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Title: Fábulas—folhas cahidas
Author: Almeida Garrett, João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett, Visconde de
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Fábulas—folhas cahidas" ***


                                 OBRAS

                                  DO

                           V. DE A. GARRETT.

                                 XVII.

                     (SEGUNDO DOS VERSOS.) VERSOS

                                  DO

                        V. DE ALMEIDA-GARRETT.

                                  II.

               FÁBULAS--FOLHAS CAHIDAS, SEGUNDA EDIÇÃO.

                                LISBOA

                         NA IMPRENSA NACIONAL

                                 1853.



                              A QUEM LER


No anno de 1828, em Londres, se publicou o primeiro volume dos versos
ou ‘poesias fugitivas’ do Sr. Garrett. Extinguiu-se em pouco tempo a
edição; mas o auctor, occupado de outros trabalhos e preoccupado de
mais serios cuidados, não tractou nunca de preparar a reimpressão que,
entre nacionaes e extrangeiros, pediam todos os collectores de suas
obras.

Até ao anno de 1841, não lhe foi possivel nem lançar os olhos áquelle
modesto volume que, sob o nome de LYRICA DE JOÃO MINIMO, tam popular
o tinha feito, e algumas de cujas peças ja tinham merecido ser
trasladadas nas linguas mais cultas da Europa.

N’esse anno, retirado a descançar no campo de grandes fadigas de corpo
e de espirito, deu emfim algumas horas de mais lazer a repassar as
composições de sua infancia litteraria, e a escolher as principaes das
que, em mais feita edade, lhe tinha arrancado a condescendencia com
amigos, ou a irresistivel inspiração de algum objecto ou circumstância
da vida que mais o impressionára.

Resmas e resmas de papel lhe vimos destruir e queimar ao fazer d’esta
escolha. E apezar do desapiedado apuramento, ainda ficou uma collecção
copiosa que, entre o ja impresso e o ainda manuscripto, dava materia
para bons quatro volumes.

Infileirou tudo por generos e datas,--algumas das quaes só estavam
na pouco exacta reminiscencia do auctor. Mas depois de tentados e
desprezados varios methodos, assentou porfim--que dos quatro volumes,
ficaria sendo o primeiro essa mesma LYRICA DE JOÃO MINIMO, apenas
alterada da primitiva edição de Londres em leves differenças de
collocação, e acaso additada com alguma composição juvenil que o
auctor desprezára, mas que reclamavam os seus apaixonados;--que o
segundo, sob o titulo de FLORES SEM FRUCTO, conteria o resto das
composições lyricas da sua primeira e segunda epocha;--que o terceiro
sería destinado ás FÁBULAS E CONTOS, e por appendice aos poucos sonetos
que não intregára ás chammas;--o quarto volume finalmente, com o titulo
de FOLHAS CAHIDAS, foi dedicado ás producções de edade mais madura e
que elle considerava como os seus ultimos versos.

D’estes quatro volumes assim detalhados, não se tractou todavia por
emquanto de dar ao prelo senão o segundo, as FLORES SEM FRUCTO, que
ainda assim só vieram a imprimir-se em 1845.

E nem a popularidade que obteve o livro, nem o remanso de maiores
lidas, que por então gosou o auctor, o poderam mover a pôr a última mão
a nenhum dos outros.

Sómente em principios de 1851 entrou na imprensa o primeiro volume,
isto é, a segunda edição da LYRICA DE JOÃO MINIMO, e o quarto, isto é,
as FOLHAS CAHIDAS.

Motivos bem notorios de serviço público vieram reclamar toda a
efficacia e attenção do nosso auctor; e os dois volumes lá ficaram
abandonados na imprensa, meio compostas e meio revistas as folhas.
Assim estiveram dois annos até principios do actual, 1853, em que
felizmente desimbaraçado e liberto, pôde outravez dar-se aos seus
queridos cuidados litterarios.

Publicou-se então a LYRICA e as FOLHAS CAHIDAS; aquella muito correcta
e avantajada á primeira edição; éstas cerceadas e mondadas pelo auctor,
que apenas ficou uma pequena brochura do que tinha sido um volume
regular.

Em poucos dias porêm desappareceram as FOLHAS;--levadas de bons e de
maus ventos... voaram.

E sendo reclamada pela opinião e pelas necessidades do commercio uma
segunda edição, resolveu-se o auctor a fazer da reimpressão d’esse
voluminho, e do inedito que era destinado ás Fábulas, sonetos, etc., um
só tomo, com o título de SEGUNDO VOLUME DOS PRIMEIROS E ULTIMOS VERSOS.

Para resummir d’este modo, era necessario porèm queimar ainda mais
sonetos e mais apologos. Assim se fez, sendo genero de occupação em
que muito parece comprazer-se o auctor.

Mas por tal modo, com estes dois volumes e com o das FLORES SEM FRUCTO,
está completa, em tres tomos regulares, a collecção das poesias menores
do Sr. Garrett: nome pelo qual sempre será mais conhecido o Visconde de
Almeida Garrett, a quem as dignidades politicas não elevam nunca acima
do que a si proprio se eleva por seu ingenho e estudo.

Detractores e inimigos gratuitos--porque não invejosos tambem?--podem
clamar que essas dignidades rebaixam o nome que não podem exaltar.

É um sophisma de calumnia, porventura admissivel como epigramma se,
republicano e demagogo, o auctor de Camões, de Gil-Vicente e de Fr.
Luiz de Sousa, houvesse alguma hora professado as hypocritas doutrinas
do nivelamento social, que tam poucos acclamam com sinceridade, e
menos ainda com perseverança. Mas a tribuna, a imprensa e o Conselho
o viram sustentar sempre com denodo e dedicação a causa da monarchia,
sustentá-la como inseparavel da causa da liberdade do povo, da qual é
não menos zeloso e strenuo defensor.

A verdade é que as distincções monarchicas tanto dão lustre ao merito e
o recebem d’elle, quanto se invilecem e prostituem lançadas á ignavia
ou ao demerito que não conseguem innobrecer.

O dia em que os reis comprehenderem bem este axioma, será o último das
aspirações demagogicas.

Voltemos porêm á historia da nossa collecção. Não ficou ella nem
rigorosamente chronologica nem perfeitamente systematica. Participa
de uma e de outra coisa, innevoada de um certo mysterio que muito por
acaso a involve, sem nenhuma prevenção ou pretenção da parte do auctor.

Na Lyrica de João Minimo, tal como no princípio d’este anno se
publicou, está a infancia poetica, toda a vida juvenil do homem de
lettras, do artista, do patriota sincero e innocente, do enthusiasta
da Liberdade que ainda não conhece, que ama com exaltação, que serve
com fervor, e pela qual sacrifica de bom grado a patria, o socêgo
doméstico, a fortuna, a saude e quanto os homens mais prezam. Ha n’essa
lyra uma corda que ja soa de amor, do amor apaixonado, ardente, cioso
que um dia abafará talvez as outras todas. Mas os gemidos soltos que
por agora lança, os vagos suspiros que balbucia mostram bem claro
que no coração do poeta dormem ainda as tempestades que porventura
lhe hãode agitar depois a vida. Para tudo o que não é a Patria e a
Liberdade, é tibio e froixo o seu canto, desgarrado e mal sentido.
Hade entrar muito fundo n’esse coração a pena ou o prazer, antes que
chegue a fazer vibrar a corda íntima que está silenciosa, distendida--e
apenas geme a espaços como harpa eolia pendente do ramo, que, agitada
por incerta brisa, suspira vaga e saudosa, sem a percutir ninguem,
por ninguem, por coisa nenhuma, e só movida de um indeterminado
presentimento do que hade ser, do que póde ser, do que talvez não seja
nunca.

Falla de amor o poeta... Sim, falla; e ha Délias e ha Lilias, e ha
flores e ha estrêllas, e ha bejos e ha suspiros, e ha todo esse estado
maior e menor de um exército de paixões que sai a conquistar o mundo
no princípio da vida de um rapaz cheio de alma, de fogo, de exuberante
energia e vehemencia de sangue. Mas esse exército é todo de parada,
fórma bem na revista--em travando peleja séria, hade fugir, porque é
boçal e não o anima nenhum sentimento verdadeiro e tenaz. Ve-se o poeta
atravez do amante: falso amor e falsa poesia! Quando um e outro são
verdade, não apparece senão o amante, não se ve senão a paixão, a arte
some-se, annulla-se deante d’ella: então vem a poesia do coração.

Não ha ainda d’essa poesia na LYRICA DE JOÃO MINIMO. A da alma sim. Nos
tres livros em que se divide a LYRICA estão as tres primeiras epochas
da existencia do mancebo. As impressões e aspirações da infancia que
desponta á puberdade, os instinctos da glória, do amor e do patriotismo
suspiram no primeiro livro, que se sente escripto no socêgo da casa
paterna á repousada sombra das faias e das larangeiras da sua ilha no
meio do Athlantico,[1] e logo depois ás margens classicas do Mondego,
nas horas vagas dos estudos superiores. O segundo livro é nova era para
o poeta e para o patriota. Alceu imberbe, tribuno de dezeseis annos,
levanta-se com a revolução, destitue todos os idolos velhos, e não
canta senão hymnos á liberdade. O profundo sentimento monarchico lá
resumbra todavia sempre dos mais exaltados cantos com que se insurge a
sua musa revolucionaria. Ve-se que, apezar de todo o impeto que leva
essa carreira, jamais hade precipitá-lo na anarchia. O irreconciliavel
inimigo dos despotas e dos hypocritas não hade ser nunca o amigo dos
demagogos, nem blasphemará jamais contra Deus e contra a religião em
nome da liberdade que adora como emanação do seio divino.

No terceiro livro ahi está elle repousando no lar paterno das primeiras
lidas públicas; ahi canta em suaves endeixas os mais puros affectos
da familia, a saudade dos que ja não vivem, o carinho dos que ainda o
abraçam. Mas a patria, essa patria que hade renegá-lo e proscrevê-lo
d’ahi a pouco, a liberdade que hade fugir bem depressa, vem tirá-lo do
seu momentaneo descanso. Os cinco annos da vida de Coimbra passaram,
o socêgo da casa materna a que regressou cança-o. Elle que sai outra
vez da sua ilha tranquilla para as tempestades da capital. A causa do
povo é trahida, abandonada... elle não a abandona; prefere o exilio,
e em terra extrangeira o ouvimos cantar as suas imprecações, as suas
saudades e a constancia indomita do auctor do CATÃO.

Tal é a historia da LYRICA DE JOÃO MINIMO, que termina em 1824.

Começa no anno seguinte a das FLORES SEM FRUCTO, collecção ja muito
menos volumosa, porque a superabundancia de seus espiritos poeticos tem
ja outras derivações. O CAMÕES, a DONA BRANCA, a ADOZINDA, absorvem
muito d’elle. Fórma-se com a experiencia e a observação na terra
extrangeira o talento do publicista, aperfeiçoa-se na patria com a
práctica; começam as luctas politicas de 1826, em que o redactor do
PORTUGUEZ e do CHRONISTA mostra que, se a natureza o fez poeta, o
estudo e o amor do seu paiz o fizeram orador eloquente e escriptor
politico abalisado.

Nova emigração, novos trabalhos litterarios e politicos, e novos cantos
lyricos tambem, em que ora geme, ora triumpha a liberdade.--Mas no
segundo dos dois livros das FLORES começam as paixões do coração a
tomar posse mais ampla e mais tenaz do poeta. Sería que as desillusões
da politica, os desappontamentos da vida pública, as deffecções da
amizade o levassem a refugiar-se nas chymeras d’esse outro paiz de
sonhos, em que o despertar não é todavia nem menos desanimado nem menos
triste?

Não sei: a vida de um poeta hade sempre ter capítulos mysteriosos,
transições inexplicaveis e inesperadas; a filiação de suas ideas e de
seus sentimentos é quasi sempre _cryptogamica_. O certo é que, nas
primeiras composições dramaticas do restaurador do nosso theatro, o
amor não existe. No CATÃO e na MEROPE só ha as paixões d’alma, o amor
da patria ou da familia; no GIL-VICENTE porêm ja o coração toma o
primeiro logar,--disputado ainda pela glória, pela paixão das lettras,
da arte--mas o primeiro.

N’esta segunda collecção lyrica do nosso auctor, basta a peça que
tem por titulo _As minhas asas_ para se ver que o homem público, o
philosopho, o poeta da glória e da liberdade pagou emfim o tardio e
pesado feudo de sua independencia vencida e subjugada. Até então as
homenagens ao suzerano eram meias de escarneo, eram um tributo de
condescendencia--de uma como elegante ironia! O estado de coisas é
outro agora.

As FOLHAS CAHIDAS continuam esse estado. Os seus dois livros (que na
primeira edição foram um só) visivelmente o mostram.

As FOLHAS CAHIDAS são o principal n’este segundo volume dos VERSOS,
que vem a ser o terceiro, porque entre elle e o primeiro estão as
FLORES SEM FRUCTO. As FÁBULAS e os SONETOS não são senão appendices
ou accessorios; e por suas datas e por seu genero pertencem mais á
primeira collecção de que acima fallámos, do que a ésta terceira de que
vamos occupar-nos.

Aqui os sentimentos patrioticos, o amor da glória, o enthusiasmo da
liberdade teem ainda saudosos ecchos na lyra do poeta. Mas a energia,
a vehemencia de suas cordas não vibra ja senão com outra paixão mais
ciosa e mais exclusiva. As Julias, as Délias, não se contentam ja
de inspirar, dominam absolutamente o coração do poeta, os hymnos, as
canções, as imprecações mesmas da sua lyra.

Que é de o Alceu que bramia liberdade, o Anacreonte que zombava com
o prazer, o Tyrteu que precedia as phalanges da Terceira aopé do
pendão azul e branco da joven Rainha dos exilados? Que é das elegias
suaves e melancholicas do auctor do Camões? Que é feito dos desgarres
semi-rabelaicos do poeta de Dona Branca, dos sarcasmos byronicos e
incredulos, dos surrisos mephistophelicos espalhados por essas VIAGENS
NA MINHA TERRA, pelo ARCO DE SANCT’ANNA, por tanto volume de prosas e
de versos?

Tudo isso acabou, porque acabaram provavelmente todas as decepções do
seu ânimo, e não ficou, em logar d’ellas, senão outra decepção maior
que ingana mais cega, e venda mais apertada.

Taes são as FOLHAS CAHIDAS, _última palavra_ até agora, mas que
não será a _derradeira_ do nosso poeta: affoitamente o confiâmos.
Confiâmo-lo de seu ingenho grande, de sua alma elevada e nobre,
traduzimo-lo da sua admiravel introducção ao pequeno volume que hoje
reproduzimos.

As FOLHAS CAHIDAS não são o fim, são a transição.

O que virá depois sabe-o Deus, sabe-o o destino mysterioso de uma
existencia á parte, que não tem lei nas regras, mas nas excepções da
humanidade.

O tempo o mostrará, porque uma vida, que tam longa parece por tam
cheia que tem sido, é ainda curta e môça bastante para nos deixar
aguardar socegadamente pelo futuro que esperâmos d’ella... e muito!


NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Em Angra, na ilha Terceira, capital dos Açores.



                           PRIMEIROS VERSOS.

                      FÁBULAS E CONTOS.--SONETOS.

Senti sempre que a lingua portugueza era para todo o genero de
composições. E o rebellar-se ella em algumas pareceu-me que era
mais inhabilidade de quem a conduzia do que defeito proprio seu.
Por honra d’ella, mais que por vaidade minha, tentei compor em tam
desvairados assumptos e generos como tenho feito. Hoje estou crente e
firme convencido de que a tudo serve, a todo stylo se presta. Nem me
persuadi mais d’isso por alguma coisa em que sahi bem de meus insaios,
do que pelas muitas em que falhei.

A singeleza de seu dizer, uma certa malicia popular e mordente de sua
innocencia saloia faz o dialecto portuguez eminentemente proprio para o
apologo e para o conto.

Está pouco trabalhado o genero entre nós em verso. Mas as fábulas dos
animaes, contadas em prosa pelas gentes do campo, teem tanta graça
de stylo como as de Esopo e de Pilpay; e as narrativas do Decameron
popular em que sempre figura o frade, a mulher do çapateiro, o marido
logrado, o amante umas vezes bem succedido em seus artificios, outras
colhido n’elles proprios e punido de sua audacia, não teem que invejar
a Lafontaine ou ao licencioso italiano que fez as delicias de nossos
gaiatos avós da renascença.

Quando, em bem criança, quiz tambem insaiar a minha penna n’este
genero, não adverti tanto no que agora escrevo e penso.

Fique pois o meu mau exemplo, fique a minha quéda por farol de aviso
aos que navegarem n’este rumo, paraque saibam que as imitações dos
extrangeiros são perigosas sempre, e quasi sempre infelizes quando se
não poem bem deante dos olhos os unicos typos verdadeiros, que são
a natureza, a indole da lingua, e os modos de dizer do povo em cujo
idioma se escreve.

Tambem comprehende a segunda parte destes meus ‘primeiros versos’
alguns sonetos, poucos. De centos que fiz, e que me fizeram fazer,
apenas deixei estes. Não são bons, e eu não gósto do genero, que
por indole propria é pretencioso e facticio. Mas confesso que hoje
tenho remorso da reacção que promovi contra o soneto. Tinha aomenos
restricções e difficuldades que não tem a sôlta liberdade das canções
descabelladas e plusquam romanticas, pelas quaes foi substituido;
na qual soltura cresceu descompassadamente a turma dos janisaros do
Parnaso, que levaram a anarchia poetica alêm de todas as raias do senso
commum.

Se nós invocaremos ainda o soneto e a Arcadia e a Academia, como os
povos, cançados e infastiados das orgias da liberdade desinfreada,
invocam a tyrannia, último e fatal remedio dos males presentes, que
lhes fazem esquecer os passados? Ochalá que não, porque a coisa era
muito semsabor e muito pedante. Mas ésta é tam piegas!

Da litteratura piegas nos livre Deus, sôbre todas as coisas.

Emfim, a historia do mundo não é senão uma serie de reacções e
contra-reacções. A da litteratura é o mesmo. O que unicamente fica
immutavel são os eternos principios da verdade, do gôsto, e da razão em
tudo.

Lisboa, Janeiro 1853.



                           FÁBULAS E CONTOS.

                              LIVRO UNICO

I.

INTRODUCÇÃO.

    Cahiram com a folha os meus prazeres;
    E as musas, caro Gomes,[2] que, outro tempo,
    Torrentes d’estro me esparziam n’alma,
          Até as mesmas musas
    Sem dó, sem compaixão desampararam
          O froixo amante inválido.
    Embalde as chamo, e as desmontadas cordas
          Da saudosa lyra
    Lhes peço aomenos que siquer me affinem.
          São bellas, como bellas, caprichosas:
          Não me admirou que fujam.

    Porêm, amigo, no celeste côro,
          Como por ca na terra,
    De milagre inda ás vezes se depara
          Com alma bemfazeja.
    Das nove irmans gentis a mais gaiata,
          Garrida e brincalhona,
    A galhofeira, magica Thalia,
          Rindo-se ás gargalhadas
    Da lamuria que fiz por ver fugi-las:
          --‘Deixa,’ me disse ‘és louco;
    Deixa, que ellas virão sem que as tu chames:
          É costume do sexo,
          Assim fazemos todas.
    E que lhes queres tu? que incantos achas
    Na macillenta, pallida Melpomene,
    Que, desde que houve em Grecia um tal Eschylo
          Até o dia d’hoje,
          Sempre lagrymijando
          Nos sécca, nos injoa
    E nos quebra os ouvidos com gemidos?...
    Sempre se anda a mattar e nunca morre!
          As outras--na verdade,
          Aqui muito em segredo,
    Éstas minhas irmans... Não é má lingua,
    Não é geito da _saia_... mas decerto
          Não sei esses poetas
    Porque tanto as incensam, tanto as buscam.
          Olha: o velho Philinto,
    Que tu, e os teus patricios--boa gente!--
    Tanto gabaram, applaudiram tanto,
          Sem lhe mattar a fome,
    Postoque a todas nós galanteava,
          Comtudo a do seu peito
          Foi a mana Polymnia.
    Nunca vi um namôro mais rançoso;
    Fizeram duzias de odes... duzias!--centos.
          Tantas e tantas foram,
          Que emfim o mano Apollo
          Ja de odes infastiado,
    Assim que o pobre velho deu á casca,
          Protestou, e protesta
    Não dar a mais ninguem o officio vago
          De Lyrico da casa.

    ‘Caliope, essa tolla impavezada,
    Que Homero, e o teu Camões, Virgilio e Tasso
          Tam mal acostumaram,
          Sempre de bico doce,
          Torce o nariz a tudo
    E diz que a ninguem mais quer dar cavaco;
          E até, se não soubesse
    Que um tal poeta lá da tua terra
    Que faz Orientes e baptiza Gamas,
    E a quem nós todas temos mortal osga,
    Fôra frade tambem... que ia ser freira.
          As mais é tudo o mesmo,
          São todas desdenhosas:
    Além d’isso têem lá os seus namoros,
          E não querem largá-los.

    ‘Eu ca não sou assim ... Porêm não penses,
          Por me ver rir com todos,
    Que a todos quero, que namóro a todos.
    Ingana-se commigo muita gente,
          Tenho inganado a muitos
    Que julgam conseguir os meus favores:
          Cahem como uns patinhos
          Nas peças que lhes armo.
    Cuidou que me pilhava aqui ha tempos
          Um tal cantor de _burros_,
          Macaco encyclopedico
          Que em tudo quer metter-se.
    Preguei-lhe um lôgro... oh este foi machucho:
    Vesti a minha môça da cozinha
          Que vocês lá no mundo
          Appellidam Chalaça,
    Que sempre anda mettida entre estudantes,
          Marujos e arreeiros,
    Vesti-a c’uma roupa do meu uso
          Ja rota e desbotada,
    E mandei-lh’a em meu nome ao tal poeta,
          Que a pillula ingoliu,
    E muito satisfeito da conquista,
          Por tal a deu aos parvos
    Que as sujas trovas, que os immundos versos
          Extasiados applaudem.

    ‘Quando eu tinha os meus dôze, e era donzella...
          --Que hoje, cre-me a verdade,
    Vai ca no Olympo o que lá vai na terra!
    Namorei-me de um Grego: oh! bello amante!
          Chamava-se Aristophanes:
          Dei-lhe, intreguei-lhe tudo
          --Como o teu Camões disse--
    O que deu para dar-se á natureza.
          Um Phrygio corcovado,
          Mas que tinha mil graças
    Que a corcova das costas lhe incubriam,
          Soube tambem vencer-me.
    Com estes dois gosei prazer tam doce,
          Tam deleitosas horas,
          Que os monumentos d’ellas
    Inda lá pela terra os mimos fazem
    De quantos sentem de meus dons o preço.

          ‘Quando no Sena ovante,
          Quando no Tejo e Tybre
          Se ergueram nossos templos
    Que a barbara ignorancia derrubára,
    Ao cantor do Lutrin, ao da Pucelle,
    Ao mago auctor do santarrão Tartufo,
          Ao teu do bento Hyssope,
    E a esse galhofeiro Italiano
          Que aos animaes deu falla,
    Dei-lhe os favores, franqueei-lhe os mimos
          Que a Ariosto, a Gil-Vicente,
    Que aos outros todos concedêra outrora.
          Se o que elles foram sabes,
          Quanto eu valho apprecia.
          Eu não sou como as manas,
    Rio de tudo, tudo rindo insino;
          E nas coisas mais sérias
          Acho, descubro o lado
    Em que o sal do epigramma incaixa a geito.
          Por mim da atroz affronta,
    Por mim da escravidão, por mim da inveja
          O ingenho se despica,
    E n’um só _trait d’esprit_, de eterno opprobrio,
          C’o sêllo do ridiculo,
    Marca indelevel na ignorancia imprime,
          Na presumpção, no orgulho,
    Toma’ e, dizendo, me intregou a lyra,
    ‘Toma, e conhece quanto podem risos
          Da magica Thalia.
          Fere-a, e, se os sons mal destros,
    Desafinados, rudes te sahirem,
          Começa n’isso mesmo
          A gosar minhas dadivas;
    Ri-te d’elles, de ti, ri-te da lyra,
          E de mim se quizeres.’

    Tal me fallou a minha bella deusa
          Que tantas gargalhadas,
    Nos dias folgasões de nosso tempo,
          Nos fez dar tantas vezes
          Quando na voz roufenha
    Do nosso mathematico Alvarenga.[3]
          Ás mãos cheias vertia
    Pilherias do Kai-Pira e Sganarello,[4]
          Do impulhado Avarento.
    Satisfeito da offerta, e mais que d’ella,
          Do longo e bom cavaco,
    --Cavaco que jejuo ha tanto tempo!
          Cavaco suspirado
    Com que me acenam ja vesperas sanctas
          Do tardio feriado!--
    Toquei, ou antes arranhei á toa
          Os versos que te mando.
    Ri-te se forem bons e se gostares,
    Ri-te se forem maus e te injoarem,
          Ri-te, ri-te, que o mundo
    Não se póde levar de outra maneira:
          Assim o insina a deusa.

Coimbra--1820.


NOTAS DE RODAPÉ:

[2] O Dr. Francisco Gomes da Silva, meu companheiro e amigo da
Universidade.

[3] Outro amigo da Universidade.

[4] Farças que representavamos no nosso theatro.



II.

PELO ZURRO O BURRO.

CONTO ACADEMICO.

    Naturam expellas
    Furca, tamen usque recurral.

    MORAT.


    Era uma vez: diz mestre Lafontaine,
    Que lh’o dissera Phedro seu amigo,
    Que lh’o dissera um grego corcovado...
    Pois tudo n’este mundo vai por dittos,
    Tudo se diz porque outros o disseram...
    E talvez que não fôsse Lafontaine,
    Mas foi outro que tal, que vale o mesmo:
    Um dia... mas o fio á minha historia
    Não o tórno a quebrar por coisa alguma;
    Poema que tem muitos episodios
    Nunca póde ser bom, nem bons ser elles:
    Diz padre Horacio ou outro tal como elle
    D’estes que intentam accanhar o genio
    Com leis servis por elles arranjadas
    Que, segundo a moderna guapa eschola,
    As não póde soffrer de taes birbantes.
    Um dia pois o pae d’homens e numes,
    Como eu ia contando aos meus leitores...
    --Se é que a sorte, que os nega a bons poetas,
    M’os deparar a mim, chulo trovista--
    A rogos, mas de quem ja me não lembra,
    Asno felpudo de orelhões cahidos
    Quiz transformar em fervido ginete;
    E ao bom Mercurio, seu fiel ministro,
    Manda que o longo pêllo lhe tosquie
    E um bom naco cerceie das orelhas.

    Era grande o burrico, nedeo e gordo,
    E por milagre do supremo Jove,
    Que sempre faz como este bons milagres,
    Ei-lo desimpennado e mui lampeiro,
    Qual andaluz corcel ou egua arabia,
    A par d’outros corceis se vai trotando.
    O povo cavallar na fórma nova
    Não reconhece a burrical maranha.
    Como elles folgazão retouça e pulla,
    Ladeia, faz corcovos, trava o passo,
    Emfim parece--Tanto podem numes
    E tal é o podêr de um bom milagre!--
    Cavallo mestre e feito em picaria.
    --Qual rustico peão de bronca aldea
    De tamancos nos pés, no sacco a broa,
    Que vem para imbarcar lá da provincia,
    E para um tio, que é senhor d’ingenho,
    Ricasso em pretos, em arroz, mellaço,
    Ingoiado apprendiz vai ser caixeiro:
    Morre-lhe o tio, eis o rapaz n’um sino,
    Vende pretos e pretas e mellaço,
    E vem, Cresso de cocos e patacas,
    Metter toda Lisboa n’um chinello;
    Ja por boas, luzentes amarellas
    Serodeo compra fidalguesco fôro...
    D’antes--que hoje a visita da saude,
    Em cheirando a caturra, a bordo o prende,
    E é ja barão quando põe pé em terra.
    Ei-lo que alteia os hombros incolhidos,
    Intufa em vento as bochechudas belfas,
    Impina a pansa, ingrossa a voz pausada,
    E no tropel dos nobres involvido,
    Se o não conheces, crêra-lo provindo
    Dos que nos velhos pergaminhos vivem.
    Tal ja desorelhado e uffano o burro
    Entre altivos ginetes campeava.
    Mas, oh fado infeliz, mesquinha sorte!
    Quando entre os novos ledos companheiros
    Se vai trotando com pimpão meneio,
    Ei-lo depara com villan jumenta
    De hirsuta felpa e de costado esguio,
    Que os fios corta d’alma a quem a via,
    Como bem diz Latino-luso vate
    De mui gaiata e festival memória.
    Subito esquece o recem-nobre estado,
    Lembram-lhe antigos, burricaes requebros
    E o tom gallanteador de asnal namôro:
    Estira amante o beijador focinho,
    E em notas de invejar por um Lablache,
    Psalmeia airoso, compassado orneio,
    Deixa os amigos e a azzurrar se fica!

    Ora pois, como fez o senhor Jove,
    Fez certo gran’senhor de lettras gordas
    E protector das magras.--Foi milagre
    Que pela intercessão foi operado
    De uma a que chamam deusa da Sandice,
    De outra Impostura e de outra Pedantice.

    Começa o caso c’o outro parecido.

    Havia em certa terra muito longe,
    Lá nas pontas dos pés d’este hemispherio,
    Que dizem fôra outr’ora povoada
    Por certo beberrão feitor de Baccho,
    Havia uma familia de animalculos,
    Zoophytos, e quasi mycroscopicos,
    Aos quaes Lineu, que achou nomes a tudo,
    Nunca deu nome, nem especie ou genero,
    Nem eu lh’o sei tambem, só sei que arrotam
    Textos, medalhas, chymicas rançosas,
    Que trazem n’algibeira um compassinho,
    Muito accanhado, curto e pequenino,
    Talhado ao molde dos miollos d’elles,
    Com que querem medir todo este mundo.
    D’estes pois--e aqui vai o gran’milagre--
    Burros na fórma, na sciencia burros,
    Mas burros mais que tudo na cacholla,
    Quiz o tal gran’senhor citado acima
    Fazer--ó musa o quê?--Dize, não temas,
    Não fujas, dize e vai-te.--‘Uma académia’
    Disse a musa e safou-se ás gargalhadas.
    Mas que académia!--Oh! venham as brilhantes
    De Londres, de Paris, de Petersburgo
    Beber aqui sciencia não sabida
    De assopradas, pomposas ninharias.
    Que producções, que producções! Oh quanto
    Quanto seria mais se um deus maligno,
    Inimigo dos guapos academicos,
    Das tres que Deus nos deu potencias d’alma
    Lhes não saccasse duas á surrelfa,
    Deixando só memorias e memorias...
    Quanto sería mais, quanto fulgira
    Em gordos, grossos, grandes calhamaços
    A portugueza, majestosa lingua,
    Se os novos sabios, no comêço á emprêsa,
    A antigas manhas não perdendo o affinco,
    Não incontrassem por desgraça nossa
    C’um perfido _azzurrar_--zurrar malditto!...
    Ficaram no azzurrar sempre zurrando.

Coimbra--1818.



III.

AMOR E VAIDADE.

FÁBULA.


    Ja mais veloz corria o espaço usado
          Que as horas marca ao dia
          O deus que atrás de Daphne
    --Infructuoso trabalho!--dera ás gambias;
    E aos braços d’Amphitrite ia mais cedo
    Dos trabalhos da luz gosar nas trevas
          Desejado descanço.
    Iam seccando pelo prado as hervas,
    E o verde-escuro dos frondosos montes
          Amarello cahia;
    Sentado aopé da magustal[5] fogueira,
          Vermelho e rubicundo
    O bemdito e louvado San’ Martinho,
          --Que a cega antiguidade,
    Por não tomar a bulla da cruzada,
    Nem jejuar aos dias de jejum,
    Baccho chamava em sua escandalosa
          E misera ignorancia--
    Bastas fazia navegar, nos máres
          Da barriga sanctissima,
          As puchantes castanhas;
    Banhos e quintas ao socêgo antigo
          Despovoados tornavam;
    Voava a folha, sibilava o vento,
    E em fim, sem metaphoricas periphrases,
          Era ja meio outomno.
    Amor, Cupido, ou Ero, ou qual mais gostem
          Dar-lhe baptismo ou chrisma,
          Comtanto que não chegue
          A tanto o desafôro
    Que ousem--como eu ouvi, por meus peccados,
          Co’estes que a terra um dia
          Ou mar tem de comer--
    Por louca affectação de Anglo-mania,
          (O que não farão modas!)
    Chamar-lhe em Portuguez... chamar-lhe _Love_!
          Amor pois ou Cupido,
    --Que assim nossos avos sempre disseram
          Em tempos venturosos
    Que tudo se chamava por seu nome,
          Que ás bellas se dizia
    Em Portuguez sincero e sem malicia
    O que hoje é fôrça rebuçar no manto
          De alegoria equivoca--
    Amor, do rebulicio da cidade,
          Do barulho infastiado,
    Farto ja de frexar c’os aureos tiros
          Os corações tam gastos,
    Usados, velhos, estropiados, frouxos
          Da gente que a povoa,
    Para o campo fugiu d’onde ella foge.
          Lá nos singelos bosques,
          Nas simplices cabanas
    Singelos corações, simplices almas
          Espera achar ainda
          Em Daphnis e Amaryllis.

    Por um ameno solitario valle,
    Em seus projectos imbebido o numen,
    Caminhava... eis da incosta d’um outeiro
    Ve descendo gentil, esbelta dama
          Que bem, no airoso infeite,
          No perluxo das modas,
    Conheceu que não era habitadora
          Da rustica espessura.
    Fugi-la quer; mas sentimento occulto,
          Que entre nós ca na terra
          Se diz curiosidade,
    --Não sei como no ceo lhe chamam numes!--
          Sentimento imperioso
    No sexo lindo que nos doira a vida...
    --Que a doira se gosar sabemos d’elle,
          Que aos parvos a invenena--
    Este o reteve, suspendeu-lhe os passos.
          Quem será? Quer sabê-lo.
    Ei-los junctos; e Amor que á bella dama
          Cortezmente sauda:
    --‘No campo ainda e só, quando á cidade
    Apressurada corre toda a gente!
    Tam delicada, tam formosa dama
          Da quadra desabrida
          Os insultos não teme?
    Foge acaso o prazer da sociedade,
          E n’estas mudas selvas
    Vem porventura, desgraçada amante,
          Chorar na soledade?’

    Não gostou do cortejo e cumprimento
    A nympha bella, desdenhosa e dengue;
    Offendida que o nome lhe ignorassem,
          Orgulhosa responde:
    --‘Conhece-me o universo; em toda a parte
          Templos, altares tenho;
    Domino os corações, govérno as almas,
    Sou uma deusa, e chamo-me Vaidade.
    Por mim co’a morte, c’os revezes lucta
          O guerreiro no campo;
    E ante o espelho traidor consomme a vida
          A belleza que aos annos se não rende:
    Por mim o litterato sôbre os livros
          Curva a frente abrazeada;
    Por mim nos gestos, no fallar se estuda
          O adamado peralta;
    Por mim vivem contentes satisfeitos
    Os que menos razão têem de viverem;
    E o mago meu podêr se estende a tanto,
    Que entro no seio mesmo aos que me offendem,
          Desprezam e injuriam.
    Por meu influxo, n’esse proprio escripto
          Em que me insulta o sabio,
    Corrige e apura o sabio o stylo, a penna,
          Aos louvores armando.
    Eu as suberbas, elevadas cupulas
          Ergo de vãos palacios;
    E até na estancia gellida da morte,
          Nas mentirosas lapidas
          Lavro pomposas lettras
    Que a inganado porvir levam memorias
    De parvos, de maus reis, sanctões Tartufos,
          De tonsuradas bêstas.
    Eu em certa famosa academia
          As charamellas tanjo,
          As conclusões defendo,
    Em vandalo Latim peroro ás turbas,
          Tufo a brilhante borla
    Com que as caveiras jumentaes adórno.
    Emfim até d’amor perturbo o imperio:
          Por mim, por meus auspicios,
    A parvoa chusma dos galans mais parvos,
          Dos fofos petimestres
    Ja do sexo gentil não quer favores:
    Indiff’rentes ao gôso e á ventura,
    Basta que o mundo os tenha por felizes...
    Por mim a dama desdenhosa e bella
          Ja não procura amores,
    Nem de Venus suavissimos deleites,
    Mas o gaudio maior, mais lisongeiro
          De que os outros a creiam
    Cercada de servis adoradores,
          De humildosos escravos’...

    Ia por diante; mas o deus zangado,
          Furioso a interrompe:
    --‘Basta; o numen d’amor sou eu: não entra
          Tam facil em meu reino
    Teu sacrilego pé: sobejas vezes
    De muitos corações tenho extirpado
          Teu petulante vício.
    Em vão esse Hymeneo, que deus se chama
          E egual amim se inculca.
    Ousa pleitear commigo:
    Os nós lhe quebro que appellida sanctos,
          E em seu templo introduzo
          --Embora a testa doia
          Aos miseros maridos--
    Quem me apraz, quem me segue, e a quem eu quero.
    Por mim se eguallam desvairadas sortes,
    Que as baixas condições uno ás mais altas.
          Lidia, a orgulhosa Lidia
    Que a ladaínha dos avós impurra
          A todo o instante e a todos,
    Lidia que nunca ri... c’um tiro as pompas
    E as sombras dos avós lhe desfiz n’alma:
          Puni-a, fi-la escrava,
    Fi-la escrava... e de quem!... do seu lacaio.
    Togas, aureos bastões, borlas, espadas,
    Mittras, coroas, toucas e capuzes
    Ao meu imperio tudo está sujeito.’

    Desdenhosa e surrindo ouviu a deusa,
    E em submissa ironia lhe responde:
    --‘Pois bem: assim será; não valho nada
          No coração das bellas.
    Mas expliquem sem mim seu vário peito;
    Isso que o mundo appellidou capricho,
          Que em sua alma domina,
    Dize-me o que é? será sem causa o effeito?
    Suas obras tam variaveis, tam confusas,
          Com que os amantes pasmam,
    Não as deciphro eu só, de mim não partem?’

    Esquentou-se a questão: denovo os deuses
    Pro e contra razões allegam, mostram.
    É cabeçudo Amor, ella teimosa...
          Não acabavam nunca.
          Ficariam na mesma,
    Se o meio de findar contendas tantas
          Não acordasse á deusa:
    --‘Prescindamos’ clamou ‘de vans palavras,
          Argumentos deixemos;
    Vamos a factos, e de nossas armas
          Façamos experiencia.’

    Sahia a ponto do vizinho bosque
          Pastorella innocente:
    Alma inda nova, coração ingenuo,
          No simples do vestido,
    No mal composto dos cabellos louros,
          De sobejo mostrava:
    Era toda ao pintar para a exp’riencia.
    Consentem ambos em provar, na bella
          E timida pastora,
          O podêr de suas armas.
    Jurou Amor de dar-se por vencido
          Se de seus magos tiros
    Podésse defendê-la a Vaidade.

    Com lisonjeiro, placido semblante
          E com doces palavras,
    Tomando-a pela mão, a affaga a deusa;
    Pungente frexa Amor no arco imbebe,
          E mostrando-lhe a um tempo
    Joven pastor que dera inveja a Páris,
          O tiro lhe dispara.
    Voa a setta fatal... mas no momento
          Em que lhe toca o peito,
    Subito a deusa aos olhos lhe apresenta
    No mesmo instante crystallino espelho...
          Pasma extasiada e fixa
          A simplice donzella,
    O semblante gentil contempla immovel;
    Nem um só volver d’olhos para o bello
          Mancebo lhe escapou.

    Sorriu-se a deusa; Amor de invergonhado,
          De corrido fugiu.

Coimbra--1818.


NOTAS DE RODAPÉ:

[5] Magusto, no dialecto da minha provincia, é a fogueira em que se
assam as castanhas nos dias marcados pelo ritual minhoto.



IV.

ESOPO E O BURRO.

FÁBULA.


                      A. TH. DA SILVA QUINTANILHA.

          Foi grande tempo, amigo,
          Aquelle tempo antigo:
    Eram maiores peras e mellões...
          Pois uma melancia?
    Por essa casa dentro não cabia.
    Bem o mostram as sábias conclusões
    Do famoso Gil-Braz de Santilhana:
          Guardadas proporções,
          Se a conta não ingana,
          Certamente sería
    A maçan com que a Adão Eva inganou,
    Maior do que uma abobora-menina:
          E então ja bem se atina
          Como ella lhe incalhou
    No gargallo do pae da humanidade;
          Cuja enorme hombridade,
    Segundo o mesmo cálculo constante,
    Devia ser maior que a d’um gigante.

    N’esse tempo feliz da carochinha,
    Em que pato e peru, porco e gallinha,
    Burros e burras--e o rhynoceronte--
    Cabreavam, ahi por esse monte,
          Com toda a mais canalha
          Que era da sua egualha,
    Toda essa corja dizem que fallava,
    Como nós, na sua lingua-mistiforio.
    Não sei se Deus fez bem no seu decreto
    Que a mercê lhe tirou do fallatorio;
    Pois, segundo mui douto me insinava
    Meu mestre José-Vaz, homem discreto
          E de saber profundo,
    Em toda a sociedade d’este mundo
          Por fôrça hade reger
    O famoso _direito de accrescer_.
    Accresceu para nós, tristes humanos,
          Toda a loquacidade
    De quantos bicharrões, bichos, bichanos
    D’este universo á grande sociedade
          Veio a perdas e damnos:
    E assim vemos fallar moços e môças,
    Velhos e velhas, sabios e tarellos,
    Com vozes finas e com vozes grossas,
    O gentio, o christão, moiro e judeu,
          Por quantos cotovellos
    Deus e o _direito de accrescer_ lhes deu.

    N’esse tempo feliz então havia
          Em Grecia um corcovado
    Que de todo o animal, ave ou pescado
    Intendia e fallava a algaravia.
    Muitas ja tinha em Grego traduzido
          Das famosas comedias,
          Altisonas tragedias,
    Entremezes chistosos e ingraçados,
          A que tinha assistido,
    Dos bichassos auctores mais fallados.
          Um dia passeando
          Por juncto de um ribeiro,
    --Talvez algum dialogo pilhando
    De bichitos de couve ou formigueiro--
          Eis-ahi senão quando
          Direito a elle em frente
    Orelhudo jumento vem trotando;
    E depois de o saudar mui cortezmente
          Com uma cavatina
    Em notas que nem ja Lablache affina,
          Findado o ritornello,
          Assim o nosso burro,
          Em sua lingua asinina
          De mui pullido zurro,
          Ao corcunda fallou,
          Quero dizer--orneou:
    --‘Tenho um favor que te pedir, Esopo:
          No apologo primeiro
    Que em lingua traduzires da tua gente,
          Não me faças tam zôpo
          Como, useiro e veseiro,
          Fazes constantemente.
    Em meus discursos mette alguma graça
    E pilherias com sal e com finura,
    Que eu, a zurrar, sou forte na chalaça.’

    O bom do Esopo olhou para a figura
          Do elegante orelhudo,
          E com tam destampada,
          Tremenda gargalhada
    Lhe respondeu ao animal felpudo,
    Que elle, de orelha murcha e mui trombudo,
          Se foi sem dizer nada.

    Do sincero de Esopo quam diff’rentes
          Andam certos auctores
    Que altisonantes fallas farfalhudas
    Imprestam a patetas gran’senhores,
          Excelsos presidentes
    De pedantes reaes academias,
          Illustres senadores
          Que as cachollas vazias
    Inchados ornam de compradas flores!
    Quantos ha ahi garraios descarados
    Que vão pimpar, sem pejo, pelos pulpitos
          Com os sermões espurios
    Que aos padres mestres da ordem são furtados!
    Quantos vates servís, lamosos gansos
    Que, em vis dedicatorias campanudas,
          De podres versos ranços,
    Na linguagem da Phenix-renascida,
          Vão dar ethica vida
          A Zenobias barbudas;
          E a Mecenas palhaças
    De sabichões da Grecia dão fumaças!

    Mas Esopo ficou qual d’antes era,
          E o burro, burro estreme;
    Mas aos nossos Mecenas sécca e treme
          Na frente o loiro, a hera
          Com que venaes poetas
    Lhes coroaram as testas de patetas,
          Em trovas semsabôres;
    Mas os nossos modernos escriptores
          Ficam asnos sem sizo
    Para os homens de bem e de juizo.

Coimbra--1820.



V.

O MENINO E A COBRA.


    C’uma cobra doméstica folgava
          Criança innocentinha,
    E--‘Meu bicho’ dizia a criancinha
    ‘Comtigo tam seguro eu não brincava
    Se primeiro, o veneno refalsado
          Não te houvessem tirado.
    Que vós sois muito más, muito ingratonas,
          Minhas serpentezonas.
    Oh! nunca a tal historia me esqueceu
    D’aquelle homem que a cobra achou na rua
          --Talvez fôsse avó tua--
          E tanto se doeu
    De a ver toda de frio retransida.
          Que no seio a metteu
          E comsigo a aqueceu.
    Que fez a bicha mal-agradecida?
          Apenas se recobra
          A traidora da cobra
          Vai, e zaz!--e mordeu
    O pobre homem, que logo da ferida
          Venenosa morreu.’

    --‘Bem parciaes’ responde-lhe a serpente
          ‘São as vossas historias;
    Recontam-nos o caso mui diff’rente
          Lá as nossas memorias.
    O teu homem, que tens por charidoso,
    Creu realmente a cobra ja finada,
          E foi, por cubiçoso
    Da pelle, que era linda e mosqueada.
    Que o teu santinho d’home’ a quiz salvar:
          Era para a esfollar.’

    --‘Vai-te’ responde em cholera o menino
          ‘Vai-te, bicho mofino:
          Todo o ingrato é ladino
          Para se desculpar,
    E ao seu bemfeitor calumniar.’

    O pae da criancinha, mui contente.
    Toda ésta conversa ouvindo esteve;
    E--‘Pois, meu filho’ disse ‘honradamente
          Julgaste como deve
          Todo homem de bem:
    Mas é preciso em tudo ser prudente,
          E injusto com ninguem.
    Ha casos de tam feia ingratidão.
            Que a razão
            Não se atreve
    A crê-los, sem exame, assim de leve.
    Raras vezes a ingratos obrigaram
    Os que são verdadeiros bemfeitores;
    Mas o mundo, meu filho, por desgraça,
    Harto está cheio de ruins Mecenas,
          De falsos protectores,
          Que a detestavel raça
    Dos ingratos no mundo propagaram.
          Arrastados favores,
          Inda menos baratos
    Que interesseiras sordidas onzenas,
    O que hãode produzir, senão ingratos?’

Coimbra--1821.



VI.

A SAUDE E A MEDICINA.


    Ja tenho, meu Eloy,[6] tudo inmallado;
    Fica até no bahu o estro fechado.
          Mas antes de partir,
    Quero contar-te um conto, que hasde rir.
          Hontem o incontrei
    N’aquelle teu Pignotti tam magano;
    E, se em meu Portuguez não desbotei
          As côres do Italiano,
    Hasde-lhe achar a graça que eu lhe achei.
    Vou abrir o bahu, e venha o estro!
          Sôbre o canhão da bota.
          Como dizer se usa,
    Farei regrinhas curtas e compridas.
    Botas... e esporas tenho ja cingidas,
    Montarei o Pégaso, que nem trota
          Commigo, de esfalfado.
          Eu muito descançado
          Ahi me vou choitando,
          O meu conto contando.
    O conto é da Saude e Medicina...
          E tracta de te rir,
    Que, se não ris, serviu-te a carapuça,
    É um reles doutor de mula ruça
          Doutor que se amoffina
          E não quer consentir
    Que a pobre, atormentada humanidade
    Se desforre uma vez co’a faculdade.

    Jove, esse Jove em Grecia tam temido,
    Que imperava nos ceos, nos elementos,
          Nos raios e nos ventos,
          De moda emfim cahido,
    O credito perdeu e está fallido.
          Mas quando elle reinava
    Viam-se casos n’este baixo mundo
    Que o vulgo parvo assegurar ousava
    Desdizerem de seu saber profundo:
    E n’este ponto a grega theologia
          Por desculpa dizia
    Que, ao dar ordem a coisa tam soez
    Como é d’esta vida o entremez,
          Lhe cahem muita vez
          Os oc’los do nariz;
          E que n’estes momentos
          Tudo o que faz e diz
    É asneira--sandice por um triz.
    Em um d’estes accessos mazelentos,
    Em que de facto, do nariz divino,
          E sem elle dar tino,
    Tinham cahido os seus oculos bentos,
          Á terra nos mandou,
    Só para nosso bem, como julgou,
    Duas boas divindades companheiras,
          Ambas riccas herdeiras
          De sua graça divina:
    A saber, a Saude e a Medicina.
    Na fôrça juvenil tinha uma d’ellas
          Ageis e vigorosos
    Fortes os membros, cheios, musculosos,
          Tintas de côr rosada,
          Florida e ingraçada
          As frescas faces bellas;
    E nos olhos tranquillos e gozosos
    Tinha a indolência com a paz pintada.
    A outra, de gesto magro e macilento,
    Cabello pouco, e o pouco de alvo argento,
    Com as faces rugosas descahidas,
          As carnes resequidas,
    E em círculos de chumbo incaixilhados
          Os olhos incovados
          Remelosos, vidrados.
    Intrançada de malva e de chicoria
    Ampla coroa a frente lhe cingia,
          Como um splendor de glória;
    E a negra sotana que vestia
    Rota, e cossado o pêllo, lhe luzia
    Com erudita e sábia porcaria.
          Aos hombros alquebrados,
          Que a muita edade impêna,
    Em fórma de capuz, juncto ao toitiço
    Assim como uns calções esfarrapados
          De antigo, velho riço,
    E da côr de bandeira em quarentena.
    N’um frangalho da tal coisa amarella
    Lhe pendia, á feição de bambinella,
    Não Tusão de Oiro ou a Pollar estrêlla,
    Vermelho Christo ou roxo San’ Thiago,
          Mas o instrumento aziago...
    Certo tubo que todos conhecemos,
    Que no lúbrico pau escorregando,
    Emquanto vai e vem assim brincando,
    Ao nobre officio serve que sabemos...
          Cingida era de emtòrno
          A venera pendente
          De um magnífico adôrno
    De pilulas, lancetas em pingente,
          Sinapismos, ventosas,
    Com que, a modo de pedras preciosas,
    A nova ordem militar fulgia,
    De Esculapio em memoria e honraria.

    A este sabio Mentor, Jove intregára
    Em guarda a bella deusa das rotundas
          Bochechas rubicundas,
          E mui severamente
    Que em tudo a governasse, lhe mandára.

          Ei-las, breve, a caminho:
          E a deusa obediente
          Submissa e reverente,
          A sua mestra seguia
          Como ao guardião faria
    Um timido noviço capuchinho.
          Mas, alguns passos dados,
          A magra Medicina
    Prega na outra os olhos incovados,
          De admiração malina
          Franze o sobrôlho esguio,
    E tomando-lhe o pulso, em ar sombrio,
          Com palavras que ignoras,
    Profano vulgo, graves e sonoras,
    Disse--‘que a robustez ja muito athletica
    Que lhe achava, a fazia mui plethorica,
    E daria em pleuritica ou phrenetica.
    Provou-lhe mais com medica rhetorica
          Que um excesso mui rude
          Soffria de saude;
    E para que o morboso estado mude,
    E ella possa viver seguramente,
          De todo era forçoso
    Que tivesse o seu tanto de doente.’
          Disse, impunha a lanceta,
          Fere um vaso venenoso,
          E á pobre da pateta
    Tres libras de sadio e generoso,
    Vermelho sangue puro lhe sacou:
    Muito menos a muitos ja mattou!

          Mas era a paciente
    Tam pouco natural a estar doente,
    Que á sua directora vigilante
    De melhorar não deu signal bastante:
    Pelo que foi gramando, ás ordens d’ella,
    Nogenta beberagem amarella,
          Fedorenta, asquerosa
          Em dóze prodigiosa!..
          Tanto, tanto bebeu,
    Que a rebelde natura emfim cedeu.
          O appetite, o vigor
          Iam diminuindo;
          E a brilhante côr,
    A frescura das faces vai fugindo.
    --‘Bravo,’ gritava a outra em ledo aspeito
    ‘Bravo, que a arte vai fazendo effeito!’

    E temendo funesta recahida
          Em quanto de uma vez
    Não tinha debellada e bem vencida
          Do morbo a robustez,
    Manda avançar as horridas catervas
          Dos xaropes, conservas,
          Seguros laxativos,
          Fortes aperitivos...
    Com tal fôrça e podêr, que a desgraçada
          Em sua consciencia
    De todo em todo se sentiu curada.
          Mas com tanta sciencia
    Tam eruditamente era trattada,
    Por via de tam graves aphorismos
          E agudos sylogismos,
    Lardeados de Grego e de Latim,
          Que até, morrer assim,
          Morrer n’esta doçura,
    Morrer tam sabiamente era ventura.

    Da nossa boa alumna, por má sorte.
    Era estupida um tanto a natureza,
          E romba de agudeza:
          Graça a mais superfina
    Que nos póde fazer a mão divina!
          De tam ditosa morte
    Não pôde comprehender toda a belleza.
          Cobrou medo a mofina
          Da sciencia divina,
    E, sem mais Deus-te-salve ou mais embora,
    Desanda-me a fugir, dando á canella
          Por esse mundo fóra.
          Larga a outra atrás d’ella
    A correr... e correu, e correrá...
          Mas nunca a apanhará.
          E d’então para ca
          Ninguem mais se gabou
    De que junctas ou perto as incontrou.
    Tal medo uma da outra concebeu,
    Que aonde a Medicina appareceu,
          É logo--n’um momento
    Foge a Saude mais veloz que o vento.

Coimbra--1821.


NOTAS DE RODAPÉ:

[6] O Dr. João Eloy Nunes Cardoso, de Monte-mór-o-Novo, outro amigo
velho e verdadeiro, da Universidade.



VII.

O GALLEGO E O DIABO.


    Eu por mim gósto de contos,
    Diga o mundo o que quizer;
    E para mattar o tempo
    Um conto quero escrever.

    Mattar o tempo é preciso
    Aos ignorantes--dirão;
    Ao sabio sempre elle corre
    Voando, que lento não.

    Porêm, amigo censor,
    E quem me fez sabio a mim?
    Sou eu lente ou academico,
    Prégador ou coisa assim?

    Verdade é, no Quebra-costas
    Minha vez escorreguei,
    Fui prêso por Verdeaes,
    E á porta Ferrea m...ei.

    Mas que doutor fiquei eu,
    Se nunca o Martini li,
    Se, o que sube da instituta
    E do digesto, esqueci?

    Sabenças para que servem?
    Brucharia, eu t’arrenego!
    Vou-me contar o meu conto;
    E o meu conto é de um Gallego.

    Era uma vez um Gallego
    Boçal, felpudo e lanzudo,
    Um Gallego em corpo e alma.
    Em chancas, juizo e tudo.

    Nunca lá das Gallileas[7]
    Sahiu cabeça tam romba
    A alistar-se nas companhas
    Dos bravos heroes da bomba.

    Melena loira e comprida,
    Azeitada e corredia,
    Ôlho azul, pasmado e parvo,
    Bôcca aberta, a barba esguia;

    Calção de abanante orelha,
    Por onde fura o quadril,
    Nos pés a fragante chanca,
    Ás costas sacco e barril;

    Eis-aqui a vera effigie
    De Thiago Manuel Juan,
    O mais fiel dos Gallegos
    Que jamais _comieron pan_.

    Em devoção não fallemos,
    Que nisso era exemplar;
    Deixára um prato de tripas
    Para á missa não faltar.

    A miudo ia a confêsso;
    E nunca o somno o pilhou
    Senão a rezar o terço,
    Que--nunca mais acabou.

    Em duas ou tres egrejas
    Era freguez de _basar_;
    O seu barril tinha a honra
    De agua benta ás pias dar.

    Tam devoto, tam modesto
    Nunca houve outro Thiago;
    Não ha memorias de ouvir-lhe
    Nem uma só vez um _ajo_.

    Um dia, á volta das onze,
    Cançado de apregoar,
    --Era em Julho, que escaldava,
    Um calor mesmo de assar!--

    N’uma egreja de capuchos
    O bom de Thiago entrava;
    E a egreja tam fresquinha,
    Que á oração convidava.

    Por tendencia natural,
    Instincto de chafariz,
    Ajoelhou aopé da pia,
    Herdeira de seus barris.

    Mal se tinha _santiguado_,[8]
    Isto é, se persignou,
    Um berreiro destampado
    Detrás de si escutou:

    Era um membrudo capucho,
    Destemido Ferrabraz
    Que, a duros botes d’estolla,
    Brigava com Satanaz.

    Tinha-se o demo incaixado
    No bôjo de uma beata,
    E d’alli se defendia
    Como de uma casa-matta.

    Arripiaram-se as melenas
    A Thiago no toitiço,
    Pôz-se-lhe em pé no cachaço
    Até o próprio choiriço.[9]

    Mas o ôlho arregallado
    Em ponto de admiração,
    Não se attrevia a tirá-lo
    D’aquella horrivel visão.

    Travava a descompostura
    Do dize-tu, direi-eu...
    Fallava o frade latim
    Que nem o demo intendeu.

    Satanaz é bom latino;
    Ninguem lh’o póde negar:
    As syllabadas do frade
    Faziam-n’o blasphemar.

    Grita o frade:--‘_Abrenuncí-ò!_’
    E o cachorro do Asmodeu:
    --‘Assim não me deitas fóra;
    Dize _abrenún-cio_, sandeu.’

    --‘Latim sabe elle, o malditto...’
    Disse o frade aos seus cordões;
    Que os frades, como os não usam,
    Não fallam c’os seus botões:

    ‘No Latim me venceu elle,
    E não fez grande façanha;
    Elle é o diabo, e eu sou capucho!
    Veremos se o faz na manha.’

    Ria o demo ás gargalhadas
    Por ter o frade incovado;
    E o capucho, de velhaco,
    Dava-se ja por cangado,

    Mas co’a mão á caldeirinha,
    Sem que o pesque Satanaz,
    Vai mansinho... e de repente
    Prega-lhe a hyssopada--zaz!

    Deu tal estoiro a beata,
    Que parecia uma bomba ...
    Não era ella, era o demo:
    Cheira a enxophre que tomba.

    --‘Eu te esconjuro, malditto!’
    Brada o frade em Portuguez
    (Que não quiz comprometter
    O seu Latim d’esta vez)

    ‘Eu te esconjuro, malditto,
    Que d’este corpo te vas,
    E não tornes a entrar nelle,
    Negregado Satanaz.’

    --‘Vou-me’ disse o porco-sujo
    ‘Vou-me embora, Fr. Sandeu,
    Que me escalda essa agua benta.
    Mas para onde heide ir eu?’

    --‘Para onde?...’ E deitando os olhos
    A um lado d’improviso,
    Deu o frade com Thiago
    Que rebentava de riso.

    Thiago, de um grande medo
    Passára a grande alegria;
    E, esfregando as mãos no sacco,
    Como um perdido se ria.

    Leitor não te escandalizes;
    Que o ver logrado o demonio
    Até fez perder de riso,
    N’um sermão, a Sancto Antonio.

    --‘Para onde?...’ repete o frade
    ‘Que me importa a mim, pespêgo?
    Vai-te metter, se quizeres,
    No c... d’aquelle Gallego.’

    Conhecem-se os grandes homens
    Nas grandes occasiões:
    Thiago, sem mais demora,
    Deitou abaixo os calções;

    E, em menos tempo ainda
    Do que o demo esfrega um ôlho,
    Ja na pia da agua benta
    Tinha elle o seu de môlho.

    Batte-me quatro palmadas
    No rechonchudo do traz,
    E diz-lhe:--‘Agora, só diabo,
    Venha p’ra ca, se é capaz.’

Havre de Graça--1824.


NOTAS DE RODAPÉ:

[7] Terra de Gallegos, em dialecto scholastico.

[8] Feito o signal da cruz.

[9] O non-descriptum de trapo e cordagens que o gallego põe no cachaço
quando carrega o pau e corda.



VIII.

O Casquilho.

(JANOTA)

FÁBULA.


    Quem de Ovidio os contos leu
    Certo inda tem na memoria
    A mais curiosa historia
    Que elle em seus contos metteu:
    --De como Jove indignado
    C’uma nação de velhacos,
    Para os não fazer em cacos
    Os converteu em macacos.
        Vendo-se assim humilhado,
        Veio o povo castigado,
        De contricto coração
          A pedir perdão
    Ao deus que fulmina o raio e o trovão.

    Fazendo caretas, ganindo e guinchando
          Lhe vinham bradando
          Em mona e bugia:
      --‘Restaura-nos, ó padre soberano,
          O antigo vulto humano
          Co’a perdida razão.’

        O Tonnante, a quem passado
        Era o primeiro furor,
        Dos bugios ao clamor
        Prestou ouvido apiedado;
      Mas do macaco requerimento
      Não despachou senão ametade,
          E o resto a deidade
    Mandou dispersar nas azas do vento.

        Mal o acceno omnipotente
        Troou na celeste abobeda,
        A monaria contente
        Se ergueu altiva, impavida;
        Toda se impavesou
              E repimpou;
              E como gente
    A andar por esse mundo se deitou.

          O pêllo esfarripado.
    Que as cabeças télli lhes ouriçava,
    Em lindos caracoes se debruçava
    Agora pelo rosto transmudado.
        Não mudou por dentro o caco,
        Que ficou sempre macaco;
            E a cara por fóra
    Tambem não mudou muito do que fôra.
            Os mesmos focinhos,
            As mesmas caretas,
            E os parvos risinhos
            E as fofas e as tretas.

    Assim meio mudados, meio não,
    Lhes fez o padre Jove um bom sermão,
          E lhes mandou tomar
    Aopé da raça humana o seu logar.
    O homem com desprêzo o bicho olhou,
    Nem siquer nome para dar-lhe achou;
        Mas a mulher gostou
    Da tal farofia de apparente brilho,
    E á _coisa_ pôz o nome de--CASQUILHO.

Londres--1829.



IX.

OS AMANTES GENEROSOS.

CONTO.

A. J. LARCHER.


    Pois os mimosos sons da branda musa
    Do tam gentil Bernard, na patria lyra
    Queres ouvir suave modulados,
    E em luso trajo disputar-se um beijo
    De Tempe os generosos amadores,
    As cordas ferirei por comprazer-te,
    Cortar-lhe-hei galas dos pastores nossos:
    Na lingua de Camões, se posso tanto,
    Virão aqui a suspirar d’amores;
    E os echos d’estes valles mais sinceros
    Te dirão suas fallas namoradas.
    Tu, que es meio francez, meio germano,
    Que á meiga Deshouliers canções tam finas,
    Que a Gesner mais singelo ouviste o canto
    Na propria avena de seus tons cantado,
    Se os teus pastores nas ribeiras nossas,
    N’estas suaves margens do Mondego
    Vires diff’rentes, demudada a graça,
    E alternando sem arte a cantilena
    Que em seu patrio idioma foi tam bella,
    A ti só, que o quizeste, imputa o êrro,
    Nem acoimes á lingua tam formosa
    O desprimor e as faltas do poeta.

    Juncto aos valles de Tempe, amena estancia,
    Mansão querida de Pomona e Flora,
    O joven Hylas, Égle inda mais joven,
    Ambos loucos d’amor, o amor se occultam.
    A um terno olhar suas fallas se limitam,
    Sua chamma constrangida não se exhala:
    O innocente pastor fallar não ousa,
    Nem, que fallasse, a simples o intendêra.
    Mas tarde ou cedo, se o desejo a inflamma,
    Amestram a innocencia amor e a edade.
    Tirou-os d’este nada em que jaziam
    O acaso um dia. Á sombra da espessura,
    Tam bella, ou mais que amor, Égle dormia,
    Hylas a incontra, e os olhos namorados
    Para admirá-la não lhe bastam ambos.
    --‘Vénus’ exclama ‘eu tibio em teu serviço
    Ouso implorar-te: dá-me que estes labios,
    Em quanto aqui na relva Égle descança,
    Possam nos seus colhêr suave beijo.
    E eu te juro, ó divina Cytherea,
    Que em trôco lhe darei dois mansos pombos
    Muito mais lindos que os que tens em Chypre.’

    O voto fez-se; o beijo foi colhido:
    Fingido somno approveitou á bella,
    E, á noite o preço recebeu do voto.

    Veio outro dia, e Égle a dormir sempre...
    Mas não dorme o pastor:--‘Deus dos amores,
    Ves alli quanto adoro n’este mundo.
    Ah, de tanta belleza, tantas graças
    Consente que uma só eu gose ao menos.
    Se eu podesse--sem que Égle o presentisse,
    Sob o lenço invejoso ir co’a mão trémula
    Tocar n’aquelles candidos thesoiros,
    Dar-lhe-hia pelo roubo--tam secreto!
    O cordeirinho que entre os meus mais quero.
    Oh! adormece, amor, Égle formosa!’

    O mais profundo somno Hylas incontra.
    Viu, tocou, apalpou, beijou cem vezes
    O seio d’Égle, que retem manhosa
    Até o respirar, e a somno sôlto
    Mais dormia... quanto elle mais velava.

    Custou-lhe no outro dia a vir ao bosque,
    Timida ainda e vergonhosa a bella;
    Mas veio emfim... Foi só curiosidade,
    Tinha curiosidade--era o que tinha--
    De saber que presente aquelle dia
    Lhe faria o pastor; veio. Após ella
    Hylas veio também:--‘Eternos deuses,
    Aqui a incontro! Oh concedei-me agora
    Um último favor, que nos seus braços
    Eu gose emfim dos seus incantos todos.
    Ah! vós bem o sabeis: eu nada tenho,
    Mais nada ja do que o meu cão--e dou-lh’o.’

    Oh que pesado somno Égle dormia!
    E é bem de crer que o instante em que o mancebo
    No extasi do prazer fechára os olhos,
    Os lindos olhos d’Égle não se abriram.
    Mas o sonho acabou... e despertaram.
    O pastor imbrenhou-se na espessura
    E o cãosinho fiel ficou co’a bella.

    Incontraram-se á tarde, invergonhados...
    A pastora corou, elle suspira...
    Sós se achavam, sem medo, sem receios...
    Ao amante acordada Égle se intrega,
    Acha mais doce não dormir agora,
    E toda a imbriaguez do amor conhece:
    Quantos dons do pastor Égle recebe,
    Com dulcissima usura os restitue.

    Mas as antigas dadivas pesavam
    Á pastora gentil:--‘Sei que te devo
    Duas pombinhas que uma vez me déste.
    E se me ellas fugirem! vivo sempre
    N’este receio! Toma-as lá, e o preço
    Que por ellas te dei também m’o torna.’
    Surriu-se o joven, e pagou-as... ambas.

    Um momento depois o cordeirinho
    Á pastora lembrou:--‘Tanto te quero,
    E heide-te privar do que mais amas?
    Tam bonito! era a tua companhia,
    Comia-te nas mãos! Nada, não quero:
    Recebe-o, que t’o dou.’ E o cordeirinho
    Foi restituido.--O cão só lhe restava:
    Novas razões, e emfim ordem por fôrça
    De acceitar outra vez o seu rafeiro:
    --‘Não tens mais que um, é o guarda do rebanho,
    Recebe-o, doce amante, e ainda emcima,
    De fóraparte te heide dar um beijo.
    Eu não quero mais dadivas, querido;
    Com o teu coração estou contente.’

    Oh! taes dons para dar custaram pouco.
    Mas o preço da intrega era dobrado...
    O pastor affroixou, negocio serio
    Veio porfim a ser o tal brinquedo.
    Aopé de Égle acordada Hylas dormia...
    E ella, que mais pretextos ja não tinha,
    A suspirar dizia tristemente:
    --‘Não me dar elle todo o seu rebanho!’

Coimbra--1821.



                               SONETOS.



I.

PORFIA D’AMOR.


    D’emtorno á arvorezinha que murchára
    Se affadiga o cultor esperançoso;
    Invisca as varas caçador teimoso
    Armando ao passarinho que escapára;

    Porfiado rompe com a dextra avara
    As intranhas da terra o cubiçoso;
    Sua co’a bomba o nauta pressuroso
    Por estancar a nau que lhe arrombára.

    Mas larga cadaqual desesperado,
    Quebra furioso o inutil instrumento
    Se o continuo trabalho ve baldado.

    Só eu, com desinganos cento e cento,
    Só eu, por Délia sempre desprezado,
    Teimo cadavez mais no meu tormento.

Angra--1814.



II.

CAMÕES NÁUFRAGO.


    Cedendo á furia de Neptuno irado
    Sossobra a nau que o gran’thesoiro incerra;
    Lucta co’a morte na espumosa serra
    O divino cantor do Gama ousado.

    Ai do canto mimoso a Lysia dado!...
    Camões, grande Camões, embalde a terra
    Teu braço forte, nadador afferra
    Se o canto lá ficou no mar salgado.

    Chorae, Lusos, chorae! Tu morre, ó Gama,
    Foi-se a tua glória... Não; lá vai rompendo
    Co’a dextra o mar, na sestra a lusa fama.

    Eterno, eterno ficará vivendo:
    E a torpe inveja, que inda agora brama,
    No abysmo cahirá do Averno horrendo.

Angra--1815.



III.

A UMA FEIA COM LINDA VOZ.


    Quando Orpheu pela espôsa suspirada
    Desceu co’a maga lyra ao reino escuro,
    Incantado Plutão ferrenho e duro
    De júbilo exultou na atroz morada.

    --‘Furias,’ clamou ‘e turba condemnada,
    Quero tudo a cantar; do mais não curo.
    Ralhe Jove ou não ralhe, eu voto e juro
    Que não heide ouvir mais ésta assoada.’

    Eis impunhando o açoite crepitante
    Rege Megera o condemnado côro,
    Cantando em doce voz pura e tocante.

    Ah! quando te oiço, ó N--y, o som canoro,
    E arrebatado attento em teu semblante,
    Um milagre d’Orpheu no Averno adoro.

Lisboa--1816.



IV.

‘SUFFOQUE AS ÍRAS, CALLE E SINTA E GEMA’


    Se d’uns olhos gentis, d’um gesto brando,
    D’um surrir desdenhoso innamorado,
    Imprega o triste amante o seu cuidado
    Em quem das leis d’amor se vai zombando;

    De tormento em tormento variando,
    Té o proprio queixume lhe é vedado:
    Ri-se a bella do mal que lhe ha causado,
    Dos ferros mofa que lhe vai forjando.

    Pene emtanto o infeliz, suspire ao vento,
    Té de que o saiba a perfida se tema,
    Não lhe assome no labio um só lamento;

    E ao som da ferrea, da cruel algema,
    Martyr de seu inutil soffrimento
    ‘Suffoque as íras, calle e sinta e gema.’

Porto--1817.



V.

‘É DOS OLHOS GENTIS DA MINHA AMADA.’


    Um prodigio d’incantos, de belleza
    Es, ó mãe dos ternissimos amores,
    Que, em teus labios, seus aureos passadores
    Hervam, seguros de acertar a prêza.

    Fulge em teus olhos divinaes accesa
    A tocha dos desejos seductores;
    Em ti de seus esmeros, seus primores,
    O thesoiro esgotou a natureza.

    Mas oh, por mais que arte divina estude,
    Não te dá da innocencia a flor nevada
    Que se não finge, nem fingida illude!

    Esse dom virginal que tanto agrada
    É só mimo da candida virtude,
    ‘É dos olhos gentis da minha amada.’

Porto--1817.



VI.

‘NAS FROIXAS, DEBEIS AZAS DA SAUDADE.’


    Esses muros que amor, razão despreza,
    Que ergueu do fanatismo a voz trovosa,
    Deixa, ó Nise gentil, deixa-os, vaidosa
    De escutares a voz da natureza.

    Crê no teu coração; não é fraqueza
    Fugir aos males para ser ditosa:
    Ja nos meus braços a ventura anciosa
    Espera, com amor, tua belleza.

    Vem, não oiças conselhos fementidos,
    Ouve amor, a razão, a liberdade,
    E a virtude e o prazer verás unidos.

    Farás minha cabal felicidade,
    Nem teus votos verás sempre perdidos
    ‘Nas froixas, debeis azas da saudade.’

Porto--1817.



VII.

O CAMPO DE SANCT’ANNA.


    Longe, hypocritas vis, longe, impostores,
    O mentido apparato religioso!
    Que um deus d’amor, o nosso Deus piedoso
    Abomina, detesta esses horrores.

    De atrozes leis cruentos guardadores,
    Vós curvais ante o despota orgulhoso,
    E o sangue da patria precioso
    Torpemente vendeis por seus favores.

    Geme sem proctetor a humanidade:
    E vós, juizes, vós, tigres humanos,
    A immolais sem remorso e sem piedade.

    Ah! tremei, sanguinarios deshumanos;
    Que ella hade vir, tremei, a Liberdade
    Punir despotas, bonzos e tyrannos.

Coimbra--1817.



VIII.

‘VIRTUDE SEM PRAZER NÃO É VIRTUDE’


    Deixa, eu t’o rogo, deixa, Annalia minha,
    Duros preceitos de moral sombria;
    Fingiu-os a traidora hypocrisia
    Que detrás d’elles, a zombar, se aninha.

    Leis de tartufos, invenção danninha
    Que protege a impostura e o vício cria,
    O egoismo as dictou, funesta harpia
    Que as horas do gosar nos amesquinha.

    A mão da natureza, a mão sublime
    O gran’sêllo forjou na eterna incude
    Com que o signal de falsas lhes imprime.

    O coração m’o diz, que não illude:
    Crime sem dor, Annalia, não é crime,
    ‘Virtude sem prazer não é virtude.’

Coimbra--1818.



IX.

A FLOR SÊCCA.


    Vai, flor gentil, vai prenda suspirada,
    Doce mimo d’amor terno e fagueiro,
    Vai, que elle mesmo grato e prazenteiro
    Elle te hade levar á minha amada.

    Cumpre a que ella te impoz, que é lei sagrada:
    Se mudada te achar, sem côr, sem cheiro,
    Se o viço, a gala do verdor primeiro
    Em tuas pallidas folhas vir crestada,

    Diz-lhe que mais que a ti, mais me queimára
    O intenso ardor d’aquella saudade
    Que a ambos n’este estado nos deixára.

    Oh! se um benigno influxo de piedade
    De seus formosos olhos te orvalhára...
    Qual de nós ambos reviver não hade?

Porto--1819.



X.

A CERTA TRAGEDIA.


    Mil parabens á musa portugueza
    Que do padre José fulgiu na penna!
    Cai a velha Melpomene da scena,
    Foi-se a tragedia grega e a franceza.

    Sóphocles pôz-se a dar voltas d’Andreza,
    Euripedes está de quarentena,
    Corneille indoudeceu de inveja e pena,
    Crebillon foi queimar o Atreu e a mesa;

    Racine professou nos Mariannos,
    Voltaire está a leites de jumenta,
    Alfieri vai fazer sonetos de annos.

    Victorioso o padre a Branca ostenta:
    Só por vencer lhe restam dois maganos...
    Mas temiveis rivaes--Paiva e Pimenta.

Coimbra--1819.



XI.

MARIA E CAROLINA.


    Que hade brindar á amavel Carolina
    Pelos seus annos a gentil Maria?
    Tam franca de seus dons, ao dar-lhe o dia,
    Não deixou que outorgar-lhe a mão divina.

    Qual de ambas póde haver offerta dina
    De quantas liberal natura cria?
    Que gera o loiro sol ou que allumia
    Que encha os desejos d’alma peregrina?

    A amigas taes, ao par que me innamora
    Ja não tem que lhes dar a humanidade,
    Por mais que seus thesoiros aprimora.

    Amor, divino amor, doce amizade,
    Numes do coração, valei-me agora:
    Dae-lhes, pois deuses sois, a eternidade.

Porto--1819.



XII.

SAUDADE.


    Seculos são, na vida que infastia,
    Estes dias de exilio amargurados;
    Um por um, mágoa a mágoa, vão contados
    Em lenta e cruellissima agonia.

    Oh! roubemos-lhe aomenos este dia,
    Ao padecer que todos trás roubados;
    Sejam pela amizade consagrados
    Ao casto amor instantes de alegria.

    Tem prazeres tambem a desventura:
    A propria carrancuda adversidade
    Surri co’a esp’rança que lhe luz futura.

    Vem, amigo, no seio da amizade
    Festeja a espôsa, sonha co’a ventura
    Que um dia hade mattar tanta saudade.

Londres--1828.



                            ULTIMOS VERSOS.

                            FOLHAS CAHIDAS.



                             DOS EDITORES.


Cumpre-se a promessa feita no primeiro volume d’esta collecção reunindo
aqui, em segunda edição muito augmentada e correcta, as FOLHAS CAHIDAS.

Apezar de estarem no prelo desde 1851, o auctor tinha descuidado na
primeira edição o seu habitual escrupulo de rever e corrigir; e não
teve paciencia para as augmentar com muitas peças que agora vão, e que
então não estavam postas a limpo. Trabalhos mais serios o distrahiram
durante os dois annos que levaram a imprimir tam poucas paginas.

Julgou-se agora melhor dividir em dois livros o que, assim augmentado,
ficaria demaziado para um só.

Maio--1853.



                           ADVERTENCIA.[10]


Antes que venha o hynverno e disperse ao vento essas folhas de poesia
que por ahi cahiram, vamos escolher uma ou outra que valha a pena
conservar, ainda que não seja senão para memoria.

A outros versos chamei eu ja as últimas recordações de minha vida
poetica. Inganei o público, mas de boa fe, porque me inganei primeiro
a mim. Protestos de poetas que sempre estão a dizer adeus ao mundo, e
morrem abraçados com o louro--ás vezes imaginario, porque ninguem os
coroa.

Eu pouco mais tinha de vinte annos quando publiquei certo poema, e
jurei que eram os ultimos versos que fazia. Que juramentos!

Se dos meus se rirem, teem razão; mas saibam que eu tambem primeiro me
ri d’elles. Poeta na primavera, no estio e no outomno da vida, heide
sê-lo no hynverno se lá chegar, e heide sê-lo em tudo. Mas d’antes
cuidava que não, e n’isso ia o êrro.

Os cantos que formam ésta pequena collecção pertencem todos a uma
epocha de vida íntima e recolhida que nada tem com as minhas outras
collecções.

Essas mais ou menos mostram o poeta que canta deante do público. Das
FOLHAS CAHIDAS ninguem tal dirá, ou bem pouco intende de stylos e modos
de cantar.

Não sei se são bons ou maus estes versos; sei que gósto mais d’elles do
que de nenhuns outros que fizesse. Porque? É impossivel dizê-lo, mas
é verdade. E como nada são por elle nem para elle, é provavel que o
público sinta bem diversamente do auctor. Que importa?

Apezar de sempre se dizer e escrever ha cem mil annos o contrário,
parece-me que o melhor e mais recto juiz que póde ter um escriptor, é
elle proprio, quando o não cega o amor proprio. E eu sei que tenho os
olhos abertos, aomenos agora.

Custa-lhe a uma pessoa, como custava ao Tasso, e ainda sem ser Tasso, a
queimar os seus versos, que são seus filhos; mas o sentimento paterno
não impede de ver os defeitos das crianças.

Emfim, eu não queimo estes. Consagrei-os _ignoto deo_. E o deus que
os inspirou que os anniquille se quizer: não me julgo com direito de o
fazer eu.

Ainda assim, no _ignoto deo_ não imaginem alguma divindade meia-velada
com cendal transparente, que o devoto está morrendo que lhe caia
paraque todos a vejam bem clara. O meu deus desconhecido é realmente
aquelle mysterioso, occulto e não-definido sentimento d’alma que a leva
ás aspirações de uma felicidade ideal, o sonho de oiro do poeta.

Imaginação que porventura se não realisa nunca. E d’ahi quem sabe? A
culpa é talvez da palavra, que é abstracta demais. Saude, riqueza,
miseria, pobreza, e ainda coisas mais materiaes, como o frio e o calor,
não são senão estados comparativos, approximativos. Ao infinito não se
chega, porque deixava de o ser em se chegando a elle.

Logo o poeta é louco, porque aspira sempre ao impossivel. Não sei.
Essa é uma disputação mais longa.

Mas sei que as presentes FOLHAS CAHIDAS representam o estado d’alma do
poeta nas variadas, incertas e vacillantes oscillações do espirito que,
tendendo ao seu fim unico, a posse do IDEAL, ora pensa tê-lo alcançado,
ora estar a ponto de chegar a elle--ora ri amargamente porque reconhece
o seu ingano--ora se desespera de raiva impotente por sua credulidade
van.

Deixae-o passar, gente do mundo, devotos do podêr, da riqueza, do
mando, ou da glória. Elle não intende bem d’isso, e vós não intendeis
nada d’elle.

Deixae-o passar, porque elle vai onde vós não ides; vai, ainda que
zombeis d’elle, que o callunieis, que o assacineis. Vai, porque é
espirito, e vós sois materia.

E vós morrereis, elle não. Ou só morrerá d’elle aquillo em que se
pareceu e se uniu convosco. E essa falta que é a mesma de Adam, tambem
será punida com a morte.

Mas não triumpheis, porque a morte não passa do corpo, que é tudo em
vós, e nada ou quasi nada no poeta.

Janeiro--1853.


NOTAS DE RODAPÉ:

[10] Do auctor na primeira edição.



                            FOLHAS CAHIDAS.

                            LIVRO PRIMEIRO.



I.

IGNOTO DEO

D. D. D.


    Creio em ti, Deus: a fe viva
    De minha alma a ti se eleva.
    Es:--o que es não sei. Deriva
    Meu ser do teu: luz... e treva,
    Em que--indistinctas!--se involve
    Este espirito agitado,
    De ti vem, a ti devolve.
    O Nada, a que foi roubado
    Pelo sôpro creador
    Tudo o mais, o hade tragar.
    Só vive de eterno ardor
    O que está sempre a aspirar
    Ao infinito d’onde veio.
    Belleza es tu, luz es tu,
    Verdade es tu só. Não creio
    Senão em ti; o ôlho nu
    Do homem não ve na terra
    Mais que a dúvida a incerteza,
    A fórma que ingana e erra.
    Essencia! a real belleza,
    O puro amor--o prazer
    Que não fatiga e não gasta...
    Só por ti os póde ver
    O que inspirado se affasta,
    Ignoto Deus, das ronceiras,
    Vulgares turbas: despidos
    Das coisas vans e grosseiras
    Sua alma, razão, sentidos,
        A ti se dão, em ti vida,
    E por ti vida teem. Eu, consagrado
    A teu altar, me prostro e a combatida
    Existencia aqui ponho, aqui votado
    Fica este livro--confissão sincera
    Da alma que a ti voou e em ti só spera.



II.

ADEUS!


    Adeus! para sempre adeus!
    Vai-te, oh! vai-te, que n’esta hora
    Sinto a justiça dos ceus
    Esmagar-me a alma que chora.
    Chóro porque não te amei,
    Chóro o amor que me tiveste;
    O que eu perco, bem n’o sei,
    Mas tu... tu nada perdeste:
    Que este mau coração meu
    Nos secretos escaninhos
    Tem venenos tam damninhos
    Que o seu podêr só sei eu.

    Oh! vai... para sempre adeus!
    Vai, que ha justiça nos ceus.
    Sinto gerar na peçonha
    Do ulcerado coração
    Essa vibora medonha
    Que por seu fatal condão
    Hade rasgá-lo ao nascer:
    Hade sim, serás vingada,
    E o meu castigo hade ser
    Ciume de ver-te amada,
    Remorso de te perder.

    Vai-te, oh! vai-te, longe, embora,
    Que sou eu capaz agora
    De te amar.--Ai! se eu te amasse!
    Vê se no arido pragal
    D’este peito se ateasse
    De amor o incendio fatal!
    Mais negro e feio no inferno
    Não chammeja o fogo eterno.

    Que sim? Que antes isso?--Ai, triste!
    Não sabes o que pediste.
    Não te bastou supportar
    O cepo-rei; impaciente
    Tu ousas a deus tentar
    Pedindo-lhe o rei-serpente!

    E cuidas amar-me ainda?
    Inganas-te: é morta, é finda,
    Dissipada é a illusão.
    Do meigo azul de teus olhos
    Tanta lagryma verteste,
    Tanto esse orvalho celeste
    Derramado o viste em vão
    N’esta seara de abrolhos,
    Que a fonte seccou. Agora
    Amarás... sim hasde amar,
    Amar deves... Muito embora...
    Oh! mas n’outro hasde sonhar
    Os sonhos de oiro incantados
    Que o mundo chamou amores.

    E eu réprobo... eu se o verei?
    Se em meus olhos incovados
    Der a luz de teus ardores...
    Se com ella cegarei?
    Se o nada d’essas mentiras
    Me entrar pelo vão da vida...
    Se, ao ver que feliz deliras,
    Tambem eu sonhar... Perdida,
    Perdida serás--perdida.

    Oh! vai-te, vai, longe, embora!
    Que te lembre sempre e agora
    Que não te amei nunca... ai! não;
    E que pude a sangue frio,
    Covarde, infame, villão,
    Gosar-te--mentir sem brio,
    Sem alma, sem dó, sem pejo,
    Commettendo em cada bejo
    Um crime... Ai! triste, não chores,
    Não chores, anjo do ceu,
    Que o deshonrado sou eu.

    Perdoar-me tu?... Não mereço.
    A immundo cerdo voraz
    Essas perolas de preço
    Não as deites: é capaz
    De as desprezar na torpeza
    De sua bruta natureza.
    Irada, te hade admirar,
    Despeitosa, respeitar,
    Mas indulgente... Oh! o perdão
    É perdido no villão,
    Que de ti hade zombar.

    Vai, vai... para sempre adeus!
    Para sempre aos olhos meus
    Sumido seja o clarão
    De tua divina estrêlla.
    Faltam-me olhos e razão
    Para a ver, para intendê-la:
    Alta está no firmamento
    Demais, e demais é bella
    Para o baixo pensamento
    Com que em má hora a fitei;
    Falso e vil o incantamento
    Com que a luz lhe fascinei.
    Que volte a sua belleza
    Do azul do ceu á pureza,
    E que a mim me deixe aqui
    Nas trevas em que nasci,
    Trevas negras, densas, feias,
    Como é negro este aleijão
    D’onde me vem sangue ás veias,
    Este que foi coração,
    Este que amar-te não sabe
    Porque é só terra--e não cabe
    N’elle uma idea dos ceus...
    Oh! vai, vai; deixa-me, adeus!



III.

QUANDO EU SONHAVA.


    Quando eu sonhava, era assim
    Que nos meus sonhos a via;
    E era assim que me fugia,
    Apenas eu despertava,
    Essa imagem fugidia
    Que nunca pude alcançar.
    Agora que estou desperto,
    Agora a vejo fixar...
    Paraquê?--Quando era vaga,
    Uma idea, um pensamento,
    Um raio de estrêlla incerto
    No immenso firmamento,
    Uma chymera, um vão sonho,
    Eu sonhava--mas vivia:
    Prazer não sabia o que era,
    Mas dor, não n’a conhecia...
    .............................



IV.

AQUELLA NOITE!


    Era a noite da loucura,
    Da seducção, do prazer,
    Que em sua mantilha escura
    Costuma tanta ventura,
    Tantas glórias esconder.
    Os felizes... e ai! são tantos!...
    --Eu por tantos os contava!
    Eu que o signal de meus prantos
    Do afflicto rosto lavava--
    Os felizes presumpçosos
    Iam nos coches ruidosos
    Correndo aos salões doirados
    De mil fogos alumiados,
    D’onde em torrentes sahia
    A clamorosa harmonia
    Que á festa, ao prazer tangia.

    Eu sentia esse ruido
    Como o confuso bramar
    De um mar ao longe movido
    Que á praia vem rebentar:
    E disse commigo:--‘Vamos,
    Os luctos d’alma dispamos,
    Á festa heide ir tambem eu!’

    E fui: e a noite era bella.
    Mas não vi a minha estrêlla
    Que eu sempre via no ceu:
    Cubriu-a de espesso véo
    Alguma nuvem a ella,
    Ou era que ja vendado
    Me levava o negro fado
    Onde a vida me perdeu?

    Fui; meu rosto macerado,
    A funda melancholia
    Que todo o meu ser revia,
    Qual o atahude levado
    A egypcio festim, dizia:
    --‘Como vós fui eu tambem;
    Folgae, que a morte ahi vem!’
    Dizia-o, sim, meu semblante,
    Que, onde eu chegava, o prazer
    Cessava no mesmo instante;
    E o labio, que ia a dizer
    Doçuras de amor, gelava;
    E o riso, que ia a nascer
    Na face linda, expirava.
    Era eu--e a morte em mim,
    Que só ella espanta assim!

    Quantas mulheres tam bellas
    Ebrias de amor e desejos,
    Quantas vi saltar-lhe os bejos
    Da bôcca ardente e lasciva!
    E eu, que ia chegar-me a ellas...
    Para logo a fronte esquiva
    De recatos se involvia
    E, toda pudor, tremia.

    Quantas o seio anhelante,
    Nu, ardente e palpitante
    Andavam como intregando
    Á cubiça mal-desperta,
    Gasta ja e desdenhosa,
    Dos que as estavam mirando
    Com vaga luneta incerta
    Que diz:--‘Aquella é formosa,
    Não se me dava de a ter.
    E esta? É só baroneza,
    Vale menos que a duqueza:
    Não sei a qual attender.’

    E a isto chamam prazer!
    A grande ventura é ésta?
    Vale a pena vir á festa
    E vale a pena viver.
    Como então quiz á tristura
    Do meu viver isolado!
    Fique-se embora a ventura,
    Que eu quero ser desgraçado.

    Levantei alto a cabeça.
    Senti-me crescer--e a frente
    Desanuviar-se contente
    Do feio negrume espesso
    Que assustava aquella gente.
    Logo os surrisos cabiam
    Para o meu lado tambem:
    Ja como um dos seus me viam,
    Que em mim não viam ninguem.
    Eu, de olhos desincantados,
    A ellas, como as eu via!
    Meus enthusiasmos passados.
    Oh! como eu d’elles me ria!

    Frio o sarcasmo sahia
    De meus labios descorados,
    E sem dó e sem pudor
    A todas fallei de amor...
    Do amor bruto, degradante
    Que no seio palpitante,
    Na espadua nua se accende...
    Amor lascivo que offende,
    Que faz corar... Ellas riam
    E oh que não, não se offendiam!

    Mas a orchestra bradou alta:
    --‘Festa, festa! e salta, salta!’
    Os seus guizos delirantes
    Sacode louca a Folia...
    Adeus, requebros de amantes!
    Suspiros, quem n’os ouvia?
    As palavras meias dittas,
    Meias nos olhos escrittas,
    Voavam todas perdidas
    Dispersas, rotas no ar;
    Que se foram almas, vidas,
    Tudo se foi a walsar.

    Quem é ésta que mais voltas
    Gyra, gyra sem cessar?
    Como as roupas leves, sôltas,
    Aerias leva a ondular
    Emtôrno á fórma graciosa,
    Tam flexivel, tam airosa,
    Tam fina!--Agora parou,
    E tranquilla se assentou.
    Que rosto! Em linhas severas
    Se lhe desenha o profil;
    E a cabeça, tam gentil,
    Como se fôra devéras
    A rainha d’essa gente,
    Como a levanta insolente!
    Vive Deus! que é ella... aquella,
    A que eu vi na tal janella,
    E que triste me surria
    Quando passando me via
    Tam pasmado a olhar para ella.
    A mesma melancholia
    Nos olhos tristes--de luz
    Oblíqua, viva mas fria;
    A mesma alta intelligencia
    Que da face lhe transluz;
    E a mesma altiva impaciencia
    Que de tudo, tudo cança,
    De tudo o que foi, que é,
    E na erma vida só vê
    O raio da vaga espr’ança.

    --‘Pois isto sim que é mulher’
    Disse eu--‘e aqui ha que ver.’

    Ja vinha a pallida aurora
    Annunciando a manhan fria,
    E eu fallava e eu ouvia
    O que até áquella hora
    Nunca disse, nunca ouvi...

    Toda a memoria perdi
    Das palavras proferidas...
    Não eram d’estas sabidas,
    Nem quaes eram não n’o sei...
    Sei que a vida era outra em mim,
    Que era outro ser o meu ser,
    Que uma alma nova me achei
    Que eu bem sabia não ter.

    E d’ahi?--D’ahi, a historia
    Não deixou outra memoria
    D’essa noite de loucura,
    De seducção, de prazer...
    Que os segredos da ventura
    Não são para se dizer.



V.

O ANJO CAHIDO.


    Era um anjo de Deus
    Que se perdêra dos ceus
    E terra a terra voava.
    A setta que lhe acertava
    Partira de arco traidor,
    Porque as pennas que levava
    Não eram pennas de amor.

    O anjo cahiu ferido,
    E se viu aos pés rendido
    Do tyranno caçador.
    De aza morta e sem splendor
    O triste, peregrinando
    Por estes valles de dor,
    Andou gemendo e chorando.

    Vi-o eu, o anjo dos ceus,
    O abandonado de Deus.
    Vi-o, n’essa tropelia
    Que o mundo chama alegria.
    Vi-o a taça do prazer
    Pôr ao labio que tremia...
    E só lagrymas beber.

    Ninguem mais na terra o via,
    Era eu só que o conhecia...
    Eu que ja não posso amar!
    Quem n’o havia de salvar?
    Eu, que n’uma sepultura
    Me fôra vivo interrar?
    Loucura! ai, cega loucura!
    Mas entre os anjos dos ceus
    Faltava um anjo ao seu Deus;
    E remi-lo e resgatá-lo,
    D’aquella infamia salvá-lo
    Só fôrça de amor podia.
    Quem d’esse amor hade amá-lo,
    Se ninguem o conhecia?

    Eu só.--E eu morto, eu descrido,
    Eu tive o arrôjo atrevido
    De amar um anjo sem luz.
    Cravei-a eu n’essa cruz
    Minha alma que renascia,
    Que toda em sua alma puz.
    E o meu ser se dividia,

    Porque elle outra alma não tinha,
    Outra alma senão a minha...
    Tarde, ai! tarde o conheci,
    Porque eu o meu ser perdi,
    E elle á vida não volveu...
    Mas da morte que eu morri
    Tambem o infeliz morreu.



VI.

O ALBUM.


    Minha Julia, um conselho de amigo;
    Deixa em branco este livro gentil:
    Uma só das memorias da vida
    Vale a pena guardar, entre mil.

    E essa n’alma em silencio gravada
    Pelas mãos do mysterio hade ser;
    Que não tem lingua humana palavras,
    Não tem lettra que a possa escrever.
    Por mais bello e variado que seja
    De uma vida o tecido matiz,
    Um só fio da tella bordada,
    Um só fio hade ser o feliz.

    Tudo o mais é illusão, é mentira,
    Brilho falso que um tempo seduz,
    Que se apaga, que morre, que é nada
    Quando o sol verdadeiro reluz.

    De que serve guardar monumentos
    Dos inganos que a espr’ança forjou?
    Vãos reflexos de um sol que tardava
    Ou vans sombras de um sol que passou!

    Crê-me, Julia: mil vezes na vida
    Eu co’a minha ventura sonhei;
    E uma só, d’entre tantas, o juro,
    Uma só com verdade a incontrei.

    Essa entrou-me pela alma tam firme,
    Tam segura por dentro a fechou,
    Que o passado fugiu da memoria,
    Do porvir nem desejo ficou.
    Toma pois, Julia bella, o conselho;
    Deixa em branco este livro gentil,
    Que as memorias da vida são nada,
    E uma só se conserva entre mil.



VII.

SAUDADES


    Leva este ramo, Pepita,
    De saudades portuguezas;
    É flor nossa, e tam bonita
    Não n’a ha n’outras devezas.

    Seu perfume não seduz,
    Não tem variado matiz,
    Vive á sombra, foge á luz,
    As glórias d’amor não diz;
    Mas na modesta belleza
    De sua melancholia
    É tam suave a tristeza,
    Inspira tal sympathia!..

    E tem um dote ésta flor
    Que de outra egual se não diz:
    Não perde viço ou frescor
    Quando a tiram da raiz.

    Antes mais e mais floresce
    Com tudo o que as outras matta;
    Até ás vezes mais cresce
    Na terra que é mais ingrata.

    Só tem um cruel senão,
    Que te não devo esconder:
    Plantada no coração,
    Toda outra flor faz morrer.

    E, se o quebra e despedaça
    Com as raizes mofinas,
    Mais ella tem brilho e graça,
    É como a flor das ruinas.
    Não, Pepita, não t’a dou...
    Fiz mal em dar-te essa flor,
    Que eu sei o que me custou
    Trattá-la com tanto amor.



VIII.

ESTE INFERNO DE AMAR.


    Este inferno de amar--como eu amo!
    Quem m’o pôs aqui n’alma... quem foi?
    Ésta chamma que alenta e consome,
    Que é a vida--e que a vida destroi--
    Como é que se veio a atear,
    Quando--ai quando se hade ella apagar?

    Eu não sei, não me lembra: o passado,
    A outra vida que d’antes vivi
    Era um sonho talvez...--foi um sonho--
    Em que paz tam serena a dormi!
    Oh! que doce era aquelle sonhar...
    Quem me veio, ai de mim! despertar?

    Só me lembra que um dia formoso
    Eu passei... dava o sol tanta luz!
    E os meus olhos, que vagos gyravam,
    Em seus olhos ardentes os puz.
    Que fez ella? eu que fiz?--Não n’o sei;
    Mas n’essa hora a viver comecei...



IX.

DESTINO.


    Quem disse á estrêlla o caminho
    Que ella hade seguir no ceu?
    A fabricar o seu ninho
    Como é que a ave apprendeu?
    Quem diz á planta:--‘Florece!’
    E ao mudo verme que tece
    Sua mortalha de seda
    Os fios quem lh’os inreda?

    Insinou alguem á abelha
    Que no prado anda a zumbir
    Se á flor branca ou se á vermelha
    O seu mel hade ir pedir?
    Que eras tu meu ser, querida,
    Teus olhos a minha vida,
    Teu amor todo o meu bem...
    Ai! não m’o disse ninguem.

    Como a abelha corre ao prado,
    Como no ceo gyra a estrêlla,
    Como a todo o ente o seu fado
    Por instincto se revella,
    Eu no teu seio divino
    Vim cumprir o meu destino...
    Vim, que em ti só sei viver,
    Só por ti posso morrer.



X.

GÔSO E DOR.


    Se estou contente, querida,
    Com ésta immensa ternura
    De que me enche o teu amor?
    --Não. Ai! não; falta-me a vida,
    Succumbe-me a alma á ventura:
    O excesso do gôso é dor.

    Doe-me alma, sim; e a tristeza
    Vaga, inerte e sem motivo,
    No coração me poisou.
    Absorto em tua belleza,
    Não sei se morro ou se vivo,
    Porque a vida me parou.

    É que não ha ser bastante
    Para este gosar sem fim
    Que me inunda o coração.
    Tremo d’elle, e delirante
    Sinto que se exhaure em mim
    Ou a vida--ou a razão.



XI.

PERFUME DA ROSA.


    Quem bebe, rosa, o perfume
    Que de teu seio respira?
    Um anjo, um sylpho? Ou que nume
    Com esse aroma delira?

    Qual é o deus que, namorado,
    De seu throno te ajoelha,
    E esse nectar incantado
    Bebe occulto, humilde abelha?

    --Ninguem?--Mentiste: essa frente
    Em languidez inclinada,
    Quem t’a pôs assim pendente?
    Dize, rosa namorada.

    E a côr de purpura viva
    Como assim te desmaiou?
    E essa pallidez lasciva
    Nas folhas quem t’a pintou?

    Os espinhos que tam duros
    Tinhas na rama lustrosa,
    Com que magos esconjuros
    T’os desarmaram, ó rosa?

    E porquê, na hástea sentida
    Tremes tanto ao pôr do sol?
    Porque escutas tam rendida
    O canto do rouxinol?

    Que eu não ouvi um suspiro
    Sussurrar-te na folhagem?
    Nas aguas d’esse retiro
    Não espreitei a tua imagem?
    Não a vi afflicta, anciada...
    --Era de prazer ou dor?--
    Mentiste, rosa, es amada.
    E também tu amas, flor.

    Mas ai! se não for um nume
    O que em teu seio delira,
    Hade mattá-lo o perfume
    Que n’esse aroma respira.



XII.

ROSA SEM ESPINHOS.


    Para todos tens carinhos,
    A ninguem mostras rigor!
    Que rosa es tu sem espinhos?
    Ai, que não te intendo, flor!

    Se a borbuleta vaidosa
    A desdem te vai beijar,
    O mais que lhe fazes, rosa,
    É surrir e é corar.

    E quando a sonsa da abelha,
    Tam modesta em seu zumbir,
    Te diz:--‘Ó rosa vermelha,
    Bem me pódes acudir:

    Deixa do caliz divino
    Uma gotta só libar...
    Deixa, é nectar peregrino,
    Mel que eu não sei fabricar...’

    Tu de lástima rendida,
    De malditta compaixão,
    Tu á súpplica atrevida
    Sabes tu dizer que não?

    Tanta lástima e carinhos,
    Tanto dó, nenhum rigor!
    Es rosa e não tens espinhos!
    Ai! que não te intendo, flor.



XIII.

ROSA PALLIDA.


    Rosa pallida, em meu seio
    Vem, querida, sem receio
    Esconder a afflicta côr.
    Ai! a minha pobre rosa!
    Cuida que é menos formosa
    Porque desbotou de amor.

    Pois sim... quando livre, ao vento,
    Sôlta de alma e pensamento,
    Forte de tua isempção,
    Tinhas na folha incendida
    O sangue, o calor e a vida
    Que ora tens no coração.

    Mas não eras, não, mais bella.
    Coitada, coitada d’ella,
    A minha rosa gentil!
    Coravam-n’a então desejos,
    Desmaiam-n’a agora os bejos...
    Vales mais mil vezes, mil.

    Inveja das outras flores!
    Inveja de quê, amores?
    Tu, que vieste dos ceus,
    Comparar tua belleza
    Ás filhas da natureza!
    Rosa, não tentes a Deus.

    E vergonha!... de quê, vida?
    Vergonha de ser querida,
    Vergonha de ser feliz!
    Porquê?... porquê em teu semblante
    A pallida côr da amante
    A minha ventura diz?

    Pois quando eras tam vermelha
    Não vinha zangão e abelha
    Emtôrno de ti zumbir?
    Não ouvias entre as flores
    Historias dos mil amores
    Que não tinhas, repetir?

    Que hãode elles dizer agora?
    Que pendente e de quem chora
    É o teu languido olhar?
    Que a tez fina e delicada
    Foi, de ser muito bejada,
    Que te veio a desbotar?

    Deixa-os: pallida ou corada,
    Ou isempta ou namorada,
    Que brilhe no prado flor.
    Que fulja no ceo estrêlla,
    Ainda é ditosa e bella
    Se lhe dão só um amor.

    Ai! deixa-os, e no meu seio
    Vem, querida, sem receio
    Vem a frente reclinar.
    Que pallida estás, que linda!
    Oh! quanto mais te amo ainda
    Des que te fiz desbotar.



XIV.

FLOR DE VENTURA.


    A flor de ventura
    Que amor me intregou,
    Tam bella e tam pura
    Jamais a creou:

    Não brota na selva
    De inculto vigor,
    Não cresce entre a relva
    De virgem frescor;

    Jardins de cultura
    Não póde habitar
    A flor de ventura
    Que amor me quiz dar.

    Semente é divina
    Que veio dos ceus;
    Só n’alma germina
    Ao sôpro de Deus.

    Tam alva e mimosa
    Não ha outra flor;
    Uns longes de rosa
    Lhe avivam a côr;

    E o aroma... Ai! delirio
    Suave e sem fim!
    É a rosa, é o lirio.
    É o nardo, o jasmim;

    É um philtro que apura,
    Que exalta o viver,
    E em doce tortura
    Faz de âncias morrer.

    Ai! morrer... que sorte
    Bemditta de amor!
    Que me leve a morte
    Bejando-te, flor.



XV.

BELLA D’AMOR.


    Pois essa luz scintillante
    Que brilha no teu semblante
    D’onde lhe vem o splendor?
    Não sentes no peito a chamma
    Que aos meus suspiros se inflamma
    E toda reluz de amor?

    Pois a celeste fragancia
    Que te sentes exhalar,
    Pois, dize, a ingenua elegancia
    Com que te ves ondular,
    Como se baloiça a flor
    Na primavera em verdor.
    Dize, dize: a natureza
    Póde dar tal gentileza?
    Quem t’a deu senão amor?

    Vê-te a esse espelho, querida,
    Ai! vê-te por tua vida,
    E diz se ha no ceo estrêlla,
    Diz-me se ha no prado flor
    Que Deus fizesse tam bella
    Como te faz meu amor.



XVI.

OS CINCO SENTIDOS.


    São bellas--bem o sei, essas estrêllas,
    Mil côres--divinaes têem essas flores;
    Mas eu não tenho, amor, olhos para ellas:
            Em toda a natureza
            Não vejo outra belleza
            Senão a ti--a ti!

    Divina--ai! sim, será a voz que affina
    Saudosa--na ramagem densa, umbrosa.
    Será; mas eu do rouxinol que trina
            Não oiço a mellodia,
            Nem sinto outra harmonia
            Senão a ti--a ti!

    Respira--n’aura que entre as flores gyra,
    Celeste--incenso de perfume agreste.
    Sei... não sinto: minha alma não aspira,
            Não percebe, não toma
            Senão o doce aroma
            Que vem de ti--de ti!

    Formosos--são os pomos saborosos,
    É um mimo--de nectar o racimo:
    E eu tenho fome e sêde... sequiosos,
            Famintos meus desejos
            Estão... mas é de bejos,
            E so de ti--de ti!

    Macia--deve a relva luzidia
    Do leito--ser porcerto em que me deito.
    Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
            Sentir outras carícias,
            Tocar n’outras delicias
            Senão em ti--em ti!

    A ti! ai, a ti só os meus sentidos
            Todos n’um confundidos,
            Sentem, ouvem, respiram;
            Em ti, por ti deliram.
            Em ti a minha sorte,
            A minha vida em ti;
            E quando venha a morte,
            Será morrer por ti.



XVII.

ROSA E LIRIO.


          A rosa
        É formosa;
          Bem sei.
    Porque lhe chamam--flor
          D’amor,
          Não sei.

          A flor,
        Bem de amor
          É o lirio;
    Tem mel no aroma,--dor
          Na côr
          O lirio.

          Se o cheiro
        É fagueiro
          Na rosa,
    Se é de belleza... mor
          Primor
          A rosa,

          No lirio
        O martyrio
          Que é meu
    Pintado vejo:--côr
          E ardor
          É o meu.

          A rosa
        É formosa,
          Bem sei...
    E será de outros flor
          D’amor...
          Não sei.



XVIII.

COQUETTE DOS PRADOS.


    Coquette dos prados,
    A rosa é uma flor
    Que inspira e não sente
    O incanto d’amor.

    De purpura a vestem
    Os raios do sol;
    Suspiram por ella
    Ais do rouxinol:

    E as galas que traja
    Não as agradece,
    E o amor que accende
    Não o reconhece.

    Coquette dos prados
    Rosa, linda flor,
    Porquê, se o não sentes,
    Inspiras amor?



XIX.

CASCAES


    Acabava alli a terra
    Nos derradeiros rochedos,
    A deserta arida serra
    Por entre os negros penedos
    Só deixa viver mesquinho
    Triste pinheiro maninho.

    E os ventos despregados
    Sopravam rijos na rama,
    E os ceos turvos, annuviados,
    O mar que incessante brama...
    Tudo alli era braveza
    De selvagem natureza.

    Ahi, na quebra do monte,
    Entre uns juncos mal-medrados,
    Sêcco o rio, sêcca a fonte,
    Hervas e matos queimados,
    Ahi n’essa bruta serra,
    Ahi foi um ceo na terra.

    Alli sós no mundo, sós,
    Sancto Deus! como vivemos!
    Como eramos tudo nós
    E de nada mais soubemos!
    Como nos folgava a vida
    De tudo o mais esquecida!

    Que longos bejos sem fim,
    Que fallar dos olhos mudo!
    Como ella vivia em mim,
    Como eu tinha n’ella tudo,
    Minha alma em sua razão
    Meu sangue em seu coração!

    Os anjos aquelles dias
    Contaram na eternidade:
    Que essas horas fugidias,
    Seculos na intensidade,
    Por millenios marca Deus
    Quando as dá aos que são seus.

    Ai! sim foi a tragos largos,
    Longos, fundos que a bebi
    Do prazer a taça:--amargos
    Depois... depois os senti
    Os travos que ella deixou...
    Mas como eu ninguem gosou.

    Ninguem: que é preciso amar
    Como eu amei--ser amado
    Como eu fui; dar, e tomar
    Do outro ser a quem se ha dado,
    Toda a razão, toda a vida
    Que em nós se annulla perdida.

    Ai, ai! que pesados annos
    Tardios depois vieram!
    Oh, que fataes desinganos,
    Ramo a ramo, a desfizeram
    A minha choça na serra,
    Lá onde se acaba a terra!

    Se o visse... não quero vê-lo
    Aquelle sítio incantado;
    Certo estou não conhecê-lo,
    Tam outro estará mudado,
    Mudado como eu, como ella,
    Que a vejo sem conhecê-la!

    Inda alli acaba a terra,
    Mas ja o ceo não começa:
    Que aquella visão da serra
    Sumiu-se na treva espessa,
    E deixou nua a bruteza
    D’essa agreste natureza.



XX.

ESTES SITIOS!


    Olha bem estes sitios queridos,
    Vê-os bem n’este olhar derradeiro...
    Ai! o negro dos montes erguidos,
    Ai! o verde do triste pinheiro!
    Que saudades que d’elles teremos...
    Que saudade! ai, amor, que saudade!
    Pois não sentes, n’este ar que bebêmos,
    No acre cheiro da agreste ramagem,
    Estar-se alma a tragar liberdade
    E a crescer de innocencia e vigor!
    Oh! aqui, aqui só se ingrinalda
    Da pureza da rosa selvagem,
    E contente aqui só vive Amor.
    O ar queimado das salas lhe escalda
    De suas azas o niveo candor,
    E na frente arrugada lhe cresta
    A innocencia infantil do pudor.
    E oh! deixar taes delicias como ésta!
    E trocar este ceo de ventura
    Pelo inferno da escrava cidade!
    Vender alma e razão á impostura,
    Ir saudar a mentira em sua côrte,
    Ajoelhar em seu throno á vaidade,
    Ter de rir nas angústias da morte,
    Chamar vida ao terror da verdade...
    Ai! não, não... nossa vida acabou,
    Nossa vida aqui toda ficou.
    Diz-lhe a adeus n’este olhar derradeiro,
    Dize á sombra dos montes erguidos,
    Dize-o ao verde do triste pinheiro,
    Dize-o a todos os sitios queridos
    D’esta ruda, feroz soledade,
    Paraizo onde livres vivemos...
    Oh! saudades que d’elle teremos,
    Que saudade! ai, amor, que saudade!



XXI.

NÃO TE AMO.


    Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma.
            E eu n’alma--tenho a calma,
            A calma--do jazigo.
            Ai! não te amo, não.

    Não te amo, quero-te: o amor é vida.
            E a vida--nem sentida
            A trago eu ja commigo.
            Ai, não te amo, não!

    Ai! não te amo, não; e só te quero
            De um querer bruto e fero
            Que o sangue me devora,
            Não chega ao coração.

    Não te amo. Es bella; e eu não te amo, ó bella.
            Quem ama a aziaga estrêlla
            Que lhe luz na má hora
            Da sua perdição?

    E quero-te, e não te amo, que é forçado,
            De mau feitiço azado
            Este indigno furor.
            Mas oh! não te amo, não.

    E infame sou, porque te quero; e tanto
            Que de mim tenho espanto,
            De ti medo e terror...
            Mas amar!... não te amo, não.



XXII.

NÃO ES TU.


    Era assim, tinha esse olhar,
    A mesma graça, o mesmo ar,
    Corava da mesma côr,
    Aquella visão que eu vi
    Quando eu sonhava de amor,
    Quando em sonhos me perdi.

    Toda assim; o porte altivo,
    O semblante pensativo,
    E uma suave tristeza
    Que por toda ella descia
    Como um veo que lhe involvia,
    Que lhe adoçava a belleza.

    Era assim; o seu fallar,
    Ingenuo e quasi vulgar,
    Tinha o podêr da razão
    Que penetra, não seduz:
    Não era fogo, era luz
    Que mandava ao coração.

    Nos olhos tinha esse lume,
    No seio o mesmo perfume,
    Um cheiro a rosas celestes,
    Rosas brancas, puras, finas,
    Viçosas como boninas,
    Singelas sem ser agrestes.

    Mas não es tu... ai! não es:
    Toda a illusão se desfez.
    Não es aquella que eu vi,
    Não es a mesma visão,
    Que essa tinha coração,
    Tinha, que eu bem lh’o senti.



XXIII

BELLEZA.


    Vem do amor a Belleza,
    Como a luz vem da chamma.
    É lei da natureza:
    Queres ser bella?--ama.
            Fórmas de incantar,
            Na tella o pincel
            As póde pintar;
            No bronze o buril
            As sabe gravar;
            E estátua gentil
            Fazer o cinzel
            Da pedra mais dura...
    Mas Belleza é isso?--Não; só formosura.

            Surrindo entre dores
            Ao filho que adora
            Inda antes de o ver,
            --Qual surri a aurora
            Chorando nas flores
            Que estão por nascer--
    A mãe é a mais bella das obras de Deus,
    Se ella ama!--O mais puro do fogo dos ceus
    Lhe ateia essa chamma de luz crystallina:

    É a luz divina
    Que nunca mudou,
    É luz... é a Belleza
    Em toda a pureza
    Que Deus a creou.



XXIV.

ANJO ES.


    Anjo es tu, que esse podêr
    Jamais o teve mulher,
    Jamais o hade ter em mim.
    Anjo es, que me domina
    Teu ser o meu ser sem fim;
    Minha razão insolente
    Ao teu capricho se inclina,
    E minha alma forte, ardente,
    Que nenhum jugo respeita,
    Covardemente sujeita
    Anda humilde a teu podêr.
    Anjo es tu, não es mulher.

    Anjo es. Mas que anjo es tu?
    Em tua frente annuviada
    Não vejo a c’roa nevada
    Das alvas rosas do ceo.
    Em teu seio ardente e nu
    Não vejo ondear o veo
    Com que o soffrego pudor
    Vela os mysterios d’amor.
    Teus olhos têem negra a côr,
    Côr de noite sem estrêlla;
    A chamma é vivaz e é bella,
    Mas luz não tem.--Que anjo es tu?
    Em nome de quem vieste?
    Paz ou guerra me trouxeste
    De Jehovah ou Belsebú?

    Não respondes--e em teus braços
    Com phreneticos abraços
    Me tens apertado, estreito!...
    Isto que me cai no peito
    Que foi?... Lagryma?--Escaldou-me...
    Queima, abraza, ulcéra... Dou-me,
    Dou-me a ti, anjo malditto,
    Que este ardor que me devora
    É ja fogo de precito,
    Fogo eterno, que em má hora
    Trouxeste de lá... De donde?
    Em que mysterios se esconde
    Teu fatal, estranho ser!
    Anjo es tu ou es mulher?



XXV.

VIBORA.


    Como a vibora gerado,
    No coração se formou
    Este amor amaldiçoado
    Que á nascença o espedaçou.

    Para elle nascer morri;
    E em meu cadaver nutrido,
    Foi a vida que eu perdi
    A vida que tem vivido.



FOLHAS CAHIDAS.

LIVRO SEGUNDO.



I.

BARCA BELLA.


    Pescador da barca bella,
    Onde vas pescar com ella,
        Que é tam bella,
        Oh pescador?

    Não ves que a última estrêlla
    No ceo nublado se vela?
        Colhe a vela,
        Oh pescador!

    Deita o lanço com cautella,
    Que a sereia canta bella...
        Mas cautella,
        Oh pescador!

    Não se inrede a rede n’ella,
    Que perdido é remo e vela
        Só de vê-la,
        Oh pescador.

    Pescador da barca bella,
    Inda é tempo, foge d’ella,
        Foge d’ella
        Oh pescador!



II.

A COROA.


    Bem sei que é toda de flores
    Essa coroa d’amores
    Que na frente vais cingir.
    Mas é coroa--é reinado;
    E a pôsto mais arriscado
    Não se póde hoje subir.

    N’esses reinos populosos
    Os vassallos revoltosos
    Tarde ou cedo dão a lei.
    Quem hade conter, domá-los,
    Se são tantos os vassallos
    E um só o pobre do rei?

    Não vejo, rainha bella,
    Para fugir essa estrella
    Que os reis persegue sem dó,
    Mais que um meio--fallo serio:
    É pôr limites ao imperio
    E ter um vassallo só.



III.

SINA.


    Por todas quantas estrêllas
    Tem o ceo que possam mais,
    Pelas flores virginaes
    De que se c’roam donzellas,
    Pelas lagrymas singellas
    Que o primeiro amor derrama,
    Por aquella etherea chamma
    Que a mão de Deus accendeu
    E que na terra allumia
    Quanto ha na terra do ceu!
    Por tudo quanto eu queria
    Quando eu sabia querer,
    E por tudo quanto eu cria
    Quando me era dado crer!
    Bem fadada seja a vida
    Que por éstas folhas brancas[11]
    Sua historia hade escrever!
    Que as dores lhe venham mancas
    E com azas o prazer!

    Ésta sina que lhe dou,
    Bruxa não n’a adivinhou,
    Nem duende m’a insinou:
    Li-a eu por meu condão
    Em seus olhos innocentes,
    Transparentes--transparentes
    Até dentro ao coração.


NOTAS DE RODAPÉ:

[11] As folhas do album em que se escreveram estes versos.



IV.

AI HELENA!


    Ai Helena! de amante e de espôso
    Ja o nome te faz suspirar,
    Ja tua alma singela presente
    Esse fogo de amor delicioso
    Que primeiro nos faz palpitar!...
    Oh! não vas, donzellinha innocente,
    Não te vas a esse ingano intregar:
    É amor que te illude e te mente,
    É amor que te hade mattar!
    Quando o sol n’estes montes desertos
    Deixa a luz derradeira apagar,
    Com as trevas da noite que espanta
    Véem os anjos do inferno incubertos
    A sua victima incauta affagar.
    Doce é a voz que adormece e quebranta,
    Mas a mão do traidor... faz gelar.
    Treme, foge do amor que te incanta,
    É amor que te hade mattar.



V.

THE ROSE--A SIGH.[12]


    If this delicious, grateful flower,
    Which blows but for a little hour,
    Should to the sight so lovely be,
    As from it’s fragrance seems to me,
    A sigh must then it’s colour show,
    For that is the softest joy I know.
    And sure the rose is like a sigh,
    Borne just to soothe and then--to die.


NOTAS DE RODAPÉ:

[12] By a young lady born blind.



V.

A ROSA--UM SUSPIRO[13]


    Se ésta flor tam bella e pura,
    Que apenas uma hora dura,
    Tem pintado no matiz
    O que o seu perfume diz,
    Porcerto na linda côr
    Mostra um suspiro d’amor:
    Dos que eu chego a conhecer
    É este o maior prazer.
    E a rosa como um suspiro
    Hade ser; bem se discorre:
    Tem na vida o mesmo gyro,
    É um gôsto que nasce e--morre.


NOTAS DE RODAPÉ:

[13] Por uma menina cega de nascença.



VI.

RETRATTO.

(N’UM ALBUM)


    Ah! despreza o meu retratto
    Que lhe eu queria aqui pôr!
    Tem medo que lhe desfeie
    O seu livro de primor?
    Pois saiba que por despique
    Eu sei tambem ser pintor:
    Co’esta penna por pincel,
    E a tinta do meu tinteiro,
    Vou fazer o seu retratto
    Aqui ja de corpo inteiro.

      Vamos a isto.--Sentada
      Na cadeira ‘moyen-âge,’
      O cabello en ‘chatellaines,’
      As mangas sôltas.--É o traje.

        Em longas pregas negras
        Caia o velludo e arraste;
        De si com desdem regio
        Com o pésinho o affaste...

      N’essa attitude! Está bem:
      Agora mais um geitinho;
      A airosa cabeça a um lado
      E o lindo pé no banquinho.

    Aqui estão os contornos, são estes,
    Nem Daguerre lh’os tira melhor.
    Este é o ar, ésta a ‘pose,’ eu lh’o juro,
    E o trajar que lhe fica melhor.

      Vamos agora ao difficil:
      Tirar feição por feição;
      Intendê-las, que é o ponto,
      E dar-lhe a justa expressão.

    Os olhos são côr da noite,
    Da noite em seu começar,
    Quando inda é joven, incerta,
    E o dia vem de acabar;

    Têem uma luz que vai longe,
    Que faz gôsto de queimar:
    É uma especie de lume
    Que serve só de abrazar.

    Na bôcca há um surriso amavel.
    Amavel é... mas queria
    Saber se é todo bondade
    Ou se meio é zombaria.

    Ninguem m’o diz? O retratto
    Incompleto ficará,
    Que n’estas duas feições
    Todo o ser, toda a alma está.

    Pois fiel como um espelho
    É tudo o que n’elle fiz;
    E o que lhe falta--que é muito,
    Tambem o espelho o não diz.



VII.

LUCINDA.


    Ergue a frente, lirio,
    Ergue a branca frente!
    O astro do delirio
    Ja surgiu no oriente.

    Ves, o sol ardente
    Lá cahiu no mar;
    A frente pendente
    Ergue a respirar!

    Alvo é o luar,
    Teu alvor não cresta;
    A hora de gosar,
    De viver é ésta.

    Longa foi a sésta
    Longo o teu dormir;
    Ergue a branca testa,
    Tempo é de surgir!

    Ja se abre a surrir
    Tua bôcca linda...
    Despertar, sentir
    Ou sonhar é ainda?

    Sonho que não finda
    Será o teu sonhar,
    Se a dormir, Lucinda,
    Te sentes amar.



VIII.

AS DUAS ROSAS.


    Sôbre se era mais formosa
    A vermelha ou branca rosa,
    Ardeu seculos a guerra
        Em Inglaterra.

    Paz entre as duas, jamais!
    Reinar ambas as rivais,
    Tambem não; e uma ceder
        Como hade ser?

    Faltei eu lá na Inglaterra
    Para acabar com a guerra.
    Ei-las aqui bem eguaes,
        Mas não rivaes.

    Atei-as em laço estreito:
    Que artista fui, com que geito!
    E oh! que lindas são, que amores
        As minhas flores!

    Dirão que é cópia;--bem sei:
    Que todo inteiro o roubei
    Meu pensamento brilhante
        Do teu semblante...

    Será. Mas se é tam bello
    Que lhe deem esse modello,
    Do meu quadro, na verdade,
       Tenho vaidade.



IX.

VOZ E AROMA.


    A brisa vaga no prado,
    Perfume nem voz não tem;
    Quem canta é o ramo agitado,
    O aroma é da flor que vem.

    A mim, tornem-me essas flores
    Que uma a uma eu vi murchar,
    Restituam-me os verdores
    Aos ramos que eu vi seccar...

    E em torrentes de harmonia
    Minha alma se exhalará,
    Ésta alma que muda e fria
    Nem sabe se existe ja.



X.

SEUS OLHOS.


    Seus olhos--se eu sei pintar
    O que os meus olhos cegou--
    Não tinham luz de brilhar,
    Era chamma de queimar;
    E o fogo que a ateou
    Vivaz, eterno, divino,
    Como o facho do Destino.

    Divino, eterno!--e suave
    Ao mesmo tempo: mas grave
    E de tam fatal podêr,
    Que, um só momento que a vi,
    Queimar toda alma senti...
    Nem ficou mais de meu ser,
    Senão a cinza em que ardi.



XI.

A DÉLIA.


    Cuidas tu que a rosa chora,
    Que é tammanha a sua dor,
    Quando, ja passada a aurora,
    O sol, ardente de amor,
    Com seus bejos a devora?
    --Feche virgineo pudor
    O que inda é botão agora
    E ámanhan hade ser flor;
    Mas ella é rosa n’esta hora.
    Rosa no aroma e na côr.
    --Para ámanhan o prazer
    Deixe o que ámanhan viver.
    Hoje, Délia, é nossa a vida;
    Ámanhan... o que hade ser?
    A hora de amor perdida
    Quem sabe se hade volver?
    Não desperdices, querida,
    A duvidar e a soffrer
    O que é mal gasto da vida
    Quando o não gasta o prazer.



XII.

A JOVEN AMERICANA.


    Donde é que te eu vi, donzella,
    E o que eras tu n’esta vida
    Quando não tinhas vestida
    A fórma de virgem bella
    Que ora te vejo trajar?

    Estrêlla foste no ceo,
    Serias no prado flor?
    Ou, no diaphano splendor
    De que Iris faz o seu veo,
    Estavas, Silpha, a bordar?

    Não houve poeta ainda
    Que te não visse e cantasse,
    Mulher que não te invejasse,
    Nem pintor que a face linda
    Te não fôsse copiar.

    Seculos tens.--E ah!... ja sei
    Quem es, quem foste e hasde ser:
    Bem te eu estava a conhecer
    Quando primeiro te olhei
    Sem te podêr estranhar.

    Com Deus e co’a Liberdade
    De nossas terras fugiste
    Quando perdidos nos viste,
    E te foste á soledade
    Do novo-mundo acoitar.

    Pois que ora piedosa vens
    E nos sentes resurgir,
    Oh! não tornes a fugir,
    Que melhor patria não tens
    Nem que mais te saiba amar.

    Teu natal celebraremos
    Hoje e sempre: teus amigos
    Somos na lealdade antigos,
    E no ardor novos seremos,
    No desvéllo em te adorar:

    Porque tu es o Ideal
    Da só belleza--do Bem;
    Não es estranha a ninguem,
    E de ti só foge o mal
    Que te não póde incarar.



XIII.

ADEUS, MÃE!


    --‘Adeus, mãe! adeus, querida,
    Que eu ja não posso co’a vida,
    E os anjos chamam por mim.
    Adeus, mãe, adeus!... Assim,
    Juncta os teus labios aos meus,
    E recebe o último adeus

    N’este suspiro... Não chores,
    Não chores: aquellas dores
    Ja sinto accalmar em mim.
    Adeus, mãe, adeus!... Assim,
    Juncta os teus labios aos meus...
    Um bejo--um último... Adeus!’

    E o corpo desanimado
    No collo da mãe cahia;
    E ella o corpo... só pesado,
    Só mais pesado o sentia!
    Não se lamenta, não chora,
    E quasi a surrir, dizia:
    --‘Que tem este filho agora,
    Que tanto pésa? Não posso...’
    E uma a uma, osso por osso,
    Com a mão trémula tenta
    As mãosinhas descarnadas,
    As faces cavas, myrradas,
    A testa inda morna e lenta.
    --‘Que febre, que febre!’ diz;
    E em tudo pensa a infeliz,
    Tudo que ha mau lhe occorreu,
    Tudo--menos que morreu.
    Como nos gelos do norte
    O somno traidor da morte
    Ingana o desfallecido
    Que imagina adormecer,
    Assim cançado, esvahido
    De tam longo padecer,
    Ja não ha no coração
    Da mãe fôrça de sentir;
    Não tem ja lume a razão
    Senão só para a illudir.

    Acorda, ó mãe desgraçada,
    Que é tempo de despertar!
    Anda ver a eça armada,
    As luzes que ardem no altar.
    Ouves? É a rouca toada
    Dos padres a psalmear?...
    Vamos, que a hora é chegada,
    É tempo de o amortalhar.

      E os anjos cantavam:
          ‘Alleluia!’
      E os sanctos clamavam:
          ‘Hosanna!’

    Ao triste cantar da terra
    Responde o cantar do ceu;
    Todos lhe bradam:--‘morreu!’
    E a todos o ouvido cerra.

    E os sinos a tocar,
    E os padres a rezar,
    E ella ainda a accalentar
    Nos braços o filho morto,
    Que ja não tem mais confôrto,
    Mais socêgo n’este mundo
    Que o jazigo humido e fundo
    Onde hade ir a sepultar.

    Levae, ó anjos de Deus,
    Levae essa dor aos ceus.
    Com a alma do innocente
    Aos pés do Juiz Clemente
    Ahi fique a sancta dor
    Rogando á Eterna Bondade
    Que extenda a immensa piedade
    A quantos peccam d’amor.



XIV.

AVE, MARIA!


    Maria, doce mãe dos desvalidos,
            A ti clamo, a ti brado!
    A ti sobem, senhora, os meus gemidos,
            A ti o hymno sagrado
    Do coração de um pae voa, ó Maria,
            Pela filha innocente.
    Com sua debil voz que balbucia,
            Piedosa mãe clemente,
    Ella ja sabe, erguendo as mãos tenrinhas,
            Pedir ao Pae dos ceos
    O pão de cada dia. As preces minhas
            Como irão ao meu Deus,
    Ao meu Deus que é teu filho e tens nos braços,
            Se tu, mãe de piedade,
    Me não tomas por teu? Oh! rompe os laços
            Da velha humanidade;
    Despe de mim todo outro pensamento
            E van tenção da terra;
    Outra glória, outro amor, outro contento
            De minha alma desterra.
    Mãe, oh! mãe, salva o filho que te implora
            Pela filha querida.
    Demais tenho vivido, e só agora
            Sei o preço da vida,
    D’esta vida, tam mal gasta e prezada
            Porque minha só era...
    Salva-a, que a um sancto amor está votada,
            N’elle se regenera.



XV.

OS EXILADOS.

Á SENHORA ROSSI-CACCIA.[14]


    Elles tristes, das praias do destêrro,
    Os olhos longos e arrazados de agua
    Estendem para aqui... Cravado o ferro
    Da saudade têem n’alma; e é negra mágua
    A que lhes ralla os corações afflictos,
    É a maior da vida--são proscrittos.
    Dor como outra não ha, é a dor que os matta!
    Dizer eu: ‘Essa terra é minha... minha,
    Que nasci n’ella, que a servi, a ingrata!
    Que lhe dei... dei por ella quanto tinha,
    Sangue, vida, saude, os bens da sorte...
    E ella, por galardão, me intrega á morte!’

    Morte lenta e cruel--a de Ugolino![15]
          Bem lhes quizeram dar...
    Mas não será assim: sôpro divino
          De bondade e nobreza
          Não o póde apagar
    Nos corações da gente portugueza
          Esse rancor de fera
    Que em almas negras, negro e vil impera.

          Tu, genio da Harmonia,
    Tu sólta a voz em que triumpha a glória,
          Com que suspira amor!
    Bella d’enthusiasmo e de fervor,
    Ergue-te, ó Rossi, tua voz nos guia:
          A tua voz divina
    Hoje um echo immortal deixa na historia.

          Inda no mar d’Egina
          Soa o hymno d’Alceu;
          E atravessaram seculos
          Os cantos de Tyrtheu.
          Mais poderosa e válida
          A tua voz será;
          A tua voz etherea,
          Tua voz não morrerá.

    Nós no templo da patria pendurâmos
          Ésta c’roa singela
    Que de myrtho e de rosas intrançâmos
          Para essa fronte bella:
    Aqui, de voto, ficará pendente,
          E um culto de saudade
          Aqui, perennemente,
    Lhe daremos no altar da Liberdade.


NOTAS DE RODAPÉ:

[14] Cantando em um baile de subscripção que se deu em Lisboa em 29 de
Março de 1845 a favor dos que n’esse anno estavam emigrados por fugir
ás perseguições do Govêrno.

[15] Foi morto á fome com os filhos.



XVI.

PREITO.


    É lei do tempo, Senhora,
    Que ninguem domine agora
    E todos queiram reinar.
    Quanto vale n’esta hora
    Um vassallo bem sujeito,
    Leal de homenage e preito
    E facil de governar?

    Pois o tal sou eu, Senhora:
    E aqui juro e firmo agora
    Que a um despotico reinar
    Me rendo todo n’esta hora,
    Que a liberdade sujeito...
    Não a reis!--outro é meu preito:
    Anjos me hãode governar.



XVII.

NO LUMIAR.


    Era um dia de Abril; a primavera
    Mostrava apenas seu virgineo seio
    Entre a folhagem tenra; não vencêra,
    De todo, o sol o mysterioso inleio
    Da nevoa rara e fina que extendêra
    A manhan sôbre as flores; o gorgeio
    Das aves inda timido e infantil...
            Era um dia de Abril.
    E nós iamos lentos passeiando
    De vergel em vergel, no descuidado
    Socêgo d’alma que se está lembrando
            Das luctas do passado,
    Das vagas incertezas do porvir.
    E eu não cançava de admirar, de ouvir,
    Porque era grande, um grande homem devéras
    Aquelle duque--alli maior ainda,
    Alli no seu Lumiar, entre as sinceras
    Bellezas d’esse parque, entre essas flores,
    A qual mais bella e de mais longe vinda
            Esmaltar de mil côres
    Bosque, jardim, e as relvas tam mimosas,
    Tam suaves ao pé--muito ha cançado
    De pisar alcatifas ambiciosas,
    De tropeçar no perigoso estrado
            Das vaidades da terra.
    E o velho duque, o velho homem d’Estado,
            Ao fallar d’essa guerra
    Distante--e das paixões da humanidade,
            Surria malicioso
    D’aquelle surrir fino sem maldade,
    Que tam seu era, que, entre desdenhoso
    E benevolo, a quanto lhe sahia
    Dos labios dava um cunho de nobreza,
            De razão superior.
    E então como elle a amava e lhe queria
    A ésta pobre terra portugueza!
    Velha tinha a razão, velha a experiencia,
            Joven só esse amor.

    Tam joven, que inda cria, inda esperava,
    Inda tinha a fe viva da innocencia!...
            Eu, na fôrça da vida,
    Tristemente de mim me invergonhava.
    --Passeavamos assim, e em reflectida
    Meditação tranquilla descuidados
    Iamos sós, ja sem fallar, descendo
    Por entre os velhos olmos tam copados,
    Quando sentimos para nós crescendo
    Rumor de vozes finas que zumbia
    Como enxame de abelhas entre as flores,
    E vimos, qual Diana entre os menores
    Astros do ceo, a fórma que se erguia.
    Sôbre todas gentil, d’essa extrangeira
    Que se esperava alli. Perfeita, inteira
    No velho amavel renasceu a vida
    E a graça facil. Cuidei ver o antigo
    O nobre Portugal que resurgia
            No venerado amigo;
    E na formosa dama que surria,
            O genio da subida,
    Rara e fina elegancia que a nobreza,
    O gòsto, o amor do Bello, o instincto da Arte
    Reune e faz irmãos em toda a parte;
            Que affere a grandeza
    Pela medida só dos pensamentos,
    Do stylo de viver, dos sentimentos,
    Tudo o mais como futil desprezando.

    Pensei que a saudar o velho illustre
            Em seus ultimos dias
    E a despedir-se, até Deus sabe quando,
    De nossas praias tristes e sombrias,
    Vinha esse genio... Tristes e sombrias,
    Que o sol lhe foge, lhe esmorece o lustre,
    E onde tudo o que é alto vai baixando...

    O triste, o que não tem ja sol que o aqueça
    Sou eu talvez--que, á míngua de fe, sinto
    O cerebro gelar-me na cabeça
    Porque no coração o fogo é extincto.
            Elle não era assim,
    Ou, sabía fingir melhor do que eu!

    --Como o nobre corcel que invelheceu
    Nas guerras, ao sentir o aureo telim
    E as armas sôbre o dorso descarnado,
    Remoça o garbo, em juvenil meneio
            Franja de espuma o freio,
    E honra os brazões da casa em que foi nado.

    Nunca me hade esquecer aquelle dia!
    Nem os olhos, as fallas, e a sincera
    Admiração da bella dama ingleza
            Por tudo quanto via;
    O fructo, a flor, o aroma, o sol que os gera,
    E ésta vivaz, vehemente natureza,
            Toda de fogo e luz,
    Que ama incessante, que de amar não cança,
            E continua produz
    Nos fructos o prazer, na flor a esp’rança.

    Alli as nações todas se junctaram,
    Alli as várias línguas se fallaram;
            A Europa convidada
    Veio ao festim--não ao festim, ao preito.
    Vassallagem rendida foi prestada
            Ao talento, á belleza,
    A quanto n’alma infunde amor, respeito,
    Porque é devéras grande:--que a grandeza
            Os homens não a dão;
            Põe-na por sua mão
            N’aquelles que são seus,
            Nos que escolheu--só Deus.

    Oh! minha pobre terra, que saudades
    D’aquelle dia! Como se me aperta
    O coração no peito co’as vaidades,
    Co’as miserias que ahi vejo andar álerta,
    Á sôlta, appregoando-se! Na intriga,
    Na traição, na calúmnia é forte a liga,
    É fraca em tudo o mais...

                              Tu, socegado
    Descança no sepulchro; e cerra, cerra
    Bem os olhos, amigo venerado,
    Não vejas o que vai por nossa terra.
    Eu fecho os meus, para trazer mais viva
            Na memoria a tua imagem
    E a dessa bella Ingleza que se esquiva
            De nós entre a folhagem
    Dos bosques de Parthenope. Cançado,
            Fito n’esta miragem
    Os olhos d’alma, em quanto que arrastado,
            Vai o tardio pé
            Por este que inda é,
    Que cedo não será, bem cedo--em mal!
            O velho Portugal.[16]


NOTAS DE RODAPÉ:

[16] Estes versos foram inspirados pela visita da celebrada Mrs.
Northon á quinta do Lumiar, onde o fallecido duque de Palmella reuniu,
para a festejar, alguns poucos amigos escolhidos. Foi nos ultimos
tempos de sua vida. Mrs. Northon reside actualmente em Napoles, a
Parthenope de que falla o texto.



XVIII.

A UM AMIGO.


    Fiel ao costume antigo,
    Trago ao meu joven amigo
    Versos proprios d’este dia.
    E que de os ver tam singelos,
    Tam simples como eu, não ria
    Qualquer os fara mais bellos,
    Ninguem tam d’alma os faria.

    Que sôbre a flor de seus annos
    Soprem tarde os desinganos;
    Que emtôrno os bafeje amor,
    Amor da espôsa querida,
    Prolongando a doce vida
    Fructo que succeda á flor.

    Recebo este voto, amigo,
    Que eu, fiel ao uso antigo,
    Quiz trazer-te n’este dia
    Em poucos versos singelos,
    Qualquer os fara mais bellos,
    Ninguem tam d’alma os faria.



XIX.

OS LUSIADAS.

EPILOGO DE PAGGI.


I.

    Co’a doce voz o cysne lusitano
    Assim as proprias feras abrandava;
    Mas nem o Tejo, de seu canto ufano,
    Nem as ingratas Tagides tocava:
    De seu impio destino deshumano
    Nunca as íras fataes, nunca domava;
    Nem achou entre os seus humanidade
    Quem moveria as pedras á piedade.


II.

    Ingrata patria, o ingenho sublimado
    Digno de um capitolio em Roma antiga,
    Tu não o ergueste d’esse baixo estado
    Em que só por tua glória se affadiga!
    O ingenho que te inveja mallogrado
    Toda a nação de meritos amiga,
    Tu na vida em miserias o deixaste,
    E em leito vil á fome o assacinaste!


III.

    Vai! Sua glória é mais hoje a maravilha
    Das gentes, porque mais o perseguiste;
    Morre o teu nome quando o seu mais brilha,
    Despojam delle a tua lingua triste;
    Iberia o adoptou, França o perfilha,
    Britannia o quer; e agora eterno existe,
    Que n’um e n’outro italico idioma
    Entre os seus vates o colloca Roma.


IV.

    Tu fica-te c’os ossos deshonrados
    Que te accusam de ingrata ao ceo e á terra;
    Seu spirito, esse vai onde prezados
    São virtude e talento, e onde ímpia guerra
    Stulto o podêr não faz aos mais honrados:
    Mais de outros ja que teu, ja não se incerra
    N’um canto do orbe sua altiva fama,
    Que Augusto a ampara e um Alexandre a acclama


V.

    Lá onde surge de alto monte, e brilha
    Sôbre a escolhida grey de Deus a estrêlla,
    E egual áquella antiga maravilha
    Que os reis guiou a Deus, sôbre os reis véla,
    Lá onde ao merito o podêr se humilha,
    Beja a paz da justiça a face bella,
    E de illustre carvalho á sombra amena
    Descança Roma no velar de Siena,[18]


VI.

    Lá vai, minha obra, e d’esta luz roubada
    Tu leva á patria musa esses primores;
    Em falla ignota estava sepultada,
    Raios de extranho sol são seus fulgores.
    Vai, viverás: tambem com luz furtada
    Deu vida Prometheu. Se mais não fores,
    Serás reflexo de belleza, lustre,
    E de eterno splendor émula illustre.[19]



XIX.

LA LUSIADA.

EPILOGO DI PAGGI.[17]


I.

    Cotal cantava il lusitano cigno
    Molcendo con sue voce anco le fere,
    Non che l’amato patrio Tago e’l Migno,
    E le del canto suo Tagide altere:
    Che pur del suo destino empio e maligno
    Non puote unqua addolcir l’ire severe;
    Non trovando fra suoi humanitade
    Quei ch’i scelsi avria mossi anco a pietade.


II.

    Potesti, ingrata patria, un spirto degno
    D’un campidoglio in una Roma antica,
    Non sollevar da basso stato, indegno
    Di cui fiè per te gloria ogni fatica?
    Un spirto che t’invidia al maggior segno
    Ogni altra nazion di mer’ti amica,
    Veder soffristi vivo egro e scontento
    Ed in vil letto di disagio spento!


III.

    Ma vanne pur che, quanto iniqua, austera
    Fusti com lui, tanto fra l’altre genti
    Sorgerá la sua gloria ove tua pera,
    Fino a caciarne i tuoi nativi accenti.
    Adotteranlo la nazione ibera,
    La franca, use adottar spirti eminenti,
    L’angla; ed ambe le italiche favelle
    Vorran che viva fra suoi poeti anch’elle.


IV.

    Tienti pur l’ossa inonorate ancora
    Che t’accusan d’ingrata anco sepulte;
    Che lo spirto di lui, gia di te fuora
    Non errará, ne fien sue pene inulte;
    Vedrailo accolto ove virtu s’onora:
    Gia piu d’altri che tuo, fra le piu culte
    Genti del orbe, e maturar sua speme
    Sotto un Augusto e un Alessandro insieme


V.

    La ve ad illuminar da eccelso monte
    Astro di Dio, l’eletta gregia, sorge,
    Che al par di quel che ad inchinar la fronte
    Condussi i regi a Dio, i regi scorge,
    La dove il merto abbatte sforzi ed onte,
    La giustizia à la pace il labro porge,
    E di quercia Feretria à l’ombre amena
    Riposa Roma al vigilar di Siena.


VI.

    Or la vanne, opra, ed à le patrie muse,
    Quasi terzo cristal le luci rendi
    Che sotto ignoto dir sepolte e chiuse
    Da sol che altrove splende or furi e prendi.
    Vanne, e qual gia Prometteo anima infuse
    Con le luci non sue, tu vita attendi:
    Spechio del altrui bello, emulo industre
    E d’eterno splendor riflesso illustre.


NOTAS DE RODAPÉ:

[17] Paggi esteve muitos annos em Lisboa, e aqui publicou duas edições
da sua traducção dos LUSIADAS, que, se não tem o valor poetico da de
Nervi, nem a fidelidade da de Briccolani, é todavia muito apreciavel.
Este _epilogo_ foi tirado da seg. edic. de 1659--que é a mais correcta,
conservando-se-lhe a propria orthographia.

[18] Cidade do gran’-ducado de Toscana, patria do papa Alexandre VII, a
quem a versão dos Lusiadas foi dedicada.

[19] Publicando-se a primeira vez ésta traducção dos versos de Paggi no
2.º num. do vol. II do jornal, a SEMANA, appareceu com uma introducção,
da qual julgâmos dever extractar alguns paragraphos:

‘Um nome illustre e portuguez, germanado pela inspiração e pelas
tradicções patrias com a glória de Camões, associa-se hoje á nobre
desaffronta que um estrangeiro soube, ha seculo e meio, escrever no fim
dos _Lusiadas_ em honra das esquecidas cinzas de Camões. O estrangeiro
foi Carlos Antonio Paggi, que na sua traducção italiana dos _Lusiadas_
accrescentou, como epilogo, seis formosas strophes em honra do poeta
que a patria, ou antes a côrte do seu tempo, votára á humiliação e
á indigencia. O nome glorioso na historia contemporanea das nossas
lettras, é o de Almeida Garrett, que em bellissimos versos portuguezes
trasladou a elegia melancolica com que o italiano Paggi apostrophou a
indifferença, ou o desprêzo que foram em vida de Camões a tença mais
avultada que os poderosos lhe destinaram no seu livro de mercês.

‘Quem gravou mais estes versos na loisa de Camões, quem lhe refrescou
as cinzas com mais esta saudade, foi o poeta, que resume no seu nome,
como n’um traço conciso, toda uma regeneração litteraria, o poeta que
marca no stadio das lettras um repoiso ameno depois do servilismo, ou
da inanição da poesia nacional; o mesmo que celebrou Camões em versos
ungidos de sentimento e de saudade íntima; aquelle que interrogou
os portuguezes sobre o logar onde jaziam os ossos do maior genio da
nossa terra; foi o proprio que em Portugal, onde só a opulencia tem
monumentos, e a nullidade estátuas, levantou o mais clamoroso brado
a favor daquella pobre ossada, perdida, profanada, pisada talvez
sacrilegamente pelos filhos degenerados d’uma patria invilecida; foi
aquelle mesmo que rematou tambem um dos seus mais graciosos e sentidos
poemas, com ésta apostrophe, temerosa e solemne, ja tantas vezes citada
por nacionaes e extrangeiros:

    Onde jaz, portuguezes, o moimento
    Que do immortal cantor as cinzas guarda?
    Homenagem tardia lhe pagastes
    No sepulchro siquer? Raça d’ingratos!



XX.

O TEJO.

AO SENHOR VISCONDE DE ALMEIDA-GARRETT.

PELO CONDE DE CAMBURZANO.


    N’essas margens risonhas do Tejo
    Não ha som que não cante de amor;
    Em suas ondas azues o lampejo
    Das estrêllas, no albor, se espelhou.



XX.

IL TAGO.

AL SIGNOR VISCONTE DE ALMEIDA-GARRETT.

DAL CONTE DI CAMBURZANO.


    Sule sponde ridenti del Tago
    Dice ogni eco canzone d’amore;
    In que’ flutti d’azzuro sì vago
    Ogni stella al mattin si spechiò.
    Essa terra produz a violeta
    Ao primeiro surrir da manhan,
    Vago Zephyro a flor indiscreta,
    Sussurrando, lascivo beijou.

    É loquaz este bosque sombrio,
    Cheio ainda do canto dos bardos;
    Aqui é Tempe, aqui o Menalo frio,
    E o Meandro que os cysnes produz.

    Oiço uns echos de magica lyra
    Pela noite ir ao longo da praia...
    Quem é esse tam fero que ahi gyra
    E do dia desdenha da luz?

    É Catão,[20]--só a este não doma
    Quem a terra fez muda a seu mando;
    É Catão--a infamia de Roma
    Na sua frente jamais não pesou.

    Quella terra produce la viola
    Al primiero dell’ alba sorriso,
    Zefiretto che lene trasvola
    Susurrando quel fiore baciò.

    Son loquaci le brune foreste,
    Piene ancora del canto de’ bardi;
    Quivi è Tempe, quì Menalo agreste,
    E’l Meandro che i cigni nutrì.

    Odo un suono di magica lira
    Lungo il lido sull’ umida sera...
    Chi è colui che sì fiero s’aggira
    E disdegna la luce del di?

    Egli é Cato[21], lui solo non doma
    Chi la terra fè muta á suoi cenni;
    Egli é Cato, l’infamia di Roma
    Sul suo capo giammai non pesò.

    Como geme alva pomba ferida,
    Assim Merope[22] geme e lamenta;
    Soam trompas guerreira alarida,
    E a alegria ao seu peito voltou.

    Nas cumiadas de Herminio[23] nevosas,
    Que dos horridos gelos se c’roam,
    Ve a aurora coberta de rosas
    De belleza em que pompa surgiu!

    Na hástea debil as tenras florinhas
    Vão o puro rocio bebendo,
    Cada gotta do ceo, nas hervinhas,
    Ricca perola ardente luziu.

    Mas o Genio do monte, que horrendo
    Entre as sombras impera da noite,
    Bate as azas, ja foge e fremendo
    No profundo do mar mergulhou.

    Come gemon le bianche colombe,
    Cosi Merope[24] piange e lamenta;
    Ma improviso squillare di trombe
    Alta gioja in suo cuore versò.

    Su le cime d’Erminio[25] nevose,
    Cui fan gl’orridi ghiacci corona,
    Ve’ l’aurora cosparsa di rose
    Qual fa pompa di rara beltà!

    I fioretti sul gracile stelo
    Van bevendo la pura rugiada,
    Ogni stilla caduta dal cielo
    Fra l’erbette una perla si fa.

    Ma lo Spirto del monte, che orrendo
    Tiene impero fra l’ombre di notte,
    Bate l’ali, gia fugge e fremendo
    Nel profondo dei mari piombó.

    Repentino lá surge um guerreiro,
    Torvo o cenho, a armadura de ferro...
    É Viriato... a seus pés--o primeiro!--
    Calca as Aguias que o mundo adorou.

    Da caverna que os ossos lhe incerra
    Surde a voz... Inclinae as cabeças
    Ante o livre que impavido á terra
    --Ou morrer--ou salvá-la jurou...

    Immudece a harpa.--O nome adorado
    Da sua Julia[26] as Driades cantem!
    Sôbre a fronte ao poeta sagrado
    Phebo proprio os seus loiros poisou.

    Un guerriero repente si desta,
    Torvo il ciglio, rachiuso nell’arme,
    É Viriato... un vessillo calpesta
    Che tremante la terra mirò.

    Dallo speco che l’ossa ne serra
    Una voce si parte--t’inchina
    A colui che la libera terra
    O far salva o perire giurò...

    Tace l’arpa... Di Giulia[27] ripeta
    Ogni Driade il nome soave!...
    Su la fronte del sacro poeta
    Febo istesso l’alloro posò.


NOTAS DE RODAPÉ:

[20] Allude á tragedia CATÃO do Sr. Garrett.

[21] Idem.

[22] Allude á tragedia MEROPE do Sr. Garrett.

[23] Do mesmo modo allude á CAVERNA DE VIRIATO, publicada ultimamente
nas FLORES SEM FRUCTO, com a traducção franceza por M.ˡˡᵉ de
Flaugergues.

[24] Idem.

[25] Idem.

[26] Allude egualmente á ode ou canção II do livro primeiro--FLORES SEM
FRUCTO.

[27] Idem.



XXI.

CANÇÃO DA DONZELLA FINLANDEZA.


    Oh! se o meu Bem me volver,
    Se quem d’antes via, eu vejo,
    Traga elle a bôcca a escorrer
    De lobo em sangue, lh’a bejo;
    E a mão vou-lh’a apertar,
    Cobras lh’a andem a inroscar.
    Ah! se o vento alma tivera,
    Lingua o ar da primavera,
    Fôra a sua voz bastante:
    Novas levára e trouxera
    Entre um e outro amante.
    Desprézo finos guizados,
    Deixo ao cura os seus assados;
    Só quero amar, ser constante
    A quem o verão me deu
    E o hinverno affez a ser meu.[28]


NOTAS DE RODAPÉ:

[28] O original é phenico ou finlandez.

Esta pequena Runa, canção em metro runico, é considerada no Norte como
um d’esses raros exemplares da litteratura primitiva dos povos, que
a characterisam. Como tal tem sido traduzida em muitas linguas com
auxílio das versões litteraes, que para isso se publicara em Stokolmo.

Por este modo se fez a portugueza: e creio ser a primeira que
apparece nas linguas do Sul. Dou com ella as versões todas, poeticas
e litteraes, que me chegaram á mão. Muito approveitaria ao estudo das
linguas e litteraturas da Europa se os nossos litteratos se dessem com
o mesmo impenho ao estudo das runas e sagas do Norte com que alli se
dão ao das nossas xacaras e soláos.



XXI.

EYTON RUNO SUOMALAISEN.


    Jos mun tuttuni tulisi,
    Ennen nähtyni näkyisi,
    Sillen suuta suikkajaisin;
    Jos olis suu suden weressä;
    Sillen kättä käppäjäisin,
    Jospa käärme kämmen-päässä.
    Olisko tuuli mielellisnä,
    Ahawainen kielellisnä:
    Sanan toisi, sanan weisi,
    Sanan liian liikuttaisi,
    Kahden kaunihin wälillä.
    Ennen heitän herkku-ruuat,
    Paistit pappilan unohdan,
    Ennenkun heitän herttaseni,
    Kesän kestyteltyäni,
    Talwen taiwuteltuani.[A]



XXI.

CARMEN FENICAE FUELLAE.


    Ille si meus veniret,
    Visus ante si veniret;
    Illitum lupi cruore
    Os libenter oscularer;
    Si ter implicaret anguis,
    At manum manu tenerem.
    Si qua mens adesset austro,
    Si qua lingua veris aurae;
    Ferret aura, ferret auster,
    Et referret usque verba,
    Nuntians, amanti amantis.
    Nil moror dapes opimas,
    Presbiter nihil quod assat,
    Dum mihi meum reservem,
    Quem mihi subegit aestas,
    Bruma quem dedit domandum.

    A. HEDNER
    Praepositus Ydriensis.



XXI.

ΕΙΔΥΛΛΙΟΝ ΦΕΝΝΙΚΟΝ


    Ὡς ἴκοιθ’ ὁ προσφιλής μοι,
    Τὸν πάλαι φανέντ’ ἴδοιμι,
    Τόνδε κἀκ λύκου φιλοῖμ’ ἄν
    Αἱματοσταγῆ τὰ χείλη,
    Ἐν χεροῖν αὐτοῦ δὲ φῦσα
    Ὄφιος οὐ ταρβοῖμ’ ἑλιγμούς.
    Εἰ γένοιτ’ ἔμφρων μὲν αὔρα,
    Εἰ πνοὴ δ’ ἔναυδος ἦρος,
    Σὺν τάχει πρόσω πάλιν τε,
    Τοὺς ἂν ἀλλήλων ἐρώντων,
    Πίστεως λόγους κομίίζοι.
    Πλὴν λιχνεύματ’ ἂν μεθείην,
    Ὀπτὰ κρέα θ’ ἱρέως ἔγωγε
    Μᾶλλον, ἢ τἀνδρὸς λαθοίμην,
    Τοῦπερ ἐν θέρει δαμέντος,
    Ἐν κρύει κατεκράτησα.

    J. SPONGBERG
    Professor Linguæ Græcæ



TRADUCÇÕES LITTERAES.


I.

ALLEMAN.


    Oh! wenn mein Geliebter[29] kommen würde,
    Der früher gesehene, wenn er erschiene (erscheinen würde):
    Sogleich würde ich einen Kuss auf seinen Mund drücken,[30]
    Auch wenn er (der Mund) mit Wolfsblut besudelt[31] wäre!
    Seine Hand würde ich zugleich auch warm (herzlich) fassen,[32]
    Wenn auch eine Schlange sich um seine Finger schlängelt!
    Ach! wenn der Wind Verstand hätte,[33]
    Der frische Lenzeshauche, wenn er einer Sprache mächtig wäre:[34]
    Ein Wort würde er hinbringen,[35] ein Wort würde er zurückbringen;
    Mit Nachrichten würde er schnell eilen[36]
    Zwischen zwei Liebenden.--
    Lieber verschmähe ich die kostbarsten Speisen,[37]
    Vergesse lieber den Braten auf des Priesters Tische,[38]
    Als dass ich meines Herzens Geliebten verlasse,
    Den, welchen ich im Sommer mir ergeben machte[39]
    Den, welchen ich im Winter (an mich) befestigte.[40]


NOTAS DE RODAPÉ:

[29] Eigentl.: mein Bekannter.

[30] Ganz wörtlich: ihm den Mund ich sogleich hinhalten würde, d. h.
ihn küssen

[31] Ganz wörtl.: wäre auch sein Mund in Wolfsblut, d. h. wäre er mit
Wolfsblut befleckt.

[32] Wörtlicher: ich würde ihm einen leichten Handschlag geben.

[33] Ganz wörtlich: wäre der Wind als Verstand-besitzend.

[34] Oder: wäre als sprachmächtig.

[35] Eigentl.: holen.

[36] Ganz wörtl.: ein Wort zur Genüge, würde er (der Wind, der Hauch)
in Bewegung bringen (rege machen), d. h. würde er wechselweise bringen
zwischen, etc. (Dieser Vers ist, wie man sieht, an Geist und Sinn, nur
ein Parallelism zu dem nächst vorangehenden. Solche findet man nicht
selten in der finnischen Runen-Dichtung.)

[37] Oberhaupt: Herrenessen.

[38] Ganz wörtl.: des Pfarrhauses Braten (Plur.) ich lieber vergesse.

[39] Oder: mir anlockte, d. h. machte dass er sich an mich schloss.

[40] Oder: bändigte, d. h. nach meinem Sinne lenkte.



II.

INGLEZA.


   Oh! If my beloved[41] would come,
   The before seen, if he would appear;
   Instantly I should press a kiss on his mouth,[42]
   Even though it (the mouth) were stained with the blood of a wolf.[43]
   His hand I should at the same time warmly (cordially) seize,[44]
   Even though a snake wound round his fingers!
   Oh! if the wind had understanding,[45]
   The fresh zephyrs of the spring, if they were capable of speech:
   A word they would bring hither,[46] a word they would return,
   With intelligence they would quickly hasten[47]
   Between two lovers.--
   I should sooner give up the nicest dishes[48],
   Forget rather the roast-meat on the priest’s table[49]
   Than I forsake my dear beloved,
   Him, whom in the summer I made attached to me,[50]
   Him, whom in the winter I captivated.[51]


NOTAS DE RODAPÉ:

[41] _Or_: intimate; _properly_: well-known.

[42] _Literally_: to him I should instantly offer my mouth, _that is to
say_: kiss him.

[43] _Quite literally_: even though his mouth were in the blood of a
wolf; _that is to say_: if it were besmeared with the blood of a wolf.

[44] _More literally_: I should give him a light squeezing of the hand.

[45] _Quite literally_: if the wind were as if possessing understanding.

[46] _Properly_: fetch.

[47] _Literally_: a word which were sufficient, they (the winds, the
zephyrs) would set a-going, _that is to say_: they would alternatively
bring between, etc (This verse forms, as it appears, in sense and
thought, a parallelism with the preceeding verse. Such are not seldom
met with in the Finlandian rune-poetry)

[48] _Very-near_: the gentlemen’s (the lord’s) meat.

[49] _Quite literally_: forget rather the roast-meats of the priest’s
house.

[50] _Or_: attracted to me, _that is to say_: caused him to become
attached to me.

[51] _Or_: tamed, _that is to say_: made him submit to my mind or will.



III.

LATINA


    O, si ille familiaris meus veniret,
    Antea visus mihi appareret!
    Statim ei os porrigerem,[52]
    Etiamsi esset (os) lupi cruore maculatum.[53]
    Manum ejus calide[54] premerem,
    Etiamsi anguis digitos cingeret.[55]
    O! si ventus esset mente praeditus,[56]
    Si flamen[57] veris alacre[58] linguae esset potens;
    Verbum huc ferret, verbum referret,[59]
    Nuntium vicissim motu ageret[60]
    Inter duos amantes.--
    Rejiciam potius lautissimas cupedias,
    Quin carnis assae de mensa presbyteri[61] obliviscar,
    Quam meum ex corde amatum deseram;
    Quem aestate mihi deditum reddidi,[62]
    Quem hieme satis mansuefeci.[63]


NOTAS DE RODAPÉ:

[52] Eum mox oscularer.

[53] _Proprie_: etiam si in lupi cruore os esset, _i. e._ etiamsi lupi
cruor in ore ejus esset.

[54] _Proprie_: facile.

[55] _Proprie_: etiamsi anguis in extrema manu (esset).

[56] _Sive_: O, si ventui esset intellectus!

[57] _Sive_: aura.

[58] Recreans.

[59] _Sive_: verbum adduceret, verbum reportaret.

[60] _Proprie_: verbum plus quam sufficiens in motum ageret (moveret).

[61] _Proprie_: de villa presbyteri, _i. e._ quae in villa presbyteri
solet esse Carnis assae frusta presbyteri mensae apposita.

[62] _Sive_: quem aestate ita tractavi, ut ea mihi dederet.

[63] _Sive_: quem hieme ita tractavi, ut mihi obediret.



IV.

FRANCEZA.


    Ah! si mon bien-aimè[64] voulait venir,
    Celui que je voyais jadis, voulût-il reparaître!
    A l’instant je presserais un baiser sur sa bouche,[65]
    Si même elle était tachée de sang de loup.[66]
    Je saisirais ardemment sa main[67]
    Quand même un serpent fût roulé autour de ses doigts.
    Oh! si le vent avait de la raison,[68]
    La fraiche haleine du printemps, si elle savait une langue;
    Elle irait chercher un mot, un mot elle rapporterait;
    Vite elle se hâterait avec des nouvelles[69]
    Entre deux amants.--
    Plutôt je me passerais des mets les plus delicats,[70]
    J’oublierais plutôt le rôti sur la table du pasteur,[71]
    Que je n’abandonne le chéri de mon cœur,
    Celui qu’en été je m’attachai,[72]
    Celui que j’enchainai pendant l’hiver.[73]


NOTAS DE RODAPÉ:

[64] Proprement dit: _mon bien-connu_.

[65] Littéralement: _je lui tendrais à l’instant la bouche_, c’est
á-dire: _je le baiserais_.

[66] Tout-á-fait littér.: _fût même sa bouche dans le sang d’un loup_,
c.-a-d.: _fût-elle souillée de sang de loup_.

[67] Plus littér.: _je lui donnerais un liger serrement de main_.

[68] Tout-á-fait littér.: _si le vent était possédant de la raison_.

[69] Plus littér.: _un mot, qui suffirait déjà, elle le mettrait en
mouvement_, c.-a-d.: _elle le porterait alternativement entre, etc.
(Ce vers ne forme, comme il le parait, qu’un parallélisme d’esprit et
de pensée avec le vers précèdent; on en trouve souvent dans la poésie
runique finoise)_.

[70] A peuprés: _nourriture des Messieurs_.

[71] Tout-á-fait littér: _j’oublierais plutôt des rôtis du presbytère_.

[72] Ou: _attirai vers moi_, c.-a-d.: _fis qu’il s’attacha à moi_.

[73] Ou: _apprivoisai_, c.-a-d. _que je fis plier à ma volonté_.



                                NOTAS.



                                 NOTAS

                         ÁS FÁBULAS E CONTOS.


NOTA A.

    Um tal poeta lá da tua terra
    Que faz Orientes e baptiza Gamas pag 36.

Este verso, e um soneto, que é o X na collecção do presente vol., são
as duas unicas debilidades em que cahi mostrando má vontade satyrica
ao bem conhecido Padre José Augustinho de Macedo, homem de estudo e
talento, mas o mais atrabiliario escriptor que ainda creio que tivesse
a lingua portugueza. O rancor que toda a vida professou a quantos
professaram as lettras no seu tempo, uma inveja impropria de talento
tam verdadeiramente superior, o arrastou a desvarios que deslustraram
o seu nome e mancharam a sua fama. Nem o furioso e sanguinario que foi
em seu partido, nem a perseguição politica de que a mim proprio me fez
victima, poderam mover-me a desacatar n’elle o homem de lettras que
todavia honro ainda. Sei que no A. do RETRATTO DE VENUS, no redactor
principal do PORTUGUEZ, elle perseguia principalmente o ainda mais
odioso A. do poema CAMÕES. Todas as suas offensas porém foram só
politicas; litterariamente não me aggravou jamais. Perdoe-lhe Deus como
lhe perdoei sempre. A posteridade não lhe perdoará decerto a sua stulla
rivalidade com o A. dos LUSIADAS: foi a essa que os versos annotados
alludiram. Queimava-os se fôra a outra coisa. Metter as lettras nas
nossas questões politicas e nas mesquinhas e soezes paixões individuaes
que d’ellas nascem, é para a baixa villania dos _insultadores
publicos_, despreziveis rans do charco stagnado da intriga que nem
siquer para si coaxam, mas para quem os faz coaxar por sua conta.


NOTA B.

Conto academico pag. 42.

Este conto é uma verdadeira gaiatice de estudante de Coimbra que
despede chufas á direita e á esquerda como pancadas de cego. Se o
diccionario da nossa academia ficou no _azzurrar_, a collecção de suas
preciosas memórias cantou bem alto e sonoro: muito receio que fôsse
cantar de cysne!


NOTA C.

O famoso direito de accrescer pag. 61.

O direito de _accrescer_ é o que em qualquer sociedade resulta ao todo
dos socios da renúncia tacita ou expressa que de seu quinhão faz um
d’elles. No meu primeiro anno da Universidade era a explicação d’este
romanismo um dos pontos mais graves do curso de direito.


NOTA D.

O menino e a cobra. pag. 65.

É imitação ésta fábula de uma composição alleman do seculo passado, não
me lembro de que auctor.


NOTA E.

A Saude e a Medicina. pag. 69

Imitação, e quasi traducção em muita parte, da fábula de Pignotti do
mesmo nome.


NOTA F.

Fui prêso por Verdeaes pag. 79.

Até a côr das fardas dos archeiros da Universidade mudaram os
fomentadores de 1834-5. Dizem que os pintaram de azul! Não tenho ânimo
de ir a Coimbra, nem olhos com que tal veja. Os verdeaes azues! Que
reforma!


NOTA G.

O Casquilho. pag. 88.

Imitação de um apologo ingles, cujo auctor me não lembra tambem.



AOS SONETOS.


NOTA A.

A certa tragedia pag. 110.

Vej. a nota A das Fábulas.



ÁS FOLHAS CAHIDAS.


NOTA A.

Coquette dos prados pag. 171.

A palavra _coquette_ não é portugueza. Mas não ha remedio senão
acceitá-la e dar-lhe a carta de naturalização desde que a coisa se
afforou tanto entre nós.


NOTA B.

Voz e aroma. pag. 219.

Parece-me, e quero confessá-lo, que estes versos são uma reminiscencia
de Lamartine.


NOTA C.

No Lumiar. pag 239.

Tinha promettido estes versos sôbre a visita de Mrs. Northon ao Lumiar,
ha tres para quatro annos, ao nosso commum amigo S. de L. Perdoe-me
elle se tam tarde cumpro a minha prometa.--Dezembro. 1851.


NOTA D.

O Tejo. pag. 256.

O Sr. Conde de Camburzano, secretario da Legação de Sardenha em
Lisboa, foi aqui mui pouco conhecido da nossa sociedade, nem o sería
com vantagem, porque dançar e jogar, jogar e dançar, de verão e de
hynverno, nossa occupação exclusiva e unica, não podia ser a de um
homem de forte pensar e de vehemente sentir.

Manda-lhe aqui éstas saudades um dos poucos Portuguezes que tiveram a
fortuna de o conhecer.


NOTA E.

Deixo ao cura os seus assados. pag. 264.

Este pequeno poema foi-me enviado de Stockolmo pelo illustre litterato
o Sr. Zetterquist, com as traducções poeticas e litteraes que publíco
junctamente com o texto, e que me serviram para fazer a traducção
portugueza que com tanta instancia me pediram. Veio tudo acompanhado
da seguinte explicação em Francez, que aqui ponho textualmente tambem
para melhor esclarecimento do assumpto:


REMARQUES DIVERSES SUR CETTE RUNA FINOISE[74]

Ce petit poème, que l’on peut appeler une réminiscence de l’état
d’innocence primitive des peuples et des langues, fut composé il y a
peut-être quelques siècles, par une jeune paysanne finoise. Comme le
chant l’indique, elle parait avoir eu un amant auquel elle avait donné
son cœur et son premier amour, mais qui, plus tard, pour une cause
quelconque, l’abandonna, malgré les promesses de mariage qu’il avait
jurées à sa fiancée. Une circonstance pareille n’a jamais été et ne
sera jamais rien d’extraordinaire: c’est, nonobstant, le thème de ce
chant si simple. Simple, il est vrai; mais il ne manque pas pour cela
d’originalité, ni même de poésie, pareil en cela, du reste, à tous les
vieux et sublimes chants nationaux du Nord. Je pourrais même à cet
égard soutenir sans exagération que celui qui nos occupe est l’un des
plus beaux produits de la poésie populaire. Où trouver, par exemple,
une pensée plus sublime que celle de la seconde stance, où cette Sapho,
quoique n’étant pourtant pas de Lesbos, donne sous l’inspiration du
moment, l’essor aux brûlants sentiments de son cœur: “_Oh! si le
vent était douè de raison, et la fraîche haleine du printemps, si
elle savait une langue: ils porteraient alors un mot d’amour et le
rapporteraient entre deux amants_.” Mais que l’on n’oublie pas non plus
que c’est l’amour, chez cette poète toute d’inspiration naturelle, née
et grandie dans un pays de forêts couvertes de neiges et de glaces,
qui lui a mis sur les lèvres ces paroles d’une si douce poésie. Quant
à la 3ème ou dernière stance, il me semble aussi nécessaire d’y fixer
l’attention plus spéciale du lecteur. On pourrait, par aventure,
regarder comme une espèce d’étrangeté les expressions suivantes:
“_Plutôt je me passerais des mets les plus délicats, j’oublierais
plutôt le rôti sur la table du pasteur, que je n’abandonne le chéri
de mon cœur_.” Pour celui qui ne connaît pas les particularités
caractéristiques des paysans findandais, et leur appréciation des
choses, une image ou un objet concret pareil au _rôti sur la table du
pasteur_, pourrait paraître quelque chose d’étonnant en poésie: mais
cette pensée ou cette image ne présente par contre rien d’étonnant,
lorsque l’on est initié à la vie nationale de la Finlande, et surtout,
si l’on sait quelle profonde vénération les paysans finois avaient
jadis pour leur prêtre, pour leur instituteur religieux; mais outre
cette saint vénération, qui touchait presque à une adoration mystique,
ils donnaient à ses biens matériels une valeur et leur montraient un
respect non moins grands. La jeune fille, inspirée par le dieu de
l’amour, n’aurait donc voulu pour les friandises les plus recherchées
au monde, pas même pour les mets les plus délicats que la table du
pasteur pût offrir, se départir de l’objet aimé. Cette strophe renferme
aussi, en conséquence, une pensée tout aussi raisonnable que belle.--Et
quoique ce petit morceau lyrique soit un modèle de style simple et
naturel, il ne se fait, on vient de le voir, pas moins remarquer par un
sentiment ardent, par sa force, et surtout par de ces images hardies
comme des poètes plus exercés et plus instruits en cherchent en vain.

J’ose dans tous les cas espérer qu’on ne m’imputera raisonnablement pas
à blâme, d’avoir, comme base de mon entreprise choisi de préférence ce
simple chant antique, au lieu de prendre un morceau moderne d’une autre
tendance. Un original de caractère religieux, n’aurait, par exemple,
indubitablement pas convenu; d’autant plus que comme il s’agit ici
d’obtenir le plus grand nombre possible de traductions, non seulement
en langues écrites mais encore en idiomes provinciaux, le morceau
que j’ai choisi me paraît plus que tout autre propre a conduire à ce
résultat.

Si j’en viens maintenant au but même de mon travail, je crois pouvoir
déclarer à ce sujet, qu’à tous égards, une collection polyglotte
semblable doit indubitablement être fort intéressante pour les
personnes possédant des connaissances philologiques plus ou moins
grandes, et surtout pour celles qui s’occupent de linguistique
comparée, Un résultat pareil dépend naturellement de la fidélité, de
l’exactitude qui sera apportée à chaque traduction. L’on ne doit, en
conséquence, pas considérer cette entreprise comme une affaire de
curiosité, ni comme un simple amusement, mais comme un travail utile,
autant que possible, pour l’histoire générale des langues.

Sous le point de vue de la réunion d’un si grand nombre de traductions,
tant en dialectes qu’en langues écrites mortes et vivantes, elles
seront rangées en ordre systématique basé sur leurs origines et leurs
affinités. Le nombre d’idiomes dont cette _carte philologique_ se
composera, dépendra naturellement de la quantité de traductions que
j’obtiendrai. Cependant, me fondant sur la bienveillance dont j’ai
déjà été l’objet pendant le cours de quelques années, j’ose espérer
que la collection se composera d’environ 200 ou 300 idiomes, dont je
possède déjà un nombre assez considérable. Cet ouvrage sera encore
augmenté de quelques appendices de musique, et d’une introduction
philologico-historique. Ensuite, les traductions seront autant que
possible imprimées avec les caractères particuliers à chaque langue.

Enfin, que l’on me permette d’ajouter au sujet de cette Runa finoise,
qu’avant moi déjà, diverses personnes l’ont remarquée avec intérêt; je
dois nommer entr’autres le Conseiller d’État suédois S. E. Mr. _A.
F. de Skjöldebrand_, lequel publia en 1810 à Stockholm une magnifique
collection de gravures sur la Suède, la Finlande et la Laponie,
suivie d’une description en langue française, et portant le titre de:
“_Voyage pittoresque au Cap Nord_.” La Runa que j’ai choisie se trouve
dans cet ouvrage, tant en original, qu’en traduction française en
prose. L’auteur y annonce qu’elle lui fut communiquée par _Fr. Mich.
Franzén_ (alors professeur à l’Academie d’Abo) comme un des meilleurs
échantillons de la poésie runique finoise, et l’un des plus propres
à montrer à quel riche degré la nation finoise possède l’inspiration
poétique. Mais la langue finoise est aussi sous le point de vue
grammatical singulièrement flexible, elle est surtout fort mélodieuse,
ce que lui donne une certaine ressemblance avec le Grec antique.

A peu près vers le même temps que l’ouvrage de Mr. de _Skjöldebrand_,
apparut en Anglais, d’un certain _Joseph Arcebi_, une description
de Voyage en Suède, en en Finlande et en Laponie, dans laquelle se
trouve aussi la même Runa, en traduction anglaise, faite toutefois
assez librement. Cette description de Voyage, fort intéressante, a été
traduite en Français et en Allemand. Mais ces deux auteurs ne son pas
les seuls: le célèbre poète allemand _Göethe_ a fait aussi de ce chant
une traduction imprimée dans ses: «_Poetische und Prosaische Werke_.»


QUELQUES INDICATIONS PARTICULIÈRES POUR LES TRADUCTEURS DE CE CHANT.

1.º MM. les traducteurs voudront bien suivre, _aussi fidèlement que
possible_, l’une des trois traductions verbales ci-dessous. 2.º Quant
aux idiomes dans lesquels il serait difficile et peut-être même
impossible de faire des traductions en vers, l’on devra, dans un tel
cas, se contenter de les faire en prose, plutôt que de n’en point
faire du tout. Je désire toutefois que ces traductions soient en _vers
blancs_ (non-rimés), como les trois traductions verbales. 3.º Si le
traducteur voulait communiquer quelques explications grammaticales
sous forme de notes, elles seraient reçues avec la plus grande
reconnaissance. 4.º De même, si quelqu’un voulait se charger, en cas
que ce fût possible, de procurer de la musique à l’une des traductions;
ce serait aussi une chose que je désirerais volontiers. 5.º MM. les
traducteurs sont priés d’écrire leurs traductions _aussi distinctement
que possible_, pour éviter les fautes typographiques qui pourraient
s’y glisser. 6.º L’on ne doit pas oublier de traduire le titre: _Chant
d’une jeune paysanne finoise_. 7.º Chaque traducteur voudra bien signer
sa traduction.

                                                       C. G. ZETTERQUIST


NOTAS DE RODAPÉ:

[74] _Runa_ est un mot finois qui signifie: _Chanson_. Les plus
anciens caractères des peuples germaniques et scandinaves, qu’ils
employaient surtout dans le style lapidaire, portent, comme l’on sait
le nom de _Runas_, d’où le terme _Runagraphie_ pour désigner ce genre
d’écriture.



                                INDICE.


A QUEM LER                                                        pag. V
PRIMEIROS VERSOS                                                   XXVII
ADVERTENCIA                                                         XXIX


FÁBULAS E CONTOS                                                      33
I.  Introducção                                                    _ib._
II.  Pelo zurro o burro                                               42
III.  Amor e vaidade                                                  48
IV.  Esopo e o burro                                                  59
V.  O menino e a cobra                                                65
VI.  A saude e a medicina                                             69
VII.  O gallego e o diabo                                             78
VIII.  O casquilho (janota)                                           88
IX.  Os amantes generosos                                             92


SONETOS                                                               99
I.  Porfia d’amor                                                    101
II.  Camões náufrago                                                 102
III.  A uma feia com linda voz                                       103
IV.  Suffoque as íras, calle e sinta e gema                          104
V.  É dos olhos gentis da minha amada                                105
VI.  Nas froixas, debeis azas da saudade                             106
VII.  O Campo de Sanct’Anna                                          107
VIII.  Virtude sem prazer não é virtude                              108
IX.  A flor sêcca                                                    109
X.  A certa tragedia                                                 110
XI.  Maria e Carolina                                                111
XII.  Saudade                                                        112


ULTIMOS VERSOS                                                  pag. 113
DOS EDITORES                                                         115
ADVERTENCIA                                                          116


FOLHAS CAHIDAS                                                       123
  LIVRO PRIMEIRO                                                   _ib._
    I.  Ignoto Deo                                                 _ib._
    II.  Adeus                                                       126
    III.  Quando eu sonhava                                          132
    IV.  Aquella noite                                               134
    V.  O anjo cahido                                                142
    VI.  O album                                                     145
    VII.  Saudades                                                   148
    VIII.  Este inferno de amar                                      151
    IX.  Destino                                                     153
    X.  Gôso e dor                                                   155
    XI.  Perfume da rosa                                             157
    XII.  Rosa sem espinhos                                          160
    XIII.  Rosa pallida                                              162
    XIV.  Flor de ventura                                            166
    XV.  Bella d’amor                                                169
    XVI.  Os cinco sentidos                                          171
    XVII.  Rosa e lirio                                              173
    XVIII.  Coquette dos prados                                      177
    XIX.  Cascaes                                                    179
    XX.  Estes sitios                                                184
    XXI.  Não te amo                                                 187
    XXII.  Não es tu                                                 190
    XXIII.  Belleza                                                  193
    XXIV.  Anjo es                                                   196
    XXV.  Vibora                                                     199


  LIVRO SEGUNDO                                                      201
    I.  Barca bella                                                _ib._
    II.  A Coroa                                                     203
    III.  Sina                                                       205
    IV.  Ai Helena                                                   208
    V.  A rosa--um suspiro                                      pag. 210
    VI.  Retratto                                                    212
    VII.  Lucinda                                                    213
    VIII.  As duas rosas                                             215
    IX.  Voz e aroma                                                 219
    X.  Seus olhos                                                   221
    XI.  A Délia                                                     223
    XII.  A joven americana                                          224
    XIII.  Adeus, mãe!                                               228
    XIV.  Ave Maria                                                  232
    XV.  Os exilados                                                 234
    XVI.  Preito                                                     237
    XVII.  No Lumiar                                                 239
    XVIII.  A um amigo                                               246
    XIX.  Os Lusiadas                                                248
    XX.  O Tejo                                                      256
    XXI.  Canção da donzella finlandeza                              264


NOTAS                                                                273




*** End of this LibraryBlog Digital Book "Fábulas—folhas cahidas" ***


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