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Title: Á hora do crime - phantasia dramatica em 1 acto a proposito do assassinato do General Prim
Author: Miranda, Francisco Luís Coutinho de, -1883
Language: Portuguese
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Á HORA DO CRIME



Á HORA DO CRIME

Phantasia dramatica em 1 acto a proposito do assassinato do general Prim

por

Francisco Luiz Coutinho de Miranda


Lisboa

Typ. Livre--22, Rua da Padaria, 22

1871

     *     *     *     *     *



AO PUBLICO


Nasci n'um anno em que o sangue dos cidadãos de Lisboa allagou as praças e
as ruas da capital.

Foi uma carnificina monstruosa, o 13 de março de 1838!

As guardas nacionaes, colhidas á traição, fôram covardemente
espingardeadas á ordem dos falsos interpretes das instituições, que a
guarda nacional era chamada a zellar e defender!

Ainda se não sabe ao certo o numero dos martyres d'aquella tremenda
hecatombe!

Eram pela rua aos montões os cadaveres dos populares e dos soldados, povo
tambem, sacrificados n'aquelle dia aos caprichos e veleídades do governo
pessoal!

E esses homens do povo, e esses guardas nacionaes, todas essas victimas
innocentes da maldade e da ambição, eram na sua maior parte os valerosos
companheiros do duque de Bragança; os que tinham amassado com o seu sangue
generoso os alicerces do throno constitucional; os que tinham, pela sua
coragem, pela sua dedicação, pelo seu civismo, conquistado para a filha do
imperador-rei o throno de Portugal, na longa epopea que começou na ilha
Terceira e terminou em Evora Monte!

Eu não havia ainda nascido; mas creio que minha santa mãe me concebeu
então. Vi a luz do mundo em nove de dezembro d'esse mesmo anno, quasi
precisamente nove mezes depois de tão amplo addicionamento ao livro
immenso do martyriologio da liberdade!

Bafejou-me ao nascer o ar das revoluções!

D'ahi talvez a origem das tendencias revolucionarias do meu espirito!

Quasi que o meu primeiro vagido se confundiu com os gritos de dôr das
victimas da tyrannia!

D'ahi por certo o meu amor pelo povo, e o meu horror pelos despotas!

Emballaram-me no berço as descripções detalhadas das acções homericas dos
sitiados do Porto; educaram-me no respeito pelo principio santo da
liberdade; desenvolveram-me a rasão, encaminhando-me sempre o espirito
para as theorias, poeticas e patrioticas, do mais largo desenvolvimento
dos foros e regalias do povo!

D'aqui indubitavelmente a minha crença sincera e firme na religião
democratica!

Mas quem me diria, quando os primeiros alvores da rasão começaram a
esclarecer-me a intellegencia; quando eu escutava com infantil respeito,
no vivo enthusiasmo da creança que facilmente se exalta palas santas
doutrinas da liberdade, a descripção singella que meu velho pae me fazia
dos sacrificios e das privações, da fome e dos perigos, do sangue e das
vidas, que a liberdade custara; quem me diria, repito, que aquelle honrado
velho havia de ser victima dos falsos sacerdotes da sua religião politica;
que eu proprio havia de ser constantemente torturado pelos depositarios
infieis do thesouro riquissimo que meu pae ajudara a conquistar para o seu
paiz!

E esta é, infelizmente, a verdade!

Tantas cazas arruinadas, tão ferteis campos tallados, tantas vidas
preciosas offerecidas em holocausto á liberdade, de que serviram?

De bem pouco, na verdade!

Em vez da tyrannia, a falsa liberdade!

Em logar do despotismo brutal; mas franco, por que constituia a base do
systema governativo, o despotismo hipocritamente encapotado no manto da
liberdade, infamemente roubado á deusa dos povos, pelos falsos levitas da
sua religião!

Em substituição do poder absoluto de um homem, o poder absoluto de muitos,
que se dizem responsaveis, e que ainda não fizeram lei que torne effectiva
a sua responsabilidade; que deveram ser filhos dos partidos, e que são
oriundos de corrilhos e facções; que dão conta dos seus actos a
parlamentos immoraes e ridiculos, que teem por base a viciação da urna,
sanctuario da liberdade, e o principio heriditario no exercicio de
legislar, que é um absurdo, ou a fornada, que pode ser um abuso!

E para isto fugiste tu ao lar paterno, meu pae!

E para isto abandonaste a mãe que te estremecia, e a irmã, que se finou,
com saudades tuas!

E para isto foste ferido trez vezes em campanha, e alcançaste juz a essa
medalha que tanto te ufanava, e que tão pouco vale aos olhos dos
ignorantes, e dos preversos, que teem deixado crescer espinhos e abrolhos
no campo formoso que tu e os teus companheiros d'armas arrotearam, para as
futuras gerações gosarem!

Progresso! Liberdade! Tolerancia!

Termos mentidos! principios falsos! palavras sem significação, na pratica
desgraçada de governos retrogrados, de ministros libertecidas, de homens
que só respiram odios; e só aspiram vinganças!

O progresso para elles é a reacção!

A sua liberdade é a perseguição para os que mais livremente manifestam a
sua opinião politica!

Para elles a tolerancia está nas cadeias em que encerram os adversarios ou
aquelles que, fatigados dos seus desvarios, lançam mão do recurso extremo,
do remedio fatal, da ultima rasão dos povos--a revolução; principio em
nome do qual elles são poder; arma de que nenhum d'elles tem deixado de
usar, no jogo abjecto d'essa politica miseravel, em que o paiz se tem
arrastado ha mais de trinta annos!

Livre manifestação do pensamento!

Pois isto é por ventura principio pratico em Portugal?

Apregoam para ahi uns orgãos da imprensa, que é livre, liberrima, a
manifestação do pensamento politico!

Mentira!

Poucos como eu podem mais desafogadamente responder a uma tal asserção:

--Mentira!

Poucos podem clamar, com mais documentado conhecimento da causa:

Mentira!

Sim, mentira, porque no meu paiz não existe liberdade para a manifestação
do pensamento, e eu sou d'isso um exemplo vivo!

Fallei uma vez ao povo, dizendo-lhe verdades que elle deve conhecer, e
perseguiram-me!

Nunca foi alterada a ordem publica nas pacificas reuniões em que eccoou a
minha voz, e processaram-me!

Exercia um direito que meu pae me conquistara com o seu sangue, e vi cair
na valla humilde do cimiterio, minado de desgostos, louco de rancor,
desesperado de arrependimento, o velho honrado que me deu o ser, ao ver-me
perseguido e homisiado pelo crime _horrendo_ de fallar em publico!

Mais tarde, por que reincidi n'este crime _nefando_, os miseraveis
roubaram-me o emprego, exercido durante; muitos annos com honra e zello,
no desempenho do qual só recebera elogios, e nunca censuras, ou mesmo
leves admoestações!

E a manifestação do pensamento é livre, liberrima!

Na imprensa o mesmo!

Ainda bem a minha penna não tem traçado um periodo vehemente de amarga
censura, ou de pungente ironia, contra os que cynicamente antepõem á lei a
sua vontade pessoal, e já os escrivães e os juizes, os delegados e os
esbirros da justiça andam atarefados em levantar processos, que partam os
bicos d'esta penna, que se não dobra á venalidade, e que prefere ser
molhada no fel amargo do calix da perseguição, do que nas amphoras
douradas da corrupção, em que innutilisam as suas os jornalistas devassos!

E a manifestação do pensamento é livre, liberrima!

Restava-me ainda um recurso!

Descobri um outro campo em que podesse evangelisar a minha idéa querida,
sem offensa das idéas de ninguem!

Era o theatro!

O theatro, onde na velha e sabia Grecia se fazia a apologia da virtude
politica, e se erguia o patibulo moral dos homens publicos menos fieis aos
seus deveres de cidadãos!

O theatro, d'onde nos tempos do governo absoluto se dirigia a satyra
pungente e a ironia mordaz, contra os que menos presavam a dignidade
nacional, e se tornavam reus de leso patriotismo!

Nem essa tribuna me póde ser franqueada; e não obstante eu não a busquei
sem levar vestido o habito da decencia; não me preparei para ella sem o
mais escrupuloso commedimento na phrase; eu não pensei em fazer do palco
estatua de Pasquino, nem cruz ignominiosa de nenhum homem publico!

E apesar d'isso conheço que me é deffeso pôr em scena as figuras com que
mais sympathiso no grande theatro da politica universal!

Vejo que me não será permittido evangelisar á luz civilisadora da rampa as
theorias do meu credo politico, como se proclamam ali as theorias
scientificas, como se apregoam as doutrinas philosophicas, como se
apostolisam os principios humanitarios!

Como se a sciencia, a philosophia e a humanidade não tivessem intimas
relações com a politica em geral!

E é livre, liberrima, a manifestação do pensamento!

Mentira! Falsidade! Embuste!

Vi para ahi na scena uma peças, aliás bem urdidas, e correctamente
escriptas, em que se relatavam scenas, mais ou menos exactas, da guerra
barbara que tem assolado a França!

E pensei:

--Pois se é permittida a representação de peças, em que os auctores se
apresentam manifestamente inclinados á causa da França, o que até certo
ponto prejudica a neutralidade do paiz em presença da guerra; por que não
ha de alguem, no campo altissimo das generalidades, tratar em these os
mais altos principios politicos?

Por essa occasião deu-se o tristissimo episodio da morte de Prim, que foi
o fatal epilogo da revolução de Cadix, e o negro prologo da monarchia que
o valente general ergueu sobre os destroços da monarchia bourbonica.

Na ignorancia dos pormenores d'aquella tragica scena, que não honra de
certo os que a executaram; fervilharam os boatos a respeito da origem do
crime.

Uns atribuiam-no aos partidos, outros a individuos despeitados, e alguns
em especial ao honrado partido republicano.

Repugnaram-me todas estas hypotheses, e indignou-me a ultima.

Onde está a abnegação, não existe o crime!

Onde vive o amor da patria, não se demora o plano tenebroso de morte,
contra uma gloria nacional!

As boccas que proclamam a liberdade para o escravo, e o principio da
inviolabilidade da vida humana; não pronunciam a voz de fogo na
encrusilhada covarde!

D'estas considerações nasceu a idéa d'escrever o--_Á Hora do Crime._

Tracei-o, esforçando-me por guardar todas as conveniencias.

Puz em acção a idéa democratica; mas sem offensa para ninguem.

Advoguei o principio republicano, em these; sem que em nenhuma hypothese
offensiva podesse ser ferido qualquer dos actores do grande drama
tragico-festival, que nos ultimos dois mezes se representou em Hespanha.

E li depois o meu modesto trabalho a um amigo consciencioso, conhecedor
dos segredos da scena, e habilissimo escriptor dramatico, pedindo-lhe a
sua opinião franca, sincera, desapaixonada, acerca do meu pobre escripto.

Tive em resposta elogios immerecidos, que a sua amisade entendeu dever
prodigalisar-me, e uma prophecia triste, que me calou todavia no espirito,
pela experiencia que infelizmente me tem feito conhecer a intolerancia
que, altiva e arrogante, domina no meu paiz!

A prophecia foi:

--A sua peça não pode ser representada, porque nenhum empresario, por mais
liberal que seja, por mais desejo que tenha de dar ao seu trabalho a justa
recompensa que merece, lh'o porá em scena. O sr. não sabe em que paiz
vivemos?!

Acordei do lethargo em que me lançára o enthusiasmo pela minha idéa!

Conheci que o conselheiro que eu buscára cumpria o seu dever e era leal,
porque me dizia verdade!

Resignei-me com a fatalidade que persegue o meu pensamento, quando tenta
manifestar-se; e disse commigo:

--É atroz mentira, é pungente ironia, é refalsada falsidade, o principio
que para ahi se proclama, asseverando que a manifestação do pensamento é
livre em Portugal!

Não ha tal; em Portugal o pensamento vive agrilhoado á intollerancia! Só é
livre para os que se entregam á politica mesquinha do soalheiro! Em a idéa
se alargando pelos vastos horisontes da verdade eterna ha de ir
forçosamente responder por ella, como criminoso, ao tribunal ou á cadêa, o
que ousou manifestal-a!

E como é proverbio velho, que--contra a força não ha resistencia; não
insisti no intuíto, e metti o trabalho na gaveta.

A pedido de alguns correligionarios que o conhecem, dou-o hoje á estampa.

N'esta tribuna não temo as responsabilidades, por que respondo eu pelo que
escrevi.

No theatro pode o genio da oppressão embargar-me a voz; mas na imprensa e
no comicio ha de ella soltar-se sempre livre e desembaraçada, em quanto
m'a não asphyxiarem os algozes da liberdade!

     *     *     *     *     *



Á HORA DO CRIME


PHANTASIA DRAMATICA

     *     *     *     *     *


*PERSONAGENS*

      D. Emilio Castellar--chefe do partido republicano hespanhol.
      D. Ramon Viegas--correligionario de D. Emilio.
      D. Carlos Viegas--correligionario de D. Emilio.
      Martinez--ajudante do general Prim.
      Izabel--filha de D. Ramon e noiva de Martinez.
      Pablo--criado de D. Ramon.
      Correligionarios de D. Emilio

A acção passa-se em casa de D. Ramon, rua de Alcalá, em Madrid, na noute
do assassinato de Prim.

     *     *     *     *     *

Salla espaçosa, guarnecida com modesta elegancia. Porta ao fundo e
lateraes. Janella. Ao meio da scena uma mesa e uma cadeira, e aos lados
duas ordens de cadeiras.



SCENA I

*Izabel e Martinez*


IZABEL

(_A Martinez, que se dispõe a sahir_) Que precipitação é essa, meu
querido?! Não sei o que me vaticina o coração! Desejava que não sahisses
hoje d'aqui!


MARTINEZ

Louca! Poucos dias faltam para a realisação da tua e da minha ventura!
Terminadas as festas da coroação serás minha esposa á face de Deus.


IZABEL

E se tu não voltares, Martinez? Se os inimigos do novo rei, e elles são
tantos! empregarem um recurso extremo para impedir que elle cinja a corôa
e empunhe o sceptro de S. Fernando?


MARTINEZ

Que vãos terrores te obsecam o espirito! Ignoras acaso que o general cobre
Amadeu, e que entrando em Hespanha o novo rei sob a egide de Prim, ha de
chegar inculume, por entre o respeito e o enthusiasmo das multidões, até
aos degraus do throno que lhe conquistámos em Alcolêa?


IZABEL

Eu não duvido do prostigio do teu general, nem do valor dos seus briosos
companheiros de Cadix, que ainda hoje o seguem; mas não creio na boa
estrella que os monarchicos devisam onde eu só vejo negrura e trevas!


MARTINEZ

(_Ancioso_) Explica-te!


IZABEL

Ouço o que dizem meu pae e meu irmão; escuto as palavras dos seus
correligionarios politicos que aqui se reunem; conheço as valiosas
relações que elles manteem entre as classes populares; sei que é grande a
sua dedicação pela republica, que é immenso o seu enthusiasmo por ella,
que é sublime a sua abnegação, e que todos elles estão dispostos a
implantar no solo da patria a arvore frondosa e santa da republica, ainda
mesmo a troco dos maiores sacrificios!


MARTINEZ

(_Inquieto_) Queres tu dizer, Izabel, que os correligionarios de teu
pae e de teu irmão estão dispostos... O que ouviste, Izabel?


IZABEL

(_Com dignidade_) O que eu ouço nas reuniões que se realisam n'esta
casa, não t'o digo eu agora, nem t'o direi jámais! Se o amor me prendeu o
coração a um monarchico, não me obsecou o espirito a ponto de me fazer
trahir a causa que a minha familia defende, e que eu reputo santa.


MARTINEZ

(_Hesitando_) Elles pensam em assassinar o rei?


IZABEL

(_Com indignação_) Não! Os republicanos não defendem a
inviolabilidade da vida humana para arrancarem covardemente a vida a um
homem! Na religião democratica respeita-se a virtude, e condemna-se o
crime! Os republicanos não pensam em assassinar ninguem, porque o
assassinato é um crime!


MARTINEZ

Confesso, porém, que as tuas palavras chegaram a inspirar-me um profundo
terror! Tinhas dito ha pouco...


IZABEL

É que os republicanos não são os unicos inimigos do rei! Amadeu tem contra
si a má vontade de todos os partidos d'Hespanha; e dos que o repellem, dos
que o guerreiam, dos que jámais lhe darão tregoas, só os republicanos teem
por devisa o horror ao crime, só elles respeitam com dogma o principio da
inviolabilidade da vida do homem!


MARTINEZ

Verás que te illudes!


IZABEL

Oxalá!.. E se fosse só o novo rei que me inspirasse receios por ti! E o
teu general?!... Ninguem como elle tem hoje um nome mais brilhante na
Hespanha; mas ninguem como elle tem mais irreconciliaveis inimigos entre o
povo hespanhol! Prim poz a corôa de Izabel na cabeça de Amadeu, e nem
mesmo os mais encarniçados inimigos da rainha lhe perdoam que elle lhe
derrocasse o throno, para edificar sobre as suas ruinas o throno de um
estrangeiro!


MARTINEZ

(_Sorrindo_) Vejo-me obrigado a fechar a sessão! Se te embrenhas tão
cegamente no labyrintho da politica, pouco tempo te restará para cuidares
dos preparativos da nossa festa nupcial! Pença em mim, Izabel; ante-gosa a
nossa proxima felicidade, e deixa a teu pae e a teu irmão o cuidado de
vellarem pela patria que elles lealmente amam; e de prestarem cultos á
religião politica, que tão nobremente professam. (_Vae a sair._)


IZABEL

(_Detendo-o_) Então sempre vaes?


MARTINEZ

Que fazer? (_Consultando o relogio_) São seis horas e meia... Deve
estar a findar a sessão do Congresso, e tenho de acompanhar o general, que
parte hoje em minha companhia, e na de Nandin e Moya, para Cartagena, a
fim de esperarmos e acompanharmos a Madrid sua magestade Amadeu 1.º


IZABEL

Vae, vae, meu querido; e oxalá que essa viajem do rei novo me não fira de
morte o coração, onde se abriga um tão grande amor por ti! Escreve-me,
Martinez; escreve-me de todos os pontos onde descançares! Olha que se me
parte o coração n'esta despedida!


MARTINEZ

Socega e espera! Se Deus quiz que nos amassemos tanto, não foi de certo
para nos fazer infelizes! (_Abraçam-se.--Martinez sae pelo fundo._)



SCENA II

*Izabel* (_só_)


(_Triste e encostada á janella_) Socega e espera!... Que
tranquilidade ha de existir no peito de uma pobre mulher, que vê quasi a
despenhar-se no abysmo metade da sua alma! Que esperança pode
abrigar-se-me no coração, se eu vejo Martinez, o meu noivo, o homem que eu
amo mais que a minha vida, affrontar indifferente a morte, ao lado
d'aquelle pelo qual metade da Hespanha se julga illudida, fazendo parte do
sequito do rei que transformou por um--sim--imprudente as esperanças da
patria em illusões e sonhos, que podem amanhã produzir a guerra civil!
(_Caindo anniquillada n'uma cadeira_) Oh! que infeliz eu sou! Oh!
quão desgraçada serei! Condemnada a viver perpetuamente entre os odios
mortaes dos correligionarios d'aquelles que mais queridos me são no mundo!
De um lado o receio da perseguição dos monarchicos ao pae e ao irmão que
estremeço! Do outro, o temor da represalia dos republicanos, contra o
homem com quem em pouco vou partilhar a sorte, e ao qual de ha muito dei
inteiro o coração! Oh fatalidade!



SCENA III

*Izabel e D. Carlos*


D. CARLOS

(_Do fundo_) Estás aqui, minha irmã? Não te aborrece esta salla? Não
te soffoca a atemosphera que aqui se respira?


IZABEL

Não!


D. CARLOS

Tu, tão nova e tão linda, aspirando o ar tão pesado d'este recinto de
conspirações?


IZABEL

Sim!


D. CARLOS

Porque não vaes antes para os teus quartos? Não te é mais agradavel a
vista risonha do jardim, que tu tratas tão cuidadosamente, do que o
aspecto d'esta salla, onde hoje reside o desespero, onde paira a
indignação, onde bate por ventura as azas o demonio da vingança?


IZABEL

Não.


D. CARLOS

(_Preoccupado_) Não... sim... não outra vez!... Que tens tu,
Izabel?... Respondes apenas por monosyllabos ás minhas carinhosas
interrogações?... Que tens tu, minha irmã?


IZABEL

Nada!


D. CARLOS

Nada, e eu vejo-te os olhos pisados!... Nada, e tu choras!... Desafoga
commigo, Izabel!... Teu irmão ainda tem coração para recolher os teus
pesares, e amor bastante para te prodigalisar consolações!


IZABEL

(_Com desalento_) Martinez... o meu querido Martinez, parte esta
noute para Cartagena, em companhia de Prim, que vae ali esperar o novo
rei! Comprehendes agora a rasão dos meus monosyllabos, a causa das minhas
lagrimas, origem dos meus pesares?


D. CARLOS

(_Tranquilisando-a_) E que tem isso? O rei vem; mas isso não quer
dizer que conseguirá firmar solidamente uma dymnastia! Epoca virá, e
talvez pouco distante, em que a nação lhe indique solemnemente o caminho
da sua patria! Se Martinez vae hoje, como ajudante do general, que se
disse democrata no exilio, e que tão mal comprehendeu no poder a sua
brilhante posição, esperar o rei que é imposto á nação hespanhola; talvez
que em breve, convertido á crença democratica, elle vá, general da
republica, fazer embarcar no mesmo porto o desvairado mancebo, que tão
facilmente se deixou fascinar peio brilhantismo de uma corôa, que não é
sua, e que de certo é pesada de mais para cabeça tão jovenil!


IZABEL

(_Com receio_) E se um tiro traiçoeiro, cortando o ar n'um ermo, vier
feril-o, em vez de ferir Amadeu ou Prim?


D. CARLOS

(_Sorrindo_) Que lembrança! Em Hespanha o partido mais forte é o
republicano, por que é aquelle que tem mais crentes retemperados na fé do
martyrio; e por isso o rei e o general, e todo o sequito de Amadeu, e toda
a comitiva de Prim, passarão illesos por entre a indifferença publica! O
assassinato é um crime, e os republicanos não ferem o adversario senão no
campo convencional da honra, ou no campo franco e aberto da batalha leal!


IZABEL

Sinto que tens rasão; mas sinto tambem que se me comprime a coração nos
horrores da duvida; apavoram-me os terriveis presentimentos que me
assaltam o espirito!


D. CARLOS

(_Offerecendo-lhe o braço_) Vem commigo destrair-te. É o amor que te
faz delirar assim! Vem commigo! (_Izabel dá-lhe o braço, e saem ambos
pela porta leteral_).



SCENA IV

*D. Emilio e D. Ramon*


D. RAMON.

(_A D. Emilio--do fundo_) É infelizmente assim, meu caro Castellar.
Desde que aquelles hespanhoes, menos ciosos da velha dignidade castelhana,
votaram na constituinte um rei estrangeiro, a minha fé continuou
inabalavel; mas a minha esperança no futuro diminuiu consideravelmente!


D. EMILIO

E porque, estimavel D. Ramon?


D. RAMON

Porque o moço inexperiente; mas ambicioso de certo, que imprudentemente
trocou o bem estar e socego, pelos espinhos agudissimos da corôa
d'Hespanha, pode ser um bom rapaz, e é-o decerto; pode possuir um coração
bem formado, e creio que o possue; pode mesmo desejar abrir na historia
nossa patria uma era brilhante de beneficios, de liberdades, de
tolerancias; mas é rei, e por mais digno que seja o seu sentir, por mais
nobres que sejam as suas aspirações, hão de em pouco transformal-o em
tyranno, em despota, em liberticida, os aulicos que hão de cercar-lhe o
throno, as camarilhas que hão de insinuar-se no seu animo para lhe dominar
a vontade, os maus cidadãos, emfim, que mais dão rasão de ser ao credo
republicano, e que todos os dias, e a todas as horas, e em todos os
instantes lhe conquistam adeptos, encaminhando os principes pela vereda
fatal do erro, impellindo-os cynicamente para o plano inclinado onde se
tem despenhado tantos, tantos!... arrastando comsigo as nações cujos
destinos dirigiam!


D. EMILIO

Tem rasão em seus receios, D. Ramon; mas não a tem na sua descrença! Mau é
que um rei venha matar as esperanças mais fagueiras que o povo hespanhol
concebeu, quando, ao grito do triumpho magestoso da revolução de Cadix,
viu cahir a pedaços o throno apodrecido d'essa mulher, que tanto sangue
custou á nossa nobre terra! E peior é que esse rei, imposto á livre e
orgulhosa Hespanha, seja um estrangeiro! O nosso proverbial orgulho, esse
orgulho indomavel, que tornou sempre respeitados os cavalheirosos filhos
d'Hespanha, sente-se ferido de morte na mais vulneravel das suas
manifestações! Mas que importa isso? Quanto mais o justo orgulho, a nobre
altivez de um povo se sente abatida e humilhada, tanto mais violento é o
esforço supremo que deve dar-lhe a desaffronta, e com a desaffronta a
liberdade! Tenha fé no futuro, D. Ramon!


D. RAMON

Fé!... Sei que a sua é viva e sincera, Castellar; não ignoro quanto a
patria deve á sua dedicada abnegação e ás suas profundas convicções; sou o
mais enthusiastico admirador desse talento collossal, que assombra a
patria, e a Europa, e o mundo; mas sou velho, e na friesa que dão os
sessenta annos, e na impassibilidade filha de uma longa experiencia, vejo
as cousas por um prisma tristissimo, fatal! Vejo que quando o italiano fôr
o senhor d'este paiz, por mais altivo e orgulhoso que o povo hespanhol
seja, o jugo ferreo do despotismo ha de vir em seguida comprimil-o nas
cadeias de escravo, e a emancipação da patria ficará por isso longamente
addiada, porque as hecatombes e as carnificinas hão de levar o desanimo
onde hoje existe o enthusiasmo, hão de levar a indifferença onde hoje vive
o amor da patria!


D. EMILIO

(_Com gesto sublime_) Basta velho! Que o ancião não pronuncie jámais
em presença de correligionarios seus tão eloquentes palavras de descrença!
A fé e a esperança são principios religiosos do christão, e devisa
inalteravel do democrata! E christãos, e republicanos somos nós, para que
aos nossos ouvidos possam chegar a descrença e o desespero, apostolados
por um dos nossos! Reanima-te, nobre ancião! soldado velho da liberdade!
evangelisador sincero da republica! O futuro, se não é risonho e festival,
não é completamente negro e carregado de nuvens procellosas! A republica
tem feito grandes conquistas no mundo! Na França opéra milagres! na Suissa
dá nobres exemplos! na America offerece lição proficua! no nosso irmão e
amigo Portugal cria profundas raizes! e até na propria Prussia produz
phenomenos, porque ao passo que os exercitos devastadores do autocrata
allemão talam os campos verdejantes da bella França, para asphyxiar a
democracia, o povo de Berlim, que é povo, e que por isso é nobre, e
generoso, e republicano, como todos os seus irmãos no mundo, elege para
seu representante ao parlamento o chefe ostensivo do partido republicano
d'Allemanha! E é n'esta conjunctura, que a voz auctorisada de um velho
respeitavel ha de trazer o desalento ao espirito dos valentes campeões da
democracia hespanhola?... Não, D. Ramon! O futuro é nosso! Ao triumpho
completo da França, e elle ha-de vir, deve seguir-se o derrocamento dos
thronos! Á emancipação do povo francez seguir-se-ha a emancipação da
Europa! A derrota do tyranno allemão deve necessariamente ser o signal da
queda de todos os despotas do mundo!

(_Durante esta falla tem entrado successivamente pelo fundo muitos
individuos, e pela porta lateral D. Carlos, que recebe todos com
cordialidade e affecto._)


TODOS

Apoiado!... Muito bem!... É assim!...



SCENA V

*Os mesmos, D. Carlos, e os recem-vindos*


D. EMILIO

(_Voltando-se para o fundo_) Eil-os, os nossos amigos! Em todos a
mesma fé! Em todos a mesma esperança!


D. RAMON

(_Aos recem-chegados_) Conversavamos, eu e D. Emilio, acerca do
futuro do paiz, e do obstaculo, não insuperavel, que a eleição do rei pode
trazer é realisação dos nossos desejos!


D. EMILIO

Tratemos porém agora do assumpto que aqui nos traz hoje. (_A D.
Ramon_) D. Ramon, occupae a presidencia, vós, que sois o mais velho.
(_A D. Carlos_) E vós, D. Carlos, exporeis as rasões que vos
determinaram a convocar esta reunião dos nossos amigos.


D. RAMON

(_Occupando a presidencia_) Acceito, não por vaidade; mas por
condescendencia. Este logar pertence de direito ao honrado chefe do
partido republicano hespanhol; que, modesto até ao extremo, nem mesmo
entre os seus mais intimos e mais leaes amigos quer ser o primeiro; quando
a verdade é que nenhum de nós se lhe avantaja, nem em talento, nem em
virtude, nem em dedicação!


TODOS

Apoiado! Apoiado! (_D. Emilio agradece com o gesto_)


D. CARLOS

Meus senhores, o rei está a chegar, o general Prim parte esta noute para
Cartagena, a fim de o acompanhar a Madrid; é mister pois que o partido
republicano tome uma deliberação definitiva ácerca do procedimento que
deve adoptar no dia da coroação do italiano.


UMA VOZ

Formule a sua proposta.


D. CARLOS

(_Continuando_) É o que vou fazer. Eu proponho que nós todos
empreguemos os esforços possiveis, para que os nossos correligionarios
madrilenos, sem excepção de um só, se apresentem vestidos de lucto pesado
no dia da chegada de Amadeu a Madrid. Creio que faremos assim uma
imponente manifestação, visto que imperiosas rasões partidarias obstam a
que ella seja mais ruidosa e mais energica. É um protesto solemne contra a
invasão ambiciosa do estrangeiro, e ao mesmo tempo um aviso ao seu
espirito, que verá de certo no lucto do povo um argumento vehemente contra
os que por adulação, por servilismo, por vil baixesa lhe hão de dizer no
paço real, que elle inspira amor áquelles que só sentem por elle profunda
indifferença, se não lhe votam do intimo d'alma rancor e odio!


D. EMILIO

Approvo a idéa; mas peço para fazer uma observação, talvez desnecessaria.
A manifestação dos republicanos deve ser digna e nobre, para ser
magestosa! Envidemos toda a nossa energia, ponhamos em acção toda a nossa
actividade, para que nem o italiano, nem o general que o fez rei
d'Hespanha, soffram sequer um insulto! Amadeu é um principe ambicioso,
talvez; mas julga acceitar legalmente a corôa, por que legalmente lh'a
julgou offerecer a maioria da assembléa constituinte, no erro fatal a que
a levou o seu grande respeito por Prim, e o desconhecimento dos poderes
limitados que lhe conferia o seu mandato! O marquez de los Castillejos,
por mais fatal que fosse para a patria a sua obsecação, ou quem sabe se a
difficuldade da sua posição politica, é hespanhol e liberal, foi o mais
valente caudilho da revolução de Cadix, é um cidadão benemerito, é um
general aguerrido, é o heroe do Mexico, de Reus, de Castillejos, de
Marrocos e de Saragoça! Que um e outro sejam pois respeitados por nós! Que
Amadeu, quando o povo lhe indicar imperiosamente o caminho da sua patria,
não possa accusar os republicanos d'Hespanha de uma grosseria, ou de uma
crueldade! Que Prim possa ser de futuro o esteio solido da republica, como
tem sido mais de uma vez o sustentaculo valente da liberdade! (_Ouve-se
fóra uma grande detonação._)


TODOS

(_Erguendo-se e correndo á janella_) Que é isto? Que é isto?


D. RAMON

(_Á janella_) Vejo muito povo aglomerado na esquina da rua do
Turco... soldados e populares que correm para aquelle lado... e um fumo
denso que é de certo produzido pelos tiros que ouvimos!



SCENA VI

*Os mesmos, Izabel e depois Pablo*


IZABEL

(_Da porta lateral, correndo_) Que é isto, meus senhores? Não ouviram
uma horrivel detonação? Foi de certo um crime tremendo que acabou de se
perpetrar!


ALGUMAS VOZES

Ouvimos! Ouvimos!


D. CARLOS

(_Na janella_) Lá corre um homem de bluze azul!... Toma a direcção do
Prado!


PABLO

(_Do fundo. Vem precipitadamente, e hesita vendo tanta gente_)
Perdão, meus senhores... não sabia...


D. EMILIO

(_Inquieto_) Falla! falla! O que aconteceu.


PABLO

Uma grande atrocidade, meus senhores!... Que tambem, verdade seja, elle
tem feito morrer bastantes desgraçados, e os senhores, quem sabe? talvez
que algum dia tivessem de pagar o patau n'uma morte parecida com a que
elle teve!


VOZES

Mas falla... dize... o que foi?


PABLO

Ora, o que foi? O general Prim vinha do Congresso, dirigia-se ao
ministerio da guerra; vae senão quando...


IZABEL

Meu Deus! O general! Não mentiram os meus presentimentos!


PABLO

(_Continuando_) Vae se não quando, o trem pára, por que a rua estava
tomada por duas carruagens que a obstruiam; e palavras não eram ditas,
quando um dos ajudantes do marechal deita a cabeça de fóra para vêr o que
aquillo era, uns poucos d'homens disparam á queima roupa os seus trabucos
para dentro da carruagem, e, por Maria Purissima! lá ficaram todos de
certo com os anjinhos!


TODOS

Horror! Infamia!


IZABEL

(_Desvairada_) E Martinez... tambem ia... tambem morreu?


PABLO

Eu sei lá, menina! Eu não o vi; mas se lá ia dentro...


IZABEL

(_Desfallecendo_) Morto!... elle!... (_Desmaia; mas só Pablo lhe
presta soccorro, porque os demais personagens estão preoccupados com a
noticia_)


D. EMILIO

(_Em tom solemne e com sentimento_) Meus senhores, tinhamos razões de
desamor, não sei se profundo; mas quero bem crer que temporario, pelo
heroe que depois de affrontar mil vezes a morte, no campo aberto da
batalha, e de conquistar, para si e para a patria, immarcessiveis louros,
acaba de soccumbir a um tão covarde crime! Foi nosso companheiro no
exilio, não chegou a comprehender os generosos intuitos do nosso partido,
opôz uma barreira de ferro ás nossas aspirações democraticas; mas era
hespanhol e christão, e cumpre-nos, primeiro que tudo, enviar a Deus uma
prece fervente pelo repouso da sua grande alma! De joelhos, amigos, e
oremos! (Joelham todos.--Martinez aparece ao fundo.)



SCENA VII

*Os mesmos e Martinez*


MARTINEZ

(_Entre a porta do fundo, maravilhado_) Que vejo!... Todos estes
homens orando! Elles!... os alcunhados pedreiros livres! Elles!... os
temidos hereges! Elles!... os republicanos!


D. RAMON

(_Erguendo-se_) De que te espantas, meu filho? Somos christãos, e
oramos a Deus pela alma do teu general, tão infamemente assassinado!


MARTINEZ

Felizmente são orações perdidas, porque o marechal apenas se acha
levemente ferido! Mas não foi perdida a scena que acabo de presenciar, o
espectaculo commovente que vim surprehender! Bemdita a fatalidade que sem
produzir os resultados negros a que mirava, operou a conversão espontanea
de um illudido, que se deixou desvairar pela calumnia atroz dos que
infamemente pretendem esmagar o credito dos republicanos! (_Abraçando D.
Ramon_) Acceite no seu gremio um convertido!


D. CARLOS

Mas o general... não morreu?


IZABEL

(_Despertando_) Estas vozes... Estes rostos alegres... (_Vendo
Martinez_) Tu... vivo!... (_Palpando-o_) Nem sequer foste ferido?
(_A D. Ramon_) Perdão meu pae! (_Aos demais_) Desculpem, meus
senhores! Martinez é meu noivo... e em poucos dias será meu marido!


MARTINEZ

Socega! Não morreu ninguem! Eu estou são; o meu general foi levemente
ferido n'uma das mãos, pelos tiros d'aquelles miseraveis, e Nandin tambem
tem um ferimento, que felizmente não é grave.


TODOS

Ainda bem! Ainda bem!


D. CARLOS

(_A si mesmo_) Não digo eu--ainda bem--porque sou medico. Receio
bastante que a ferida seja mortal, por que sei que o ferimento produsido
pela arma de fogo é quasi sempre fatal, quando o frio é intenso, como o
d'estes dias tem sido.


D. EMILIO

Rendamos graças a Deus, por ter permitido que se frustrasse um tão negro
crime. É que a Providencia reserva ainda de certo o general Prim, para
algum grandioso commettimento em favor do seu paiz!


IZABEL

E oxalá que assim seja! Oxalá que um dia chegue, em que aquelle valente
militar possa comnosco bradar:--Viva a republica!


TODOS

Viva a republica!


IZABEL

Desculpa, Mantinez! O meu coração é teu, e da idéa generosa e sublime de
que estes cavalheiros são dedicados apostolos!


MARTINEZ

E de que eu começo hoje o noviciado!


IZABEL

(_Muito contente_) Converteste-te?!... Oh! é mais um presente da
Providencia! Eu vol-o agradeço, meu Deus!...


D. RAMON

É um anjo, que sente como nós santo amor pela republica!


D. EMILIO

Acompanho, intimamente regosijado, as saudações angelicas da donzella
innocente, que bem representa aqui a santa virgem da democracia! Mas que o
nosso enthusiasmo nos não torne suspeitos de cumplicidade no crime nefando
que tanto nos indignou! É mister que todos nós, em vez das projectadas
manifestações de desagrado ao rei eleito, prestemos sincera homenagem ao
vulto gigante, que ia sendo victima de um tão monstruoso attentado! Tão
feio crime só póde ter sido perpetrado por facinoras, por miseraveis, por
maus hespanhoes! Não foram de certo, não; não foram adeptos da nossa
crença, religionarios convictos da nossa egreja, os que o perpetraram! Os
republicanos não são covardes! Os republicanos não são vis! Os
republicanos não são assassinos! As vestes alvas da democracia, a vestal
que mantem o fogo sagrado da liberdade, a santa que tem por evangelho a
tolerancia, a deosa que manda respeitar a vida humana, mancharam-se de
sangue no Mexico, mas jámais se ennodoarão na nobre terra d'Hespanha!
Amigos, protestemos todos, bem alto, contra um tal attentado! (_Signaes
de approvação._)


ISABEL

(_A Martinez_)--E partirás com o general?


MATINEZ

Não; apesar de ligeiros, os ferimentos do general
impedem-lhe que parta hoje.


IZABEL

Mais um favor do ceu! Permittam, meus senhores, que eu vá tocar no piano o
nosso hymno patriotico, aquelle hymno de Riego, que tanto nos tem
enthusiasmado nos nossos saraus commemorativos dos acontecimentos
gloriosos do partido republicano! (_Inclinam-se todos--Isabel sahe pela
porta lateral_).


D. EMILIO

E quem irá a Cartagena, em logar de Prim?


MARTINEZ

O almirante Topete, que cedendo ás instancias de sua alteza o Regente,
acceitou a presidencia do conselho de ministros, durante o impedimento do
marechal Prim.


D. CARLOS

(_Admirado_) Topete!?


D. RAMON

(_Idem_)--O chefe dos unionistas!?...


D. EMILIO

(_Com gravidade_) O hespanhol honrado, que em presença do perigo da
patria sacrifica á idéa primordial da sua crença, os compromissos
particulares de um corrilho! Um republicano não devia, não podia, sem
deshonra, entregar a Amadeu o sceptro hespanhol; mas um montpensierista
póde, sem quebra de dignidade, sental-o no throno d'Hespanha! Que mais
larga idéa traduz Antonio de Orleans do que Amadeu de Saboia? Não
representam um e outro o principio monarchico? Não são estrangeiros um e
outro? Não ambicionavam ambos a corôa d'Hespanha? É nobre o procedimento
do almirante! Queria um rei, e por isso respeitando os votos dos seus
correligionarios monarchicos, cobrirá amanhã o principe contra o qual
hontem votou! Nós é que não podemos cobrir nem um nem outro; supposto que
tenhamos o indeclinavel dever de respeitar ambos! Nós é que não podemos
senão, no campo legal que a constituição nos offerece, ou no campo leal
que as circumstancias nos traçarem, velar pela conservação das liberdades
que conquistámos, e propugnar pelo larguissimo desenvolvimento d'ellas! É
honroso o nosso posto! É sublime a nossa missão! É de esperança o nosso
futuro! Se nem o duque de Aoste, nem o duque de Montpensier representam
para nós o anjo do bem, fadado por Deus para tornar a Hespanha feliz,
cumpre-nos evangelisar a republica, e mesmo batalhar por ella, para que a
nossa patria possa breve proclamar o codigo politico, em que reside de
certo o principio da regeneração dos povos! Firmes sempre, e sempre
honrados, sacrificaremos embora as vidas e as fortunas; mas jamais
venderemos o coração e a consciencia. (_Ouve-se no piano o hymno de
Riego. Escutam-o todos cem respeito_).


D. EMILIO

(_Continuando, com enthusiasmo_) E ao som d'aquelle hymno patriotico,
e animados pelas harmonias d'aquella musica, que tem sido a companheira
fiel de todas as nossas glorias modernas, de todas as nossas conquistas
liberaes, bradaremos sempre:--Viva a Hespanha! Viva a liberdade! Viva a
republica!


TODOS

Viva a Hespanha! Viva a liberdade! Viva a republica!


ISABEL

(_Da porta lateral--correndo_) Perdão, meus senhores! Tambem eu quero
acompanhal-os nas suas saudações! Tambem eu quero soltar um brado de
verdadeiro enthusiasmo!--Gloria aos martyres da França! Amisade sincera e
leal ao nosso visinho Portugal, livre e independente! Viva a republica!


TODOS

Viva a republica!

(_Rompe na orchesta o hymno de Riego._)


(_Cae o pano_)





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Á hora do crime - phantasia dramatica em 1 acto a proposito do assassinato do General Prim" ***

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