado Corrêa= (Fado)

Supponho que Machado Corrêa é o jornalista d’estes appellidos, que
collaborou na _Tarde, Dia e Novidades_, foi ponto de theatro em Lisboa,
auctor dramatico, e que tendo ido para o Pará, como secretario da
empresa Sousa Bastos, por lá se deixou ficar, passando depois para o
Rio de Janeiro. Ultimamente regressou a Lisboa.


=Madrugada= (Fado)

Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
27.


=Maggioly= (Fado)

Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
5.º.

Maggioly é o appellido de um dos nossos melhores tocadores de guitarra.

Veja pag. 63 d’este livro, nota.


=Marinheiro= (Fado do)

Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
68.


=Marinheiro= (Fado do)

Este Fado é differente do anterior.

Parece ser dos primeiros que se vulgarisaram em Lisboa, segundo informa
o velho guitarrista Ambrosio Fernandes Maia.

Elle não tem ideia de outro qualquer Fado mais antigo.


=Maritimo= (Fado)

É o n.º 9 na 1.ª serie da casa Sassetti.


=Meiguinho= (Fado)

Por Alberto Pimenta: Porto, 1901. Lettra de Campos Monteiro.


=Meu= (O) =enlevo=

Fado muito facil para piano por A. Dourade. Editora, livraria Avellar
Machado, Lisboa.

Lettra: duas quadras apenas.


=Monchique= (Fado de)

Lettra e musica de Alberto de Moraes.

Editores: Benjamin & Filgueiras, Lisboa.

Monchique é, como se sabe, a «Cintra» do Algarve.


=Mondego= (Fado)

Editor, Raul Venancio; rua do Ouro, Lisboa.


=Morenas= (Fado das)

Editado no Porto, para piano, por Eduardo da Fonseca.

Crêmos que foi recolhido na provincia.

Tem lettra, que não pudemos obter.


=Mouraria= (Fado da)

É o n.º 31 na 3.ª serie da casa Sassetti.

Tambem anda nas collecções das casas Lambertini e Engestrom, de Lisboa;
e da casa Eduardo da Fonseca, do Porto.

Mouraria é, como se sabe, um dos bairros fadistas de Lisboa.


=Mousão= (Fado)

O sr. Antonio Mouson (é assim que o seu appellido deve escrever-se)
nasceu no Porto e foi discipulo, em guitarra, de João Maria dos Anjos.

O seu nome inscreve-se entre os dos primeiros guitarristas portuenses,
que são, além d’elle, Chico Brandão e Guilherme de Campos.

Dizem-me d’aquella cidade, a seu respeito:

«É o mais fecundo auctor de fados, o mais sentimental na expressão e
no canto, fino rapaz de sala, fallando distinctamente o castelhano, o
francez e italiano, um dos melhores _vivants_ da _troupe_ bohemia.»

Outra informação acrescenta:

«De altura regular, robusto e valente, é, a par d’estas qualidades
physicas, um excellente rapaz, coração de ouro e alma educada para
comprehender e sentir todos os grandes affectos, todas as grandes
dores. O Porto inteiro o conhece e estima; tem muitos amigos e
admiradores.

«É frequentador dos theatros, bailes de mascaras e dos cafés,
especialmente do _Portuense_, onde se encontra todas as noites.

«Apesar de ter a cabeça quasi branca, não conta mais de 36 annos.

«Dedilhando a guitarra, entoa fados deliciosos, que as mulheres escutam
com enlevo.

«Já se tem feito ouvir nos nossos theatros e nas praias, portuguezas e
hespanholas, sempre com vivo enthusiasmo e ruidosos applausos.»


=Mulher= (Fado da)

Recolhido pelo sr Fernando Diniz, professor de guitarra.


=Muller fils= (Fado)

Tambem recolhido pelo sr. Fernando Diniz.


=Nacional= (Fado)

Composto por João Maria dos Anjos.

Vem incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_,
fasciculo 54.

É o n.º 12 na 1.ª serie da casa Sassetti.


=Nazareth= (Fado da)

Nazareth, praia de banhos na Extremadura, districto de Leiria. Terra
celebre pelo famoso milagre com que ali foi favorecido D. Fuas Roupinho.


=Noite serena= (Fado)

Na collecção da casa Engestrom, de Lisboa.


=Notas falsas= (Fado das)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra.


=Novo fado=

Tambem recolhido pelo sr. Fernando Diniz.


=Olinda= (Fado serenata)

De Jacinto Freire. Editor, Eduardo da Fonseca, Porto.

Lettra:

    Musa, dá-me inspirações
    Para o meu fado cantar,
    Que enterneçam corações
    E que os façam palpitar.

    Cordas da minha guitarra,
    Soltae uns tristes gemidos,
    Lembranças da mocidade,
    D’esses tempos tão queridos.

    As minhas tristes canções,
    Repassadas de amargura,
    São saudades desfolhadas
    Pelas noutes sem ventura.

    Teus olhos de côr tão negra,
    Brilhantes, meigos e lindos,
    Desejos accendem n’alma
    De beijos loucos, infindos.


=Palmyra Bastos= (Fado)

Pelo actor Roldão. Editora, a livraria Avellar Machado; Lisboa.

Este _Fado_ chamou-se assim em razão de ter sido cantado por aquella
actriz na revista _Tim-tim por tim-tim_.

Traz o retrato de Palmyra Bastos, a lettra em verso, e um artigo em
prosa assignado por Julio de Menezes.


=Parodia= (Fado da)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, na sua collecção.


=Pedro Rolla= (Fado)

Tambem recolhido pelo sr. Fernando Diniz.


=Pedrouços= (Fado de)

O sr. Simões Ratolla, excellente consultor sobre tudo que diz respeito
a Pedrouços, teve a gentileza de me fornecer a seguinte informação:

«O _Fado de Pedrouços_ não tem lettra. A musica é de Antonio e Eduardo
Castello Branco. Possuo um exemplar impresso, para piano, com 12
pautas, e com o n.º 982, que julgo ser de chapa.

«Nas caixas de musica, de 4 _Fados_, encontra-se um com a indicação:
_Fado de Pedrouços--Branco_.

«É o mesmo _Fado_; evidentemente só ha um _Fado de Pedrouços_.»


=Penedo da meditação= (Fado)

É o n.º 1 da Collecção do estudante Candido de Viterbo, publicada em
Coimbra.

Editora, a viuva Paula e Silva.

O «Penedo da Meditação», que fica nas proximidades de Cellas, é um dos
sitios mais pittorescos e mais decantados dos arrabaldes de Coimbra.


=Penedo da saudade= (Fado do)

É o n.º 4 da Collecção do estudante Candido de Viterbo.

Editora, a viuva Paula e Silva, Coimbra.

O «Penedo da Saudade» é uma das mais encantadoras paragens do formoso
aro que circumda a cidade de Coimbra. Sitio predilecto dos estudantes,
como o «Penedo da meditação». Diz a lenda que D. Pedro I frequentava
muito este logar, onde desafogava saudades da sua querida e desditosa
Ignez.


=Pimpão= (Fado do)

Para piano e canto. Lettra de _Pan Tarantula_. Musica de Arthur Davis
Tavares de Mello.

Na capa reproduz em miniatura o frontispicio de um numero do periodico
_O Pimpão_.

Duas quadras, das seis que constituem a lettra:

    O _Pimpão_ é rei da troça,
    O _Pimpão_ é rijo d’aço!
    O _Pimpão_ entra na choça,
    O _Pimpão_ entra no paço!

    Do _Pimpão_ nasce a Folia,
    Do _Pimpão_ Jubilo brota,
    Do _Pimpão_ surde a Alegria
    Do _Pimpão_ salta a Risota!

Este _Fado_ foi publicado pela empresa da folha humoristica _O Pimpão_.


=Pina= (Fado do)

Composição de Julio Neuparth.


=Pintasilgo= (Fado do)

Auctor, Rey Colaço. Veja-se este nome.


=Pisões= (Fado dos)

É o n.º 32 na 3.ª serie da casa Sassetti.


=Pitada= (Fado do)

É o n.º 19 na 2.ª serie da casa Sassetti.


=Plagiario= (Fado)

Por A. B. Ferreira Junior.

Editor, Eduardo da Fonseca; Porto.

O auctor intitulou assim a sua composição, porque n’ella imita outra de
Rey Colaço, _Um Fado_, que está incluido nos 5 a que fazemos referencia
no principio da noticia Rey Colaço.


=Pobre preto= (Fado do)

Na collecção da casa Engestrom, de Lisboa.


=Popular= (Fado)

Na 2.ª serie da casa Eduardo da Fonseca, do Porto.


=Porto= (Fado)

Encontro uma referencia a este _Fado_ no _Livro d’ouro do fadista_,
Porto, 1878.

Diz assim:

    Conhecendo o meu destino,
    Julgando-me um desgraçado,
    Dediquei-me d’alma e vida
    Ás raparigas do fado.

    Cantava ao som da guitarra
    (Quantas vezes já tão torto!)
    Um _fadinho_ muito usado,
    Chamado o _Fado do Porto_.


=Povo= (Fado do)

Na collecção da casa Engestrom, de Lisboa.


=Primavera=, A (Fado)

Editado no Porto, para piano, por Eduardo da Fonseca.

Vem acompanhado de lettra, que principia:

    De tarde, virei da selva,
        Sobre a relva,
    Os meus suspiros te dar;
    E de noite, na corrente,
        Mansamente,
    Mansamente te embalar!


=Primeiro Fado=

De Luiz Pinto d’Albuquerque. Offerecido a Rey Collaço. Publicado no
Porto, por Moreira de Sá.

Traz as seguintes quadras:

    O meu amor, que exquisito...
    Sendo rosa desmaiada,
    De cada vez que eu a fito
    Torna-se logo encarnada!

    Sei os segredos das rosas,
    Da branca e da encarnada.
    A encarnada anda d’amores;
    Da branca não digo nada...


=Quinta das lagrimas= (Fado da)

É o n.º 3 da Collecção do estudante Candido de Viterbo.

Editora, a viuva Paula e Silva, Coimbra.

A _Quinta das lagrimas_, em Coimbra, é uma propriedade celebre pela
sua belleza e pela lenda. Uma fonte, chamada _dos amores_, ainda hoje
mantem a tradição.

    Dos amores de Ignez, que ali passaram.
    Vêde que fresca fonte rega as flores,
    Que lagrimas são a agua, e o nome amores.


=Rabicha= (Fado da)

É o n.º 30 na 3.ª serie da casa Sassetti; Lisboa.

Rabicha é o logar que fica sob o arco grande do aqueducto das Aguas
Livres, em Lisboa. Ha ali hortas, retiros, muito frequentados por
fadistas e outra gente de vida airada. Não ha dia em que se não cante o
_Fado_ n’aquelle rincão votado ao prazer do canto e do copo.


=Recreio musical= (Fado do)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra.


=Rey Colaço= (Fados de)

Estão publicados 8. Cinco d’elles não teem nome especial. Os outros
intitulam-se: _Hylario_, _Corrido_ e _Pintasilgo_. Um d’aquelles cinco
é offerecido á sr.ᵃ duqueza de Palmella.

Alexandre Rei Colaço é um brilhante pianista, professor do
Conservatorio.

Os seus _Fados_ são verdadeiras rapsodias portuguezas, variações
artisticas sobre motivos populares.

Quasi todos são acompanhados de uma ou duas quadras colhidas na
tradição oral.

Lia-se no _Diario de Noticias_, de janeiro de 1904:

«N’uma linda edição feita por uma das primeiras casas editoras de
musica da Allemanha, acaba de ser posta á venda a encantadora e
popularissima collecção de fados do nosso eminente pianista e professor
Rey Colaço.

«A impressão é muito nitida e perfeita. A capa, para que tudo tenha
o sabor portuguez, é uma curiosa e magnifica reproducção a côres do
nosso lenço popular, o celebre lenço da estamparia do Bolhão, orlado
d’arabescos com caracter genuinamente oriental.

«A collecção comprehende oito fados--os que são propriedade do
compositor, porque o 2.º é do sr. Sassetti--entre esses fados ha o
«Choradinho», o «Corrido», o «Hylario», o «Pintasilgo» e esse «primeiro
fado» que tem corrido o paiz e que todos os amadores gostam de tocar, e
toda a gente gosta d’ouvir.

«Este «primeiro» fado foi levemente modificado n’um sentido mais
artistico e musical.

«A mencionar ainda a deliciosa «Canção das Serras», talvez a mais bella
pagina de Colaço, n’um rythmo originalissimo--o mesmo da «Canção do
Mondego»--digna de figurar ao lado das «Feuilles d’album» do Grieg.
Pediriamos ao delicadissimo compositor que nos desse mais d’estas
«Feuilles d’album», genero que elle, como ninguem, póde cultivar entre
nós com exito.

«Uma collecção que todos os «dilettantes» devem ter sobre a sua
estante.»


=Ribatejo= (Fado do)

Conheço muito bem a musica d’este _Fado_, que pela primeira vez ouvi em
1901. Não sei quem é o auctor. Tambem não sei se ha apenas a musica ou
se anda acompanhada de lettra especial.

Creio que a sua área de divulgação se circumscreve ás povoações
ribeirinhas mais proximas de Lisboa. Em Santarem não é conhecido, como
d’ali me diz o sr. João Arruda, redactor do _Correio da Extremadura_,
em carta que vou transcrever, porque n’ella se encontram algumas
rapidas informações que confirmam asserções minhas, expostas no texto
d’este livro.

Diz o sr. Arruda:

«Não se conhece nenhum fado do Ribatejo e quanto a _fados locaes_
diz-me um regente de musica muito distincto, que ha aqui, _que todos
nascem em Lisboa_. Por aqui temos o _verde-gaio_, _o balhariló_ e
outras cantigas.

«Tambem consultei o mestre da banda de caçadores 6, e um amador de
musica, que muitos annos dirigiu a Academia Bellini, e elles nada
conhecem, tendo aliás feito alguns fados _baseados no que existe_.»


=Ribeira Nova= (Fado da)

Na collecção da casa Lambertini.


=Rigoroso= (Fado)

O mesmo que _Fado corrido_. Vide _Corrido_. É o simples acompanhamento
para as trovas de qualquer _Fado_.

Palmeirim diz a respeito da Severa:

«O orgulho de se considerar a primeira da sua classe, de ouvir o seu
nome celebrado em todas as _banzas_, e os seus amores assoalhados em
todos os fados, «desde o _rigoroso_, que não consente variações»,
até ao mais artistico, em que a voz adormece, e acorda em requebros
languidos, tornavam-n’a surda á voz da consciencia».


=Robles= (Fado)

J. R. Robles, que foi 1.º sargento de cavallaria e agora é empregado da
Companhia dos Tabacos, em Lisboa, já vem mencionado a pag. 63 d’este
livro entre os melhores tocadores de guitarra.

Este Fado anda na 2.ª série da casa Eduardo da Fonseca, Porto, e foi
incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
57.

O seu auctor compol-o de 1879 a 1880. Estando por esse tempo em Evora,
ahi se generalisou o seu _Fado_. Em 1900, havendo tido baixa no
exercito, deu-o a rever em Lisboa a pessoas competentes, e depois o
publicou.

O _Fado Robles_, que algumas pessoas denominam _Artilheiro_, tambem é
popular no Porto, onde o auctor fez serviço militar até janeiro de 1891.


=Roldão= (Fado)

Este _Fado_ foi cantado pelo actor Roldão na peça _José João_ (parodia)
que se representou no theatro do Principe Real em Lisboa.

O auctor da peça, e, portanto, das coplas é o sr. Eduardo Fernandes
(_Esculapio_), antigo redactor do _Seculo_, hoje do _Diario_.

A musica e a lettra foram editadas pela Livraria Popular, de Francisco
Franco, travessa de S. Domingos, Lisboa.

O frontispicio é illustrado com dois retratos do actor Roldão e com uma
scena da peça.

Um dos retratos representa aquelle actor vestido de fadista, guitarra
em punho, tal como apparecia no palco.

Dizeres do frontispicio: Fado Roldão, cantado pelo auctor, etc.

Ora, como já dissemos em outro logar, este _Fado_ é, com leves
alterações, especialmente na 2.ª parte, a canção _Hija del
Guadalquivir_, que estava publicada desde 1894, no Porto, em o
_Cancioneiro de musicas populares_.

Não dizemos isto como censura, mas apenas para notar uma coincidencia
casual, que muitas vezes se tem dado na poesia e na musica.

O actor Jorge Roldão nasceu em 1859: foi musico de infantaria 16;
entrou para o theatro como executante na orchestra; depois passou a
ponto, e de ponto a actor. Trabalhou no Porto, nos theatros D. Affonso
e Carlos Alberto; em Lisboa tem trabalhado nos theatros da Rua dos
Condes, Principe Real, Trindade e Avenida.

Artista de merito secundario, é comtudo uma «utilidade».

Roldão cantava o «seu» _Fado_ em ré maior.

No folheto _Fados modernos_ vem a lettra de um _Fado para o Roldão_.


=Rosa de Vila= (Fado)

Composto pelo sr. Julio Neuparth expressamente para ser cantado pela
artista d’aquelle nome na festa de caridade realizada no Colyseu dos
Recreios, a 26 d’abril de 1904, em beneficio da classe dos vendedores
de jornaes de Lisboa, após a _gréve_ dos typographos.


=Rosas= (Fado das)

Pelo actor Roldão. Editora a livraria Avellar Machado; Lisboa.


=Ruas= (Fado das)

É o n.º 23 na 3.ª serie da casa Sassetti, de Lisboa.


=Salas= (Fado das)

Na collecção da casa Engestrom e da casa Sassetti, de Lisboa; e na de
Eduardo da Fonseca, Porto.


=Santo Thyrso= (Fado de)

Apenas existe a lettra, que recolhi no livro _Santo Thyrso de Riba
d’Ave_, e que foi composta por um pobre carpinteiro d’aquella villa,
Narciso Ferreira d’Araujo, o _Ferreirinha_, quando partiu para o
Brazil, onde falleceu.

Adaptava esta lettra a qualquer _Fado_ dos até então conhecidos.


=Saudade= (Fado)

Para piano, por Herminio dos Anjos. Homenagem ao inconfundivel poeta
das «Peninsulares». Editora, livraria Avellar Machado.

Traz no frontispicio o retrato de Simões Dias, e n’uma folha appensa
esta «silva de cantigas» do mesmo poeta, para serem cantadas com a
musica do _Fado_:

    O peixe vive nas aguas,
    Vive a flor entre abrolhos,
    Só eu não vivo um instante
    Longe da luz dos teus olhos.

    Cada vez que a tua falla
    Vem morrer nos meus ouvidos,
    De sobresalto e de gosto
    Perco de todo os sentidos.

    Tu és o raiar da aurora
    Que no puro azul divaga,
    Eu, frio sol que descora,
    E pouco a pouco se apaga.

    Saudades que me vão n’alma
    Ninguem as póde contar,
    São tantas como as estrellas,
    Como as areias do mar.

    Meu amor se andas perdido
    Sem saber quem te perdeu,
    Nos meus olhos tens a escada
    Por onde se sobe ao céu.

    Como a rosa desfolhada
    Vae boiando na corrente,
    O meu pensamento vôa
    Para ti constantemente.

    Se eu soubesse que te rias
    Quando eu suspiro e dou ais,
    Tirava os olhos da cara
    Para nunca te ver mais.

    Quando foi á despedida,
    Quando te apertava a mão,
    Dobrou o sino a finados,
    Morria o meu coração.

    Quando eu morrer vae á cova
    Sobre o meu corpo chorar,
    Que ao sentir que por mim chamas
    Hei de aos teus braços voltar.

    Não te faças tão esquiva,
    Não digas que me não queres,
    Que eu por mal de meus peccados
    Bem sei o que são mulheres.

    Se tu suspiras, suspira
    Cá dentro o meu coração;
    Se tu choras, tambem choro,
    Vê lá se te quero ou não.

    Mandei lêr a minha sina,
    E a sina me respondeu
    Que um triste fugir não póde
    Á sorte que Deus lhe deu.

    Sonhos d’amor e ventura
    Quando tornareis a vir?
    Só se fôr na outra vida
    Quando d’esta me partir.

    Se souberes que estou morto
    Não te ponhas a chorar,
    Mais vale acabar a vida
    Do que viver a penar.

    Teu corpo é feito de cêra,
    Tão tenrinho que mais não;
    Amor, quem t’o derretera
    Ao calor do coração!

    Teus olhos são mais escuros
    Do que a noite mais fechada,
    E apesar de tanto escuro
    Sem elles não vejo nada!


=Sebenta= (Fado da)

Composto por D. Laura Escrich e offerecido á Tuna academica de Coimbra,
em 1899, a proposito de se celebrar n’aquella cidade o centenario da
Sebenta, hilariante festa escolar promovida e realizada pelos alumnos
da Universidade.

A Sebenta é, como se sabe, a synopse, redigida por um estudante e
adquirida pelos outros, da prelecção feita pelo professor em cada
cadeira.

Tradição universitaria, tem resistido á troça dos estudantes e á
opposição de alguns lentes.

Em 1852 escrevia o dr. Adrião Forjaz, da faculdade de direito:

«Continuarão as _sebentas_? quer dizer continuará a trocar o maior
numero de alumnos juristas o indispensavel estudo dos seus compendios
e das obras magistraes, que os elucidam, pela tomada de cór d’uma
papeleta, que o agiota-alumno autographou á pressa dos apontamentos
tomados durante a exposição do professor? Receamos que a molestia não
diminua. Ajuda-a grande numero de empresarios, a preguiça que favorece
em muitos dos alumnos, e a falta talvez d’uma combinação e energica
decisão dos professores.»

Referindo-se ao prematuro fallecimento da auctora d’este _Fado_, dizia
a folha lisbonense, _O Dia_, no seu numero de 12 de novembro de 1902:

«Ha existencias affastadas e calmas, tão serenas que parecem ter
direito a que a desgraça as esqueça.

«A senhora que acaba de fallecer, loura, elegante e distincta, com
trinta e cinco annos apenas, tinha uma vida de grande simplicidade e
dedicação--iamos quasi a dizer d’heroismo.

«Só com sua mãe, uma senhora de altas virtudes e raro caracter,
trabalhava incessantemente, para que no seu lar houvesse o agasalho
sufficiente a uma senhora de cabellos brancos, que n’um momento via
partir-se-lhe dolorosamente o coração. A morte leva-lhe assim,
inesperadamente, a sua unica filha!

«A sr.ᵃ D. Laura Escrich, filha do sr. Frederico Alexandre Meiners,
allemão, ha muito tempo no Rio de Janeiro, vivia entregue ás suas
licções de pintura, em que era distinctissima, adorada pelas suas
discipulas. Compunha tambem valsas e musicas de grande harmonia e valor.

«Cinco dias bastaram para espesinhar e dispersar toda esta existencia
de serenidade e trabalho. Hontem ás 11 horas bruscamente morria.
Curvemo-nos perante a grande Dôr d’aquella que viu ao mesmo tempo
morrer-lhe nos braços a filha e com ella fenecerem-lhe as ultimas
esperanças de felicidade na terra.»


=Sebenta= (Fado da)

É a _serenatella_ do «_Auto da sebenta_», composta pelo estudante
Candido de Viterbo.

Veja-se o que dizemos a este respeito no capitulo V, quando tratamos
dos _Fados_ litterarios.


=Sello= (Fado do)

Referindo-se á romaria do Senhor da Serra, em Bellas, anno de 1902,
dizia o _Diario de Noticias_, de Lisboa:

«Dançou-se animadamente durante a tarde, em varios sitios da quinta,
não deixando tambem de ouvir-se um ou outro cantador de fado, que ao
som do «pianinho» largava a sua cantiga mais ou menos engraçada, como
a que segue:

    Eu não sei cantar o fado
    Pois que não tenho capello,
    E p’ra largar a piada
    Não quero pagar o sello.»

É possivel que o cantador enfiasse outras quadras allusivas ao mesmo
assumpto. Mas esta basta como prova de que o _sello_ já entrou alguma
vez nos dominios do _Fado_.


=Sem nome= (Fado)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=Sentimental= (Fado)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de
_Fados_.


=Sepulveda= (Fado do)

Sepulveda é o sr. Julio Cesar Affonso Sepulveda, despachante na
Alfandega de Lisboa, mais conhecido entre os rapazes pela abreviatura
_Veda_.

D’este _Fado_ fez ultimamente uma edição, impressa na Allemanha, o sr.
Raul Venancio, estabelecido em Lisboa na rua do Oiro.


=Serenata= (Fado)

Composto por Manuel Luiz Ferreira Tavares para a recita do curso do 5.º
anno theologico-juridico, 1900-1901.

Lettra de Nanzianceno de Vasconcellos:

    O rouxinol quando trina
    Escolhe a luz do luar,
    Mas a tua voz divina
    Canta á luz do teu olhar.

    Têm o som tão puro e lindo
    As fallas da tua bocca!...
    Parecem ’strellas cahindo
    Em chuva dourada e louca.

    Se Deus te pudesse ouvir
    Lá no ceu entre mil lumes,
    Deixava Deus de existir,
    Deus morria de ciumes!

    Têm o som tão puro e lindo, etc.

    Eu de mil vidas, nenhuma
    Te negava, minha huri!
    Mas mesmo tendo só uma
    Morro d’amores por ti.

    Têm o som tão puro e lindo, etc.


=Serenata= (Fado)

Vide _Olinda_.


=Severa= (Fado da)

Vide cap. IV, pag. 158.


=Sinhás= (Fadinho das)

É o n.º 36 na 3.ª serie da casa Sassetti, de Lisboa.


=Soffrimento= (Fado do)

Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
55.


=Sol e dó= (Fado)

Supponho que é edição da casa Sassetti.


=Syndicateiros= (Fado dos)

É o n.º 29 na 3.ª serie da casa Sassetti.


=Taborda= (Fado)

Vide _Gato_.


=Talvez te escreva= (Fado)

Da revista do anno, de Eduardo Schwalbach Lucci, intitulada _Nicles_.


=Tancos= (Fado de)

Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
70.

É o numero 7 na 1.ª serie da casa Sassetti.

Tancos, villa da Extremadura, concelho da Barquinha, onde Fontes
Pereira de Mello mandou construir em 1865 um campo de manobras.


=Theodolinda= (Fado)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz.


=Torrinha= (Fado da)

É o n.º 33 na 3.ª serie da casa Sassetti.

A antiga quinta da Torrinha, situada no casalinho do Carvoeiro a Valle
de Pereiro (alto da Avenida da Liberdade) em Lisboa, foi uma horta
muito frequentada por gente patusca, que ali ia merendar e ceiar n’uma
tasca.


=Trez horas= (Fado das)

Musica de Reynaldo Varella. Lettra:

    Pela calada da noite,
    Emquanto não surge a aurora,
    Que esta minh’alma se affoite,
    Suspira, guitarra, chora.

    Voga, barco, mansamente
    Pelas aguas prateadas.
    Leva este canto dolente
    Aos peitos das namoradas.

    Cada nota tão sentida
    Que a minha guitarra envia,
    É uma canção dolorida
    D’amor e melancolia.

    E estas canções eu trago-as
    Presas nas azas da brisa,
    Para espalhar sobre as aguas
    Emquanto o barco deslisa...

Este _Fado_ foi composto n’uma noite de patuscada, exactamente á hora
que lhe serve de titulo, e editado, no Porto, pela casa Eduardo da
Fonseca.


=Triste= (Fado)

Composição de Augusto Machado.


=Triste= (Fado)

Musica do professor de guitarra Julio Silva; lettra de Armando de
Araujo.

Cantou-se no sarau da imprensa realizado em 1902 no Colyseu dos
Recreios.

É dedicado á memoria do poeta portuense Antonio Nobre, cujo retrato, em
traje academico, orna a capa da musica.

    Oh! alvôr das madrugadas
    Já tenho saudades tuas,
    Do choro das guitarradas
    Gemendo o fado das ruas...

    ’Inda vem distante a aurora
    E á luz que se escôa triste
    Minha alma cantando, chóra
    Alguem que já não existe...

    Vae subindo oh! triste canto,
    --Nunca a tristeza te sóbre!
    Vae levar ao céu meu pranto,
    Pelo poeta Antonio Nobre...

    Pois no céu decerto anda
    Quem tamanha dôr cantou,
    Quem sabe se na demanda
    Da paz que não alcançou!

    A capa de seda escura,
    Na qual andavas envolto,
    Era a noite da tortura,
    Que não te deixava solto!...

    N’uma tristeza sem calma,
    O teu pensar exquisito,
    Com pedaços da tua alma,
    Deixou teu soffrer escripto...

    É um livro amargurado,
    ...Já não se escreve outro assim.
    --São prantos d’um desgraçado,
    --Uns prantos... quasi sem fim!

    N’essa magua que venero
    Quem de ti não teve dó!...
    Se tu fôste o auctor sincero
    Do livro chamado: _Só!_

    Em cada sinistro verso
    Teu olhar chóra, talvez...
    E que de pranto disperso
    No livro d’um portuguez!

    Quem essas paginas olha
    Assim te julgou na terra:
    --Um lyrio rôxo que esfólha,
    Na solidão d’uma serra!

    Tiveste um ribeiro d’agua
    Que manso beijou teu pé...
    --Refresco á febre da magua,
    --Imagem santa da Fé...

    E tu soffrias!... emquanto
    O ribeiro, a murmurar,
    Pedia pelo seu _Anto_,
    Padre-Nossos a rezar!

    E tanto, tanto soffreu
    Seu desgraçado menino,
    Que finalmente... morreu,
    D’aquelle mal, tão mofino!

    Oh! velhinha amargurada
    Por causa d’aquella dôr,
    Já rompeu a madrugada,
    Já socega o teu amor.

    Descança agora, velhinha,
    De quem elle tanto falla,
    Que toda a flôr se definha
    Após o aroma que exhala.

    O luar, seu companheiro
    Das confidencias d’amor,
    Foi com elle ao extrangeiro,
    Como o servo e o seu senhor!

    Mas, na volta de Pariz,
    Onde lhe escutou a voz,
    Saudades d’esse infeliz
    Veio gemer entre nós...

    E esta capa, irmã da tua,
    Vem acenar-te saudosa...
    Já quando o pranto da lua
    Em neve amortalha a rosa!


=Trovadores= (Fado dos)

Auctor, Avelino Baptista.


=Vaporosas= (Fado das)

Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra.


=Victor Hussla= (Fados de)

Victor Hussla nasceu em S. Petersburgo a 16 de outubro de 1857.
Veio para Lisboa em 1887 como director da Real Academia de Amadores
de Musica. Violinista distincto e professor bem orientado, prestou
importantes serviços artisticos áquella associação e a Lisboa.

A seu respeito escreve Ernesto Vieira no _Diccionario biographico dos
musicos portuguezes_:

«Como compositor produziu Hussla trabalhos de muito valor. De todos
o mais importante é a sua grande symphonia, obra vasta e trabalhada
com grande esmero no mais puro estylo allemão. De igual auctor é a
«Abertura», composição menos extensa mas do mesmo modo trabalhada.

«Não foram porém estas as suas producções que mais lisonjearam o
nosso ouvido meridional. Sobrelevaram-lhes no effeito as celebres
«Rapsodias portuguezas», em que os nossos cantos nacionaes tiveram pela
primeira vez a honra de ser luxuosamente revestidos de uma orchestração
primorosa e em alguns pontos verdadeiramente admiravel.»

Nas «Rapsodias» foram por elle comprehendidos alguns _Fados_.

Nomeado professor do Conservatorio em 1897, falleceu repentinamente,
indo a entrar para aquelle edificio, na manhã de 14 de novembro de 1899.


=Vida= (A) Fado

Composição de Julio Neuparth.


=Vimioso= (Fado)

Vide capitulo IV d’este livro, pag. 183.


=28= (Fado do)

Publicado no Porto, para piano, pela casa Eduardo da Fonseca.

Tem sido attribuido ao Hylario, como dissemos no cap. V, pag. 229.

Mas o seu auctor foi um rapaz cego que viveu em Braga e era protegido
do reverendo abbade de S. João do Souto, padre José do Egypto Vieira.

Este cego tinha no asylo o n.º 28, e toda a gente o conhecia mais pelo
numero que pelo nome.

D’ahi o titulo com que o seu _Fado_ se generalisou.


=Visconti= (Fado)

Visconti, um cançonetista de circo, veio a Lisboa, onde o rythmo das
suas canções comicas se tornou popular.

Esse rythmo é o que se chama _Fado Visconti_. (Está incluido na
collecção de _Fados_ da casa Eduardo da Fonseca, Porto.)

Lettra de algumas das canções:

    Hespanhol p’ra malaguenha,
    Portuguez p’r’o lindo fado.
    Já não ha nem póde haver
    Canto a estes comparado.

    Puz os pés na campa fria
    De quem na vida amei tanto.
    Uma voz ouvi dizer:
    Não me pises, ó tyranno.

    Se eu soubera que voando
    Alcançava o teu amor,
    Ia pedir á sopeira
    As azas... do assador.


=Zé povinho= (Fado do)

Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo
                                  72.


                                  FIM



                             NOTAS FINAES


Pag. 10

Ácerca da synonymia das palavras _Fado_ e _discurso_, esqueceu-nos
citar Max Muller, que diz: «_Fatum_, a fatalidade; significava
primitivamente o que tinha sido dito; e antes que a fatalidade se
tornasse uma potencia superior ao maior dos deuzes, esta palavra
significava o que tinha sido dito por Jupiter, e que o proprio Jupiter
não podia alterar.» _La science du langage_, traducção franceza.

N’estas poucas palavras fica bem assignalada não só a correlação
existente entre aquelles dois vocabulos, como tambem o caracter
fatalista, irremediavel, de _Fatum_, que nós bem propriamente
traduzimos por _Fado_ (discurso em verso, acompanhado de musica).


Pag. 18

Encontramos mais uma prova da não existencia do _Fado_ no seculo XVIII.

Vem no tomo XIV do _Theatro de Manuel de Figueiredo_:

«... a imperfeição d’alma, que eu padeço pela minha ignorancia, me
não deixou nunca esquecer da graça, que achei nos tocadores de viola,
e rebeca nos proprios lugares, que juntos ião á Penha, e ao Beato
nos Domingos, e dias Santos de tarde (ainda no tempo das espadas)
com a banda direita do capote lançada por cima do hombro esquerdo,
ficando-lhes as mãos fóra delle, e o cotovelo direito: as gentes
corrião atraz daquella repetida tonadilha da _fofa_, e do _fandango_,
como o rancho das galinhas atraz da feliz, que tem a lagartixa no bico».

Estas palavras são de Francisco Coelho de Figueiredo, editor e
commentador do _Theatro_ do irmão.

Francisco C. de Figueiredo nasceu em 1738 e morreu em 1822.

O tomo a que nos referimos sahiu em 1815.


Pag. 28

A expressão «Nascemos de um grupo de lusitanos» não importa mais que
uma vaga e tradicional referencia aos tempos anteriores á constituição
da nacionalidade portugueza.

Bem sabemos como Herculano se empenhou em negar qualquer especie de
unidade nacional entre os portuguezes e a tribu ou tribus de celtas
hespanhoes conhecidos pelo nome de lusitanos.

Mas tambem sabemos que o proprio Herculano reconheceu quanto seria
difficil vencer a força da tradição, «a crença nacional e quasi
popular» que nos dava como successores e representantes dos lusitanos.

Esta crença é alimentada até pelo titulo da grande epopea
portugueza--_Os Lusiadas_.

Escrevendo para o povo, encostamo-nos insensivelmente á formula
popular, salvaguardando, é claro, o respeito devido á formula erudita.


Pag. 63

O methodo de guitarra de Ambrosio Fernandes Maia teve a sua 1.ª edição
em 1877, e a 2.ª em 1897.

Este methodo é figurado por algarismos: e ao seu auctor parece ser o
mais facil que tem apparecido, segundo declara.

No prologo da 2.ª edição diz Fernandes Maia:

«A guitarra, esse instrumento de vozes tão melodiosas, que, como nenhum
outro, fere tão intimamente as fibras do coração fazendo-nos ouvir
os cantos, as canções mais populares de nossa terra, esse pequeno
instrumento, que traduz a alma do povo portuguez, jazeu longos annos
no mais completo abandono; a ella votaram os nossos antigos o mais
completo desprezo, e ai d’aquelles que se atrevessem a dizer «toco
guitarra».

«Durante annos viveu nas espeluncas mais ordinarias, e eram d’uma má
reputação, todos que dedilhavam as suas cordas.

«Destinos do acaso: o piano entrou nos cafés, elle, que nascera
na opulencia, e a guitarra sempre modesta, com os seus tons tão
melancholicos, com os seus gemidos, entrou triumphante nos salões da
nossa primeira sociedade!»


Pag. 238

O sr. Affonso Lopes Vieira, que ha pouco deixou os bancos da
Universidade, consagrou uma das suas poesias á psychologia do _Fado_.

Transcrevo algumas quadras:

    Fados de Portugal suspiros e ais,
    Fados que sois a nossa alma! Fados
    Que de tristes saudades me falais,
    Oh suspirados, oh amargurados!

    Nas cordas da viola enforca a Dor,
    Oh povo, e canta! É desafogar!...
    Canta o teu fado á terra, oh cavador!
    E o teu á onda, oh cavador do mar!

    Nas viellas do amor á noite passa
    O fado da miseria e humilhação.
    Oh vozes roucas, harpas da desgraça,
    Oh! versos côxos, cheios d’emoção!

    Cegos, cantais _o grande e horrivel crime_!
    E por aldeias, pelos povoados,
    Arrastais a lamuria onde se exprime
    A velha voz d’Homeros desgraçados!



                                INDICE


Capitulo   I--Origens do Fado                                     pag. 7
   »      II--Fadistas                                             »  43
   »     III--Os assumptos do Fado                                 »  78
   »      IV--A Severa e o Conde de Vimioso                        » 140
   »       V--Fados de nomenclatura--Fados
              litterarios                                          » 187
   »      VI--Bibliographia musical do Fado                        » 239
            --Notas finaes                                         » 299



                                Erratas


Pag. 18, linha 20, onde se lê «e de começar por» deve lêr-se «e começar
por».

Pag. 19, linha 26, onde se lê «par alguns escriptores», deve lêr-se
«por alguns escriptores».

Pag. 20, linha 21, onde se lê «a nossa sensibilidade doentia» deve
lêr-se «a nossa sensibilidade doentia».

Pag 116, onde se lê «Antonio Feleciano» deve lêr-se «Antonio Feliciano».

Pag. 13, linha 26, onde se lê «Copia textualmente», deve lêr-se «Copio
textualmente».

Pag. 135, onde se lê «Entrará logo Neto» deve lêr-se «Entrará logo o
Neto».

Mesma pagina; linha 28, onde se lê «serãos» deve lêr-se «serão».

Pag. 140, linha 18, onde se lê «ida», deve lêr-se «idea».

Pag. 142, linha 71, onde se lê «dedidgna», deve lêr-se «dedigna».

Pag. 151, linha 8, onde se lê «que» deve lêr-se «o que».

Pag. 154, nota, onde se lê «vocabulo» deve lêr-se «vocabulo».

Pag. 213, linha 26, onde se lê «moderamente» deve lêr-se «modernamente».

Pag. 238, linha 1.ª, onde se lê «que passaram por Coimbra:», deve
lêr-se «que passaram por Coimbra.».

Pag. 239, linha 4, onde se lê «m Portugal» deve lêr-se «em Portugal».

Pag. 258, linha 1.ª, onde se lê «Fado noucturno» deve lêr-se «Fado
nocturno».

Pag. 265, linha 14, onde se lê «Paula e Siva» deve lêr-se «Paula e
Silva».

Pag. 278, linha 7, onde se lê «a tradição.» deve lêr-se «a
tradição:».



                            LIVRARIA CENTRAL
                                   DE
                           GOMES DE CARVALHO

                         158--RUA DA PRATA-160
                                 LISBOA


Algumas obras de Alberto Pimentel

 =Sem passar a fronteira.=, 1 vol. 500

É uma serie de folhetins que, como o titulo indica, se referem só
a aspectos e factos da nossa terra. Alguns d’esses trechos são
interessantissimos, e dão bem a nota de serem vividos, e narrados em
hora em que uma grata despreoccupação mais facil e limpida torna a
sinceridade das almas.

 =Album de ensino universal.= Livro d’instrucção popular, 2.ª edição, 1
 vol. 500

 =Aventuras d’um pretendente pretendido=, romance, 1 vol. 500

 =Cantares.= Versos com uma carta--prologo de Thomaz Ribeiro, 1 vol. 500

 =Chronicas de viagem=, 1 vol. 300

 =Um conflicto na corte=, romance original, 2 vol. 1$000

 =O Descobrimento do Brasil=, romance original, 1 vol. 600

 =Flor de Myosotis=, romance original, 1 vol. 600

 =O Livro das flores=, (legendas da vida da rainha Santa Isabel) 1 vol.
 300

 =O Livro das lagrimas=, (legendas da vida de Santo Antonio de Lisboa)
 1 vol. 300

 =Portugal de cabelleira=, 1 vol. 500




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